31/03/2023
Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)
Ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima proferiu, nesta sexta-feira (31/3), a Aula Inaugural do ano acadêmico da Fiocruz de 2023. Com o tema A Fiocruz e eu: percurso afetivo e reflexivo sobre a nosso história recente, a ministra recordou sua trajetória na Fundação desde 1987, quando passou a integrar os quadros da instituição, fazendo sempre um paralelo com a redemocratização do país, processo que teve início dois anos antes. Foi uma palestra plena de afetos e memórias, com lembranças orais e fotografias do seu percurso na Fundação, mas também de defesa da democracia, da ciência e da saúde pública, marca da vida institucional da Fiocruz, que ela presidiu por seis anos, até janeiro deste ano, ocasião em que deixou o cargo para ser nomeada ministra da Saúde. Nísia também listou os desafios que tem à frente do Ministério da Saúde, enumerou os aprendizados deixados pela pandemia e citou algumas das principais ações da Fiocruz no enfrentamento da crise sanitária e humanitária gerada pela Covid-19.
Antes da aula inaugural foi formada uma mesa de abertura do evento, que além da palestrante contou com as participações do presidente da Fiocruz, Mario Moreira, da vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação (Vpeic/Fiocruz), Cristiani Vieira Machado, da coordenadora-geral adjunta da Vpeic/Fiocruz, Eduarda Cesse, da coordenadora de Ensino da Associação de Pós-Graduandos (APG) da Fiocruz, Gutiele Gonçalves, e da presidente do Sindicato dos Servidores da Fiocruz (Asfoc-SN), Mychelle Alves. Antes das intervenções houve a apresentação do Hino Nacional em Libras.
A vice-presidente Cristiani Vieira Machado deu boas-vindas aos novos estudantes, de todos os níveis, da Fiocruz e, citando o conceito de responsabilidade coletiva da escritora americana Toni Morrison, disse que “a responsabilidade que queremos ter é a defesa do [Sistema Único de Saúde] SUS, da democracia, da luta por uma sociedade mais justa, menos desigual e sem discriminações”. Ela acrescentou que o país está em um processo de retomada da democracia, no qual é fundamental reforçar o compromisso com o povo brasileiro. A coordenadora de Ensino da APG, Gutiele Gonçalves, doutoranda em História da Saúde e da Ciência, contou aos novos estudantes como funciona a APG e como se dá o apoio aos alunos. Ela comemorou o recente reajuste da bolsas de pós-graduação e iniciação científica anunciada pelo governo federal em fevereiro, o que não ocorria há dez anos, e afirmou que é uma conquista que chega “depois de muitas lutas, retrocessos e quatro anos de dificuldades”.
A coordenadora-geral adjunta da Vpeic/Fiocruz, Eduarda Cesse, agradeceu a todos que fazem educação na Fiocruz, em especial aos funcionários que dão suporte e atuma na gestão, aqueles que costumam ser o primeiro contato dos estudantes com a instituição. Para a presidente do Sindicato dos Servidores da Fiocruz (Asfoc-SN), Mychelle Alves, o país vive “um momento histórico. Nos últimos anos exercitamos o verbo ‘esperançar’. Hoje, enfim, esperançamos, já que não cedemos a um governo genocida e destruidor”.
Em sua intervenção, o recém-eleito presidente da Fiocruz, Mario Moreira, observou que o Brasil passa por um momento importante de reconstrução, “depois de mostrar muita resistência e resiliência, tanto no plano coletivo quanto no individual”. Moreira, que foi aluno de mestrado da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), também deu boas-vindas aos estudantes e disse que o Brasil necessita de um projeto de desenvolvimento mais justo e inclusivo, com políticas públicas que sigam nessa direção. “A Fiocruz se renova com os novos alunos, pois quem educa também aprende”. Diante das dificuldades do cenário nacional, o presidente comentou ainda que “é muito bom ver, hoje, economistas falando em responsabilidade social, junto com a fiscal”.
Em seguida, a ministra Nísia deu início à sua conferência. Ela disse que a opção pelo título da aula inaugural [A Fiocruz e eu: percurso afetivo e reflexivo sobre a nosso história recente] para poder fazer uma reflexão mais pessoal, já que a apresentação dos planos e projetos para o MS tem sido uma constante nas intervenções públicas que faz. “Aproveitei para fazer um cruzamento da história pessoal com a institucional e a democracia”, explicou a ministra, que entrou para a Fiocruz em 1987 e acompanhou o processo que levou a instituição a desenvolver, com muito debate, a gestão democrática e participativa de que dispõe atualmente. “Como professora e pesquisadora da área de ciências sociais, costumo pensar nos processos históricos que envolvem as sensibilidades”.
Nísia apresentou fotos da gestão Arouca, que é um marco na experiência democrática da Fiocruz, e lembrou de quando ingressou na Fundação, na época uma jovem socióloga casada e com dois filhos e que dava aulas. Na Fiocruz ela recebeu o convite do médico Paulo Gadelha, que anos mais tarde também seria presidente da instituição, para trabalhar no projeto Memória Médica da Assistência Social. “Foi uma época muito rica para a Fiocruz, de muita discussão e confronto de ideias. A gestão Arouca se tornou um marco no processo de redemocratização de abertura para a sociedade. Tínhamos um sentimento ascendente de que a democracia triunfaria e que os ideias da saúde coletiva vingariam na América Latina. Como disse Sílvio Romero em outro contexto e outra época, a Fiocruz contava com um 'bando de ideias novas' que a fizeram avançar”.
A ministra recordou diversos momentos célebres do debate de ideias na Fiocruz, como a criação da Escola Politécnica de Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz, unidade que entre outras atividades se dedica à preservação da memória da instituição, da Superintendência de Informação Científica, que depois se tornou o atual Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict). Ela também recordou as questões levantadas pela Reforma Sanitária e as relativas à assistência, que envolviam o Instituto Fernandes Figueira e o então Hospital Evandro Chagas, hoje Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI). E citou ainda as controvérsias, atualmente superadas, entre o campo biomédico e o das ciências sociais. “Foi assim, com democracia e consensos, que conseguimos avançar e construir. Para tudo isso, esta instituição sempre demonstrou ter muita sabedoria política”.
Nísia mencionou as dificuldades geradas pelo presidente Fernando Collor de Mello, que em 1990 não aceitou o resultado das eleições da Fiocruz. O fato levou a um grande impasse e a uma forte reação da comunidade, apoiada por outras instituições das áreas de saúde e ciência. Ela contou da negociação com o governo, que permitiu que o virologista Hermann Schatzmayr fosse nomeado presidente. A expansão nacional da Fiocruz também foi citada. Nísia destacou a decisão do então presidente Carlos Morel de implantar uma unidade da Fundação no Amazonas. Presença que foi efetivada e ampliada em gestões posteriores, à frente os presidentes Paulo Buss e Paulo Gadelha.
A ministra disse que a atuação da Fiocruz na pandemia de Covid-19 é um grande marco na história da instituição. “Atuamos na assistência, produzimos vacinas, construímos um centro hospitalar, criamos a Rede Genômica, fizemos diversos estudos, geramos informação de qualidade para a sociedade e nos engajamos em um conjunto de ações em favor das populações em situação de vulnerabilidade. A pandemia foi uma catástrofe e agravou as desigualdades. O Brasil teve 700 mil mortes, muito por conta do negacionismo do governo passado, que insistiu na desinformação, no descrédito da ciência e em medicamentos ineficazes”.
O material de propaganda das duas campanhas eleitorais da Fiocruz das quais a agora ministra da Saúde participou, em 2017 e em 2021, quando foi eleita e reeleita presidente da Fundação, foram apresentadas na conferência, com Nísia focando na ideia da instituição como uma construção de todos.
Os desafios que a nova ministra tem à frente do MS foram sintetizados em sete necessidades. São elas: a necessidade de investimentos contínuos em C&t&I e a promoção da equidade no campo científico; a de reorientar as atividades de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação no campo biomédico; a descentralizar a produção de bens de saúde (vacinas, medicamentos etc); a de mudar o paradigma da comunicação da ciência, aprofundando as relações entre ciência e democracia; a de fortalecer os sistemas de saúde e proteção social; a de fortalecer a governança global e o papel do multilateralismo; e a de desenvolver abordagens interdisciplinares diante de desafios cada vez mais complexos.
Ela também destacou entre suas prioridades o fortalecimento do SUS, a retomada da vacinação em larga escala e o incentivo a iniciativas regionais, estaduais e municipais. E citou o Consórcio Nordeste, que surgiu por conta da inação do MS no governo passado e permitiu aos estados da região registrar importantes avanços na atenção básica e na saúde da família. “É fundamental que o Ministério recupere sua capacidade de coordenação nacional”.
Nísia afirmou que a democracia, em todo o mundo, está sob ataque. “A matriz do negacionismo é a negação do Holocausto, como diz Jeffrey Alexander no artigo Vociferando contra o iluminismo: a ideologia de Steve Bannon, que questiona a democracia”. Citando o sociólogo liberal americano Robert Merton, a ministra disse que nos regimes ditatoriais existem avanços científicos, mas apenas na democracia os resultados desses avanços podem ser debatidos e apropriados pela sociedade.
A ex-presidente da Fiocruz, que nos anos 1980 participou de movimentos pela redemocratização na universidade, ressaltou que a proteção social e o combate à pobreza e à fome precisam ser prioridades. “A luta democrática continua, porque ainda há muito a avançar em termos de inclusão social, de desenvolvimento sustentável, de educação, de saúde pública, de combate aos preconceitos. No início do século 20, Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e outros pesquisadores da Fiocruz denunciavam os sertões esquecidos e enfermos do Brasil. Os sertões continuam a existir, muitas vezes ao nosso lado. São as populações invisíveis, para as quais a democracia ainda não chegou. A democracia precisa existir também no plano micro”. Nísia concluiu a aula inaugural caracterizando o SUS como um sinal positivo do Brasil, que precisa ser fortalecido. “Saúde é democracia, inclusão e desenvolvimento. Isso eu aprendi nesta casa, que sempre foi pra mim uma escola de pensar a saúde e a democracia. Pensar com liberdade e com afeto”.
Ao final do evento houve uma apresentação do projeto Ballet Manguinhos, que surgiu na comunidade situada no entorno da Fiocruz e hoje está presente em 20 favelas cariocas. Contando com 410 crianças e adolescentes, o Ballet Manguinhos oferece não só aulas de dança, como também de circo e boxe. O grupo apresentou quatro coreografias: Mulher do fim do mundo, Construção, Valsa das horas e Balé da felicidade.
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