31/03/2022
Suely Amarante (IFF/Fiocruz)
Ser mãe deve ser uma decisão das mulheres, não um destino obrigatório. Isso está na base das reivindicações por direitos sexuais e reprodutivos. Da mesma forma, a corresponsabilidade pelo cuidado das crianças, com os pais e as políticas públicas, é uma reivindicação para que a reprodução social do trabalho e da vida não recaia apenas nos ombros das mulheres, especialmente das mães.
Em 2020, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad Contínua) mostrou que o trabalho doméstico recai principalmente sobre as mulheres em suas famílias, mesmo que elas também possuam, assim como seus parceiros, algum trabalho remunerado fora do domicílio. A pesquisa apresentou que, felizmente, o percentual de participação dos homens com afazeres domésticos cresceu entre 2016 e 2019, indo de 71,9% para 78,6%. No entanto, as mulheres continuam sendo as mais responsáveis por esse trabalho.
Além das tarefas domésticas, a pesquisa demonstra que a maternidade também exige uma presença maior da mulher quando comparada à paternidade. Historicamente, a sociedade cobra mais a presença e atenção da mãe do que do pai, assim como condena aquelas que deixam seus filhos para buscarem experiências profissionais ou de lazer. Para falar um pouco sobre a maternidade real e os desafios enfrentados pelas mulheres na conciliação de dupla, muitas vezes, da tripla jornada de trabalho, convidamos a psicóloga e pesquisadora do Banco de Leite Humano do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Eliane Caldas.
Qual a sua opinião sobre a visão romântica da maternidade?
Eliane: A visão romântica da maternidade nos apresenta a ideia de que as mães são perfeitas, angelicais e santas. Essa visão, frequentemente, serve para favorecer uma opressão e passar a ideia de que ser mãe é a vontade de todas as mulheres. No entanto, quando a mulher passa a ser mãe, muitas vezes se encontra sozinha, para dar conta de sua vida e da vida de seus filhos, sem rede de apoio e até mesmo sem companheiro presente.
Como isso funciona na prática, principalmente para as mulheres que não contam com uma rede de apoio?
A mulher/mãe, na sociedade complexa e industrial, falta tempo para agir a sua vida. São obrigações e mais obrigações para dar conta, muitas vezes, assume sozinha os cuidados dos filhos que, por algumas situações, tira-a do mercado de trabalho e a faz viver uma responsabilidade pesada.
Para ser mãe tem-se que querer muito. E sem rede de apoio a situação só piora. Mãe, além de carinho, amor e compaixão é também mulher que chora, sofre, reclama. Mãe carrega nas costas dupla e tripla jornada. Se ser mãe é padecer no paraíso, há algo de errado, nem sempre visto e/ou negado socialmente. Nesse contexto, pelo menos por um minuto, as mulheres vão se arrepender de terem feito a escolha de um dia quererem ser mães.
Qual a importância do apoio familiar e da figura paterna no aleitamento materno?
A figura paterna no aleitamento materno e o apoio familiar, quando se tem, serão holding para a mulher, que nesse momento também se torna um pouco infant, para entrar em sintonia com o seu bebê real. Trata-se da chamada preocupação materna primária, conceito de Winnicott, que se refere ao estado psicológico da mãe, que tem início na gestação e estende-se às primeiras semanas após o parto.
Como essa família pode contribuir para que essa mulher se sinta acolhida, cuidada, após o nascimento do bebê, em especial, no puerpério?
Essa família pode fazer a comida para a puérpera, pode limpar a casa, lavar e passar as roupas, tomando para si os afazeres diários da mulher. Enfim, deixar o ambiente satisfatório para que o binômio mãe e bebê possa viver um bom encontro.
Muitas mulheres enfrentam desafios/problemas no retorno ao trabalho, principalmente na conciliação trabalho X amamentação, devido à falta de apoio das empresas. Como você avalia essa questão? O que podemos fazer para que as instituições acolham essas mulheres sem que elas se sintam ameaçadas, sobretudo com uma possível demissão?
Cada momento no processo da amamentação exige muito da força egóica da mulher. O bebê do puerpério é diferente do bebê de um mês, que difere daquele de três meses e do de seis meses e de um e dois anos. Durante o processo de desenvolvimento, a mãe/mulher vai tendo que se adequar muito rápido a cada movimento do seu bebê, que cresce muito rápido e que não favorece zonas de conforto para sua mãe/cuidadora. No retorno ao trabalho, muitas vezes a rotina continua sendo a mesma, mas para a mulher que teve seu filho (a), não! Ela se prepara para a volta e quer até continuar amamentando, mas lhe falta muito apoio. São os colegas de trabalho que esperam que ela continue com o mesmo desempenho ou até mais por ter ficado de licença maternidade. É a falta de uma sala de apoio à amamentação. É a falta de legislação que ampare essa mulher e favoreça também a todas as empresas amiga da mulher a ter benefícios ao apoiar a sua funcionária. É a falta de boas creches para receberem as crianças enquanto a mãe trabalha, e que poderiam existir nas próprias empresas.
Enquanto as mulheres forem vistas pelo parâmetro do trabalhador que não gesta, estaremos distantes da equidade frente à força do mercado de trabalho. Mãe é mulher sobrecarregada. Cansada. Emocionalmente instável. Contraditória e em vários momentos sem a opção para ser diferente.
A prática do cuidado atípico
Receber a notícia de que um filho não terá um desenvolvimento típico é, certamente, um choque para uma mulher que está gestando, são muitos os questionamentos, as preocupações, anseios e, até mesmo frustrações. O script muda com o diagnóstico de uma deficiência. “Ser mãe atípica é, na verdade, uma maternidade que ninguém desejou, que ninguém nunca quis ser”, destaca a médica cardiopediatra e mãe atípica da pequena Cecília, Deborah Chalfun.
Como é ser uma mãe atípica? Você acha que tem uma sobrecarga emocional diferente das outras mães típicas?
Deborah: Ainda temos muito preconceito sobre a maternidade atípica, pois sabemos pouco sobre tudo que envolve a rotina de uma mãe/família que tem uma criança/filho com alguma deficiência. Quando você recebe um diagnóstico que o seu filho vai nascer ou nasceu com alguma deficiência, o seu mundo desaba, parece que não terá mais felicidade ou que o seu filho não será feliz. Tudo isso gera uma sobrecarga emocional. O processo de aceitação do diagnóstico atravessa muitas fases e descobertas, permeado por muitas preocupações e desafios. As nossas preocupações são diferentes das preocupações das mães típicas. Não que a nossa forma de maternar seja pior ou diferenciada das demais, mas em termos gerais, ela precisa de mais suporte, compreensão, acolhimento e mais uso, principalmente para as mães que dependem, dos serviços públicos.
A mãe que concilia a maternidade atípica com o trabalho formal, como essa rotina pode ser gerenciada para que ela também tenha tempo para o autocuidado?
Deborah: Eu sou médica e pela natureza da minha profissão tenho facilidade em conciliar os horários para que eu possa trabalhar fora e exercer a maternidade. Depois do nascimento da minha filha, me dedico mais à rotina dela, ao acompanhamento das terapias, a busca por tratamentos mais eficazes, enfim, tarefas que uma mãe com uma rotina/sobrecarga de trabalho formal teria mais dificuldade em conciliar.
Neste sentido, muitas mães são obrigadas a deixarem o trabalho para dedicação exclusiva à maternidade, ao cuidado com a criança. Em relação ao autocuidado, é fundamental que essa mulher olhe também para si e veja as suas necessidades, que reconheça e acolha suas fragilidades. É preciso desmistificar o título de uma mãe guerreira, heroína, pois na maioria das vezes, por trás desse título o que encontramos é uma mulher sozinha, sem apoio e que arca com o cuidado e o suporte financeiro da família.
Na sua opinião, quais são os principais desafios enfrentados na maternidade atípica? Como isso pode ser melhorado/minimizado?
Deborah: O grande desafio é nos reconhecer como preconceituoso, capacitista (discriminação de pessoas com deficiência) e lutar contra esse preconceito que é algo estrutural e, além disso, trabalhar diariamente para que ele seja vencido, assim será possível vivermos em uma sociedade inclusiva e respeitosa. O meu desafio começou em casa, aceitando a minha filha como ela é e não como eu a idealizei, entendendo que, embora ela tenha limitações e necessita de um cuidado diferenciado, ela é uma criança e precisa desfrutar dessa condição. Isso envolve o respeito, entender que o desenvolvimento da minha filha, embora eu tenha todo um aparato de recursos médicos e terapêuticos, acontecerá no tempo dela.
Quando entendemos e acolhemos o tempo e a condição de uma criança, de uma família atípica é possível tornar a rotina mais leve. Para minimizar os desafios do cuidado atípico, é importante uma rede familiar ou alguém com quem você possa contar, uma equipe médica e multidisciplinar, ainda que seja na assistência pública, que você confia. Outro fator relevante é a troca de experiências, falar das vivências em comum que aproximam mães atípicas, o que as permitem ver que não estão sozinhas. Isso promove a construção de vínculos e fortalece a rede de apoio.
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