Fiocruz

Fundação Oswaldo Cruz uma instituição a serviço da vida

Início do conteúdo

Sífilis materna e congênita em povos indígenas são negligenciadas


13/06/2023

Danielle Monteiro (Ensp/Fiocruz)

Compartilhar:

A sífilis materna e congênita em povos indígenas são condições duplamente negligenciadas e as pesquisas sobre o tema não recebem a prioridade e o incentivo que merecem. A constatação é do estudo Sífilis materna e congênita em povos indígenas: uma revisão de escopo da literatura mundial, publicado recentemente na revista internacional de acesso aberto International Journal for Equity in Health e liderado pelo pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Andrey Moreira Cardoso. A pesquisa faz parte do projeto Determinantes de ocorrência da sífilis gestacional e seus efeitos adversos sobre o concepto e impacto de políticas sociais sobre estes problemas de saúde, Brasil 2001 - 2018, financiado pelo CNPq e o Departamento de Ciência e Tecnologia (DCIT) do Ministério da Saúde, com coordenação da vice-coordenadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), Maria Yury Travassos Ichihara, em parceria com a Ensp, a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a The London School of Hygiene and Tropical Medicine (LSHTM).

O artigo investigou 24 de 446 estudos identificados sobre sífilis materna e congênita em povos indígenas. As publicações analisadas se concentraram na Oceania e nas Américas, e continham informações científicas coletadas de 1989 a 2020, sendo metade delas publicada nos últimos cinco anos. Os estudos investigados abordaram temáticas como qualidade dos dados de vigilância e dos sistemas de informação; diagnóstico, oferta, acesso e uso de serviços de saúde; prevalência ou incidência das doenças e iniquidades em saúde; determinantes da sífilis materna e congênita; e desfechos das doenças no feto. Nenhum deles abordou aspectos históricos da sífilis ou impactos de políticas sociais sobre essas doenças em populações indígenas.

Distribuição geográfica dos estudos sobre o tema

A pesquisa identificou artigos sobre a sífilis materna e congênita em povos indígenas em apenas cinco países de dois continentes: Américas e Oceania. Ao mesmo tempo em que se observou uma alta proporção de estudos realizados no Brasil (50%), foi constatada ausência de pesquisas em diversos países com expressivo contingente de populações indígenas, como China, Índia, Indonésia, Etiópia, Filipinas, Canadá, México e Nova Zelândia. 

Segundo os autores do artigo, a elevada proporção de estudos no Brasil possivelmente resulta do fomento e incentivo à pesquisa regional promovidos pela unidade da Fiocruz no Mato Grosso do Sul. Outro motivo, conforme afirmam os pesquisadores, seria a realização de um grande estudo sobre custo-efetividade da implementação de teste rápido para sífilis e HIV em populações indígenas localizadas remotamente na Amazônia.

Quanto à inexistência de estudos em países com expressiva população indígena, os autores levantaram algumas hipóteses. Entre elas, o baixo interesse científico e a não priorização do tema; a preocupação em estigmatizar ainda mais essas populações; a capacidade reduzida para monitoramento de dados e condução de estudos pelos indígenas; o uso de descritores não indexados ou de palavras-chave inespecíficas em publicações; e a existência de estudos não publicados, o que afeta a possibilidade de localização nas buscas bibliográficas. “A diversidade de termos para identificação de povos indígenas se torna um desafio para o mapeamento da produção científica sobre a saúde dessas populações”, afirmam os pesquisadores.

Baixa qualidade de dados

A pesquisa verificou também que estudos com análise da qualidade de dados sobre sífilis em povos indígenas investigaram as dimensões completude, cobertura e consistência, revelando baixa qualidade de dados de vigilância e dos sistemas de informação em saúde, além de subnotificação de casos e incompletude das notificações, principalmente para variáveis socioeconômicas, de tratamento e de etnia: “A má qualidade dos dados contribui para subestimar a carga dessas doenças nos povos indígenas e reduz a acurácia das estimativas de iniquidades étnico-raciais, limitando a identificação dos determinantes sociais da sífilis materna e congênita nessas populações. Isso, por sua vez, limita a utilidade dos dados para informar políticas sociais e de saúde para o controle dessas doenças”, explicam os pesquisadores.

Foi observado, ainda, que os estudos com abordagem sobre diagnóstico, oferta, acesso e uso de serviços de saúde em povos indígenas reportaram a existência de barreiras na Atenção à Saúde, como baixa cobertura pré-natal e recursos laboratoriais limitados para diagnóstico, o que resulta em oportunidades perdidas para o reconhecimento e tratamento da sífilis materna e congênita e, consequentemente, em subnotificação das doenças.

A pesquisa também revelou que a maioria dos estudos publicou dados de prevalência de sífilis baseados em inquéritos epidemiológicos, enquanto apenas três publicaram taxas da doença baseadas na notificação do sistema de vigilância.

Segundo os autores do artigo, a frequência de sífilis materna e congênita é heterogênea entre diferentes populações indígenas, porém, é geralmente maior do que em populações não indígenas que vivem nos arredores. O resultado chama a atenção para a vulnerabilidade dos povos indígenas em contextos remotos e de fronteiras, agravada pela proximidade de centros urbanos, conforme narram os pesquisadores: “O contexto de vida das populações indígenas desempenha um papel central na ocorrência da sífilis materna e congênita, influenciando na infectividade, taxa de transmissão e duração da doença”. 

Escassez de estudos sobre determinantes das doenças

O artigo revelou, ainda, uma particular escassez de estudos sobre determinantes da sífilis gestacional ou congênita em povos indígenas. Entre as publicações analisadas, apenas três investigaram fatores associados à sífilis materna. Além dos fatores habituais identificados na população em geral, o resultado revela a importância de aspectos contextuais na análise de determinantes das duas doenças, como o alto grau de intrusão em territórios indígenas, incluindo o desmatamento e o garimpo ilegal, e a mobilidade da população indígena para os polos de atração e comércio regionais. “Modelos teóricos para análise dos determinantes da sífilis materna e congênita em povos indígenas devem considerar variáveis contextuais que permitam identificar determinantes sociais modificáveis além daqueles já estabelecidos para a população em geral, a fim de subsidiar políticas sociais e de saúde implementadas pelo Estado”, sugerem os pesquisadores.

Necessidade de pesquisas futuras

Para os autores do artigo, as escassas publicações sobre a frequência de sífilis materna e congênita, baseadas principalmente em dados de prevalência, assim como a subnotificação de casos, a baixa qualidade dos dados e a limitação dos estudos a poucos países e regiões, permitem traçar um cenário apenas parcial e, em algum grau, enviesado, sobre a situação dessas doenças em povos indígenas no mundo. Por esse motivo, segundo os pesquisadores, são necessários estudos que forneçam estimativas robustas da incidência da sífilis materna e congênita em povos indígenas em uma ampla gama de populações e contextos para melhor representar a diversidade, a vulnerabilidade e as desigualdades. 

“Realizar análises rotineiras da qualidade dos dados, estimar os casos subnotificados e gerar possíveis fatores de correção em diferentes escalas geográficas pode subsidiar o monitoramento das tendências étnico-raciais nas desigualdades da sífilis. O relacionamento de diferentes bases de dados que contemplem todas as fases do processo saúde-doença pode melhorar a completude e a consistência dos dados, permitindo análises inovadoras e robustas dos determinantes e impactos das políticas públicas de controle da doença”, acreditam os pesquisadores. Segundo eles, também é necessário que “os sistemas de saúde e vigilância sejam aprimorados, aumentando continuamente a qualidade dos sistemas de informação em saúde, disponibilizando informações atualizadas e confiáveis e eliminando as barreiras de acesso universal e integral à saúde pública de qualidade”.
 

Voltar ao topoVoltar