13/03/2019
Por: Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)*
Os mosquitos silvestres Haemagogus janthinomys e Haemagogus leucocelaenusforam os principais responsáveis pela transmissão de febre amarela nos recentes surtos da doença no Brasil. A conclusão é de uma pesquisa que analisou quase 18 mil insetos entre 2015 e 2018. O amplo levantamento encontrou mosquitos das duas espécies em grande quantidade e infectados em cidades do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais que apresentavam casos em humanos e em primatas. Análises do genoma dos vírus detectados nesses mosquitos confirmaram a presença da mesma linhagem viral identificada em macacos e pacientes. Liderado pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), o trabalho foi publicado na revista científica Emerging Microbes and Infections.
Segundo os autores, os mosquitos do gênero Haemagogus já eram apontados pela literatura científica como os principais transmissores da febre amarela silvestre no Brasil. No entanto, os surtos que ocorreram entre 2016 e 2018 – com mais de dois mil casos e cerca de 700 mortes – atingiram principalmente a região da mata atlântica, que não tinha registros da doença desde a década de 40. As evidências científicas da pesquisa aumentam a compreensão sobre a atual dinâmica de disseminação do agravo através dos mosquitos e podem contribuir para estratégias de vigilância e controle.
“Após capturarmos e analisarmos cerca de 18 mil mosquitos de mais de 80 espécies, podemos afirmar que estas duas espécies de Haemagogus foram os vetores primários da febre amarela no surto e são elas que devem estar no foco das ações”, declara o coordenador da pesquisa, Ricardo Lourenço de Oliveira, chefe do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC, que atua como referência regional em vetores da febre amarela para o Ministério da Saúde. “A partir dessas informações, é possível estabelecer melhores estratégias de vigilância, avaliar a receptividade de novas áreas à doença e calcular índices entomológicos que podem contribuir para prever a possibilidade de novos surtos”, complementa o primeiro autor do artigo, Filipe Abreu, estudante de doutorado do Programa de Pós-graduação em Biologia Parasitária do IOC/Fiocruz e professor do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG).
Alerta para prevenção
Ao todo, os pesquisadores identificaram 89 espécies de insetos. Além dos H. janthinomys e H. leucocelaenus, apenas três outros mosquitos silvestres foram achados com o vírus da febre amarela, mas em baixa quantidade e em locais específicos. Nenhum Aedes aegypti ou Aedes albopictus – insetos com potencial para transmissão da doença em área urbana – foi encontrado infectado. Considerando os achados, os especialistas reforçam que os surtos foram causados pela transmissão silvestre do agravo, mas alertam que esse tipo de contágio não ocorre apenas no interior de grandes florestas. “Existe a visão de que apenas quem penetra na mata tem risco de pegar febre amarela silvestre, mas não é bem assim. Pessoas que estão fora da floresta, porém em áreas próximas também podem ser picadas pelos mosquitos silvestres. A prevenção da doença, principalmente a vacinação, precisa considerar isso”, enfatiza Ricardo. O entomologista ressalta ainda que não foi encontrado qualquer sinal de transmissão urbana da doença. “Nem mesmo mosquitos Aedes coletados no interior de casas de pessoas com febre amarela estavam infectados”, completou.
Na pesquisa, mosquitos Haemagogus foram capturados tanto no interior das áreas de mata, quanto nas franjas da floresta e nas áreas abertas adjacentes, incluindo quintais de casas próximas. Os vetores também estavam presentes em fragmentos florestais pequenos, muitas vezes, ao lado de bairros com características urbanas.
Transmissão acelerada
As coletas de insetos começaram em 2015, antes mesmo da primeira onda de casos, com início em dezembro de 2016. O levantamento tinha como objetivo avaliar a possibilidade de transmissão da febre amarela na região Sudeste, uma vez que se verificava uma ampliação na rota de disseminação da doença, com registro de casos fora da área endêmica, nas regiões Norte e Centro-Oeste. Mais de cinco mil mosquitos foram capturados em 28 cidades sem transmissão do agravo no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. A presença dos vetores tradicionais da febre amarela, os Haemagogus e os Sabethes, foi verificada em 82% dos locais, apontando alto potencial de transmissão.
Durante os surtos, a área da pesquisa foi ampliada seguindo as notificações do agravo, incluindo também Espírito Santo e Bahia. Nos cinco estados abrangidos, mais de dez mil mosquitos adultos e quase mil ovos foram coletados em 21 cidades com casos humanos ou em primatas, totalizando 44 cidades, sendo cinco contempladas nos dois levantamentos. Os H. leucocelaenus foram encontrados em mais de 70% das localidades e os H. janthinomys, em 57% dos municípios.
A presença do vírus da febre amarela foi detectada em vetores de nove cidades: Macaé, Maricá, Teresópolis, Nova Iguaçu, Valença e Angra dos Reis (Ilha Grande), no Rio de Janeiro; Belmiro Braga e Juiz de Fora, em Minas Gerais; e Domingos Martins, no Espírito Santo. Em oito delas, foram capturadas as espécies H. janthinomys e/ou H. leucocelaenus naturalmente infectadas. Dessa forma, os dados confirmam o papel tradicional do H. janthinomys e consolidam, pela primeira vez, o H. leucocelaenus como vetor primário da febre amarela na região.
Psquisadores trabalhando na coleta de insetos (Foto: divulgação)
Apenas em Ilha Grande, no litoral sul fluminense, a infecção não foi detectada nos vetores primários. O vírus foi identificado em mosquitos Sabethes chloropterus, apontados pela literatura científica como vetores secundários da doença. “Em Maricá, o vírus também foi encontrado em duas espécies silvestres de Aedes, o Aedes scapularis e o Aedes taeniorhynchus, que não possuem relevância na transmissão. Provavelmente, esses mosquitos se infectaram devido à alta concentração de primatas infectados pela picada dos Haemagogus. Os animais doentes costumam descer ao solo da mata, onde são expostos a esses Aedes, que geralmente não voam para a copa das árvores”, explica Filipe.
O trabalho evidenciou a rápida disseminação da febre amarela durante os surtos. Todos os mosquitos infectados foram encontrados em coletas realizadas de 3 a 24 dias depois da confirmação de casos em primatas ou pessoas na região. “O vírus da febre amarela tem alto potencial de disseminação pela floresta. Durante o período de transmissão intensa, encontramos muitos vetores infectados. Porém, em menos de 30 dias, já não achamos mais mosquitos com vírus nas amostras dos locais. Esse dado é importante para a vigilância e reforça a necessidade de detectar precocemente as epizootias [infecção em animais] para prevenir a transmissão da doença para as pessoas”, ressalta Ricardo.
Especialistas analisaram os mosquitos e classificaram as espécies (Foto: Josué Damacena)
Mobilização para resposta à saúde pública
Além do longo período de trabalho de campo, o estudo exigiu um grande esforço para identificar espécies de insetos e realizar análises moleculares. No laboratório, cada um dos 17.662 mosquitos coletados foi analisado por especialistas em taxonomia para identificação das espécies. Para preservar o material genético do vírus da febre amarela, os vetores foram mantidos resfriados desde a coleta em campo. Separados por espécie, data e local de coleta, mais de dois mil grupos de mosquitos foram submetidos às análises moleculares para detectar o genoma viral. O sequenciamento genético apontou para a linhagem associada à epidemia, pertencente ao genótipo sul americano 1E. “Todos os vírus detectados nos mosquitos apresentaram um conjunto de mutações identificado nos primeiros sequenciamentos de microrganismos referentes ao surto e que pode ser considerado uma assinatura molecular desses patógenos”, aponta Myrna Bonaldo, chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do IOC/Fiocruz, e uma das autoras do artigo.
Além da parceria entre o Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários e o Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do IOC/Fiocruz, o trabalho contou com a colaboração do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia. As Secretarias Municipais de Saúde das cidades onde ocorreram as coletas de insetos também apoiaram a pesquisa. Participaram ainda IFNMG, Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Universidade de Montpellier, Universidade Paris-Leste e Instituto Pasteur, da França.
“O resultado alcançado só foi possível por causa das colaborações internas no Instituto Oswaldo Cruz e externas, tanto com as Secretarias e o Ministério da Saúde, quanto com instituições científicas do Brasil e do exterior”, ressalta Ricardo.
Importância da vacinação
Devido à baixa cobertura vacinal, o Brasil se viu, nos verões de 2017 e de 2018, diante dos dois maiores surtos de febre amarela da história. No verão deste ano a doença chegou à região Sul, com quatro casos já confirmados no estado do Paraná. Tendo em vista o risco iminente de novas infecções, o Ministério da Saúde recomendou, no último dia 14 de fevereiro, que quem mora ou vai viajar para as regiões Sul e Sudeste deve se vacinar contra a febre amarela e é preciso tomar a dose ao menos dez dias antes da viagem. Clique aqui e confira o alerta de pesquisadores do IOC/Fiocruz sobre a importância da vacinação.
* Edição: Vinicius Ferreira
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