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Impactos da mudança climática nas populações em situação de rua após a pandemia


02/07/2021

Por: Luiz Augusto Galvão, Mariya Bezgrebelna, Sean Kidd e Nísia Trindade Lima*

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A noção de que crises sanitárias afetam de forma injusta e desproporcional as populações vulneráveis ganhou concretude durante a maior crise sanitária deste século, devidamente observada e documentada. Estudos demonstraram que a distribuição da Covid-19 ocorre de maneira desigual entre diferentes grupos étnicos e socioeconômicos (Horta, 2020 e Wang, 2020) [i],[ii] e sinalizam para a importância do preconceito e do racismo sistêmico como elementos que, ao entrelaçarem-se com os fatores biológicos, comportamentais e ambientais, conduzem as pessoas a uma situação de vulnerabilidade social inequitativa (Gray, 2020) [iii].

O reconhecimento das populações vulneráveis como prioridade durante a crise sanitária deu origem a iniciativas emergenciais de assistência médica e social que buscaram mitigar a situação. No entanto, as populações em situação de rua, um dos grupos que sofreram com a Covid-19, continuarão sofrendo com as novas crises sanitárias derivadas de novos eventos como aqueles associados à crise climática.

Um artigo recente publicado na revista Lancet (Kidd, 2021) [iv] pelo Grupo de trabalho sobre populações em situação de rua e Clima [liderado pelo Prof. Sean Kidd, da Universidade de Toronto] e uma revisão sistemática pelo mesmo grupo (Kidd, 2020)[v] descreveram as diferenças do impacto das mudanças climáticas na saúde e bem-estar humano em populações e regiões com grandes disparidades econômicas e sociais. Esses artigos enfatizam a existência de lacunas de conhecimento sobre esses impactos, sendo uma delas sobre o papel da moradia e do abrigo na saúde física e mental de populações expostas a mudanças climáticas. Para pessoas em situação de rua, em abrigos precários e para as populações marginalizadas, os riscos relacionados à mudança climática são maiores, dado que elas estão continuamente expostas aos eventos climáticos extremos e também à insegurança alimentar, poluição do ar, temperaturas extremas, água insegura e vetores de doenças. Além disso, essa exposição aos riscos se dá em populações com a saúde já comprometida, agravando-se, assim, as condições de saúde pré-existentes.

Outro artigo de revisão sistemática (Bezgrebelna, 2021)[vi] identificou também, entre aqueles que vivem em abrigos vulneráveis e em populações de extratos socioeconômicas mais baixos, problemas devidos à insegurança energética (por exemplo, pela incapacidade de pagar contas de luz que pode conduzir ao despejo em alguns países) e aos fenômenos naturais induzidos pelas mudanças climáticas. Os exemplos incluem o comprometimento de moradias devido a inundações causadas por situações climáticas extremas e a insustentabilidade de terras agrícolas por situações extremas de calor. Essas populações tornam-se migrantes climáticas, fugindo das regiões afetadas para centros urbanos, onde enfrentam a pobreza e situações habitacionais ainda mais comprometidas. Esse conjunto de problemas é agravado pela violência e conflitos que surgem desses estressores e das estratégias de mitigação de riscos climáticos que não consideram adequadamente as populações em situação de rua.

A infraestrutura verde em ambientes urbanos tem mostrado alguns benefícios para essas populações. No entanto, os governos locais devem garantir que os desabrigados não sejam deslocados dos novos espaços verdes. A resolução desses problemas durante a crise climática carece ainda de melhores dados, ao lado da implementação de mudanças estruturais baseadas nos direitos humanos. Respostas sistêmicas informadas por dados oferecem uma oportunidade de reduzir o impacto das mudanças climáticas sobre a falta de moradia e sobre a moradia precária.

No Brasil, a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR) volta-se ao “grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.” (Brasil, 2009)[vii].

Um estudo do Ipea (Natalino, 2020) [viii] apontou que, em março de 2020, existia cerca de 221 mil pessoas em situação de rua, o que representa um aumento de 140%, na comparação com os níveis de 2012. O mesmo estudo relata que o crescimento é “observado em todas as Grandes Regiões e em municípios de todos os portes, o que sugere ser o mesmo efeito de dinâmicas nacionais. Por sua vez, o crescimento mais intenso nos grandes municípios sugere que a crise econômica e em particular o aumento do desemprego e da pobreza sejam fatores importantes para a explicação do ocorrido”.

Outro estudo do Ipea (Silva, 2020) [ix] relata que, de acordo com levantamentos municipais e uma pesquisa nacional, os cidadãos em situação de rua são na maioria homens (82%), de raça negra (67%), jovens, com baixa escolaridade, estando na rua ou em albergues há bastante tempo, e atribuem essa situação a problemas com álcool e/ou outras drogas, desemprego e desavenças familiares. A maior parte trabalha e apresenta algum problema de saúde. A pesquisa mostra que a situação de rua não necessariamente advém da migração e que esse grupo é produtivo, ainda que atuando em atividades precárias. Essa situação leva a perda da cidadania e dos direitos do indivíduo, que passa a receber a atenção do Estado e da sociedade apenas para as suas necessidades de sobrevivência (Escorel, 1999)[x]

Durante a crise da pandemia de Covid-19, a população em situação de rua foi um dos focos de atenção, ainda que tenha enfrentado dificuldades em acessar as ações emergenciais do governo. Existe uma expectativa (ver declaração do coordenador do MNPR abaixo) de que essa atenção se mantenha após a pandemia, o que seria não só positivo, como também operacionalmente lógico, já que é provável que se observe um aumento dessa população, em razão do desaquecimento econômico e porque as ações levadas à frente, como o provimento de abrigos, a atenção médica por meio do programa de consultórios de rua e a higiene, serão importantes para proteger essa população frente a outras crises, como a climática.

Nas palavras de José Vanilson Torres da Silva, coordenador nacional do Movimento Nacional de População de Rua (MNPR) (Silva, 2020) [xi]: ”Estar nas ruas é difícil e agora com a pandemia ficou muito mais complicado, pois habitação, saúde e educação, entre outras, são direito do povo brasileiro e dever do Estado. Nos oferecem abrigos na modalidade de isolamento, mas quando essa pandemia passar teremos que voltar pras ruas? Pro tormento?”

O esforço de uma sociedade em entender o drama das populações em situação de vulnerabilidade e gerar ações de inclusão pode ser considerado um sinal de que essa sociedade está buscando um novo caminho, mais justo, que pode transformar os determinantes sociais e ambientais da saúde de todos. Na Austrália[xii], por exemplo, a inclusão social tem sido relacionada à melhoria do desenvolvimento pessoal; a saúde mental (VicHealth. 2005) [xiii] e a inclusão de pessoas deficientes e tiveram resultados importantes para o desenvolvimento socioeconômico, como a criação de empregos. (NDS 2020)[xiv].

Pela relevância desse tema na preparação e na resposta a crises sanitárias, como a iminente crise climática, e pela lacuna de conhecimentos, é importante que a comunidade científica de saúde pública dedique esforços colaborativos para conhecer melhor a dinâmica e a distribuição dos efeitos das crises sanitárias em populações em situação de rua. Esse conhecimento será fundamental para orientar ou aperfeiçoar medidas estruturais e conjunturais efetivas e necessárias, proporcionando novas perspectivas às pessoas que estão nesses grupos populacionais não por opção individual consciente, mas como consequência de processos sociais complexos.

Acesse o artigo em inglês.

Confira as referências do texto

*Luiz Augusto Galvão, pesquisador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz) e professor adjunto da Universidade de Georgetown (EUA);
Mariya Bezgrebelna, professora do Departamento de Psicologia da Universidade de York, Toronto (Canadá); 
Sean Kidd, professor do Departamento de Psquiatria da Universidade de Toronto (Canadá); 
e Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz.

Texto originalmente publicado no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz

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