01/10/2019
Por: Luiza Gomes (Cooperação Social da Fiocruz)
Na semana em que jornais dentro e fora do país repercutiram o aumento no número de assassinatos de crianças e adolescentes durante operações policiais no Rio de Janeiro, a Fiocruz, por meio de sua Coordenação de Cooperação Social, realizou o seminário Segurança Pública, participação social e saúde em favelas, na última terça-feira (24). O evento contou com a presença dos alunos do curso de desenvolvimento profissional em Estratégias para Territorialização de Políticas Públicas em Favelas, realizado em parceria com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, e também com público externo, no Campus Manguinhos da Fiocruz.
O encontro teve como objetivo chamar atenção para uma instância de controle social pouco conhecida: os conselhos comunitários de segurança pública. Os conselhos são espaços de participação popular na política de segurança, criados por uma resolução da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro em 2005, com foco na promoção de cidadania e redução da violência. Os danos muitas vezes irreversíveis da política de segurança para as favelas justificam a urgência do tema, de acordo com os organizadores.
“Não é tão comum vermos a discussão sobre a relação entre a segurança pública e a saúde, mas é um debate que tem que ser feito. Até porque a violência armada impõe condições severas à vida e afeta quase todas as formas de participação social, principalmente na periferia, e, com isso, a possibilidade do controle social das políticas públicas em geral: sejam de saúde, educação, habitação, e outras”, argumentou Leonardo Bueno, da Cooperação Social da Presidência.
Ele recobrou uma fala da presidente da Fiocruz Nísia Trindade, durante o II Encontro sobre Saúde, Violência e Política de Drogas, realizado no Centro de Referência da Juventude (CRJ-Manguinhos), em 2018. Na ocasião, Nísia enfatizou os esforços feitos pela instituição no sentido de difundir o entendimento de que “a violência é uma questão de saúde que não se resolve com mais violência”.
Desde 2017, a Fundação Oswaldo Cruz realiza oficinas, seminários e articulações para consolidar seu Programa Institucional de Violências e Saúde, com protagonismo do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/Ensp). O departamento foi criado em 1988 com o objetivo de investigar o impacto da violência sobre a saúde da população brasileira e latino-americana e homenageia em seu nome um funcionário da Fiocruz, morador de Manguinhos, que desapareceu após ter sido levado por policiais da Divisão Anti-Seqüestro (Das) do Rio, conforme noticiado por veículos da imprensa local.
Maria José Silva, assessora da deputada Martha Rocha e militante da segurança pública, falou sobre sua experiência no Complexo da Maré
A experiência dos conselhos comunitários
O modelo dos conselhos comunitários foi elencado como uma das prioridades do Plano Nacional de Segurança Pública, em 2007, e em maio desse ano o Ministério da Justiça e Segurança Pública lançou a Diretriz Nacional de Polícia Comunitária, que reúne estratégias e filosofias para a aproximação entre polícia e comunidade. A elaboração do documento teve a colaboração dos 26 estados e do Distrito Federal, sob a coordenação da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp).
“A ideia original dos conselhos era a de que a polícia estaria submetida a espaços de participação e controle social da área de abrangência onde ela atua, mas na experiência do estado do Rio de Janeiro, o modelo de segurança pública ainda é mais pautado pela presença de policiamento ostensivo nas comunidades”, contou Leonardo Bueno, que também é doutor pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para ele, a segurança pública precisa ser debatida cada vez mais de forma intersetorial, por trabalhadores de diferentes áreas, para que possa ser efetivamente transformada.
Segundo Maria José Silva, assessora da deputada Martha Rocha e militante da segurança pública no Complexo da Maré, atualmente existem 65 Conselhos Comunitários formalizados nos municípios do Estado do Rio de Janeiro, que surgiram com o compromisso de ser uma ponte entre a comunidade e a polícia de aproximação.
“No início da experiência da Maré, todo mundo ia pra dentro do Batalhão para discutir as questões locais: se a comunidade tivesse com problema com a Light, com a Cedae, o Comandante, junto do presidente da associação de moradores, ajudavam a resolver tudo”, lembrou. Ela estimulou que os presentes - em sua maioria, moradores de territórios de favelas – procurassem participar ativamente desses espaços: “Só a ação cura o medo”, enfatizou.
As contradições
Em contraponto, Elenice Pessoa, moradora de Manguinhos e ex-conselheira do Conselho Gestor Intersetorial (CGI) - instância de controle social da política de saúde do território -, problematizou a tensão na relação entre policiais e moradores.
“Todos nós que moramos nas favelas somos suspeitos. Aí o rapazinho vem na bicicleta, o policial acha que o garoto parece um marginal, manda ele descer. ‘Cadê a moto, cadê a droga?’, bate no rosto dele, grita com ele, humilha. Um rapazinho que completou 18 anos naquela semana, que é pai e trabalhador. Aí quando o assunto chega no Batalhão, viram que foi engano. Aí esse jovem de 18 anos... Como ele fica?”, indagou Elenice.
(O jornal norte-americano The Washington Post deu destaque ao aumento do número de mortes de crianças e adolescentes em operações policiais no Rio no dia 24 de setembro)
O extremo grau de tensão desse convívio, permeado por conflitos armados, não impacta somente os moradores. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgados na última quarta-feira (25) expuseram outro aspecto dramático da questão: mais policiais militares se suicidam do que morrem em confrontos durante as operações.
“Hoje em dia o debate público está muito pautado pelos momentos em que há óbitos (que são os mais graves e mais explícitos); mas existe toda uma gama de processos de adoecimento, de impacto na dimensão social da saúde que praticamente não há registro, tanto de moradores, quanto de trabalhadores que atuam em territórios marcados por esse tipo de violência”, destacou Leonardo Bueno.
De acordo com a Comissão de Análise da Vitimização Policial da Polícia Militar do Rio de Janeiro, todo dia de três a quatro policiais são afastados com diagnósticos psiquiátricos na corporação. Em um levantamento referente ao ano de 2018, foram contabilizados 1.320 policiais militares com licença médica em decorrência de problemas de saúde: quase metade deles por reações ao estresse grave (567). Segundo o representante da Comissão, foram identificados 152 casos de depressão, 118 por transtorno de ansiedade e 105 casos por “transtorno depressivo e ansioso”.
Durante o encontro, foi exibida a videorreportagem Brazil Favela Trauma gravada pela agência internacional de notícias Associated Press em 2017, na favela da Cidade de Deus do Rio de Janeiro sobre impactos da violência armada na saúde de moradores, destacando o sofrimento psíquico e os traumas gerados por eventos de violência com uso de armas de fogo.
No Portal Fiocruz
Mais Notícias