28/01/2015
Por Daniele Souza/ PenseSUS
A polêmica sobre a necessidade de investimento na saúde e a abertura ao capital estrangeiro é antiga. No âmbito do debate, a preservação do Sistema Único de Saúde, de áreas estratégicas da saúde no Brasil, o direito à saúde, a relação de público x privado e a fiscalização. Recentemente, o assunto voltou à discussão com a aprovação da Medida Provisória 656 (MP 656) que versava sobre isenção fiscal para aerogeradores, mas passou a incluir outros tópicos, como a autorização para o capital estrangeiro investir na saúde.
Entre as emendas de deputados federais na MP 656, foram inseridos tópicos desconexos, como o refinanciamento de dívidas de times de futebol sem contrapartida, reajuste de Imposto de Renda e realinhamento de impostos sobre bebidas frias. A medida provisória, com esta mistura de assuntos, gerou protestos de diversas instituições, incluindo o manifesto de entidades do Movimento da Reforma Sanitária, contrário ao investimento estrangeiro na saúde.
A despeito da controvérsia, a medida foi sancionada em 19 de janeiro, por meio da Lei 13.097, trazendo modificações para Lei 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde): no artigo 142, é permitida a participação direta ou indireta, inclusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde, sem restrições presentes na lei anterior.
Para a médica sanitarista Maria Angelica Borges dos Santos, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), a MP 656 trouxe um formato de abertura ao capital estrangeiro ainda mais radical do que as discussões que já corriam no Legislativo e uniu segmentos que possuíam prerrogativas de financiamento bem distintas e poderiam estar desunidos: “A grande sacada dos relatores para viabilizar a aprovação foi a abertura total do setor de serviços de saúde ao capital estrangeiro, sem distinção entre entidades com e sem fins de lucro”, explicou. Maria Angelica também criticou a aprovação da entrada de capital estrangeiro na saúde, no âmbito legislativo, sem debates nas instâncias decisórias do SUS, sem participação social.
De acordo com Maria Angelica, a MP 656 também não foi a primeira tentativa de aprovar o investimento estrangeiro na saúde. Como exemplo recente, a pesquisadora citou o Projeto de Lei (PL) 259, em 2009, que já tentava flexibilizar a entrada de capital estrangeiro, embora preservasse áreas de interesse da segurança nacional, tais quais transplantes, células tronco, quimio e radioterapia. Ao longo dos últimos anos, a saúde já vinha incorporando grandes grupos de investidores internacionais no setor privado, a exemplo do Grupo Carlyle (acionista da Qualicorp, um “fenômeno” empresarial de intermediação na saúde), da UnitedHealth e da compra de hospitais por grandes grupos privados da saúde.
A preocupação de pesquisadores, profissionais de saúde e dos representantes do Movimento da Reforma Sanitária é que a saúde possa se tornar um bem comerciável, limitando o acesso a quem tem dinheiro, com valorização de lucros em detrimento do Sistema Único de Saúde, público, universal, um direito conquistado de todos os cidadãos.
PenseSUS: Não é contraditória a inclusão da autorização para o capital estrangeiro investir na saúde, levando em consideração a Constituição Federal e a Lei 8080/90? Por quê?
Maria Angelica Borges dos Santos: O tema da constitucionalidade da MP é um dos mais debatidos e, como em qualquer matéria jurídica, as interpretações podem ser distintas. Para simplificar a conversa, o argumento mais interessante que li estava no manifesto da Abrasco sobre o tema. Abrir a saúde para o capital estrangeiro na forma da MP 656 é transformar um artigo de vedação em uma inclusão sem restrições - não faz sentido lógico.
O mais interessante na abertura para capital estrangeiro é o fato de instrumentos, digamos, paralegais, serem a base para respaldar essa abertura. O estudo da Advocacia-Geral da União (AGU) que respaldou o lançamento de ações da Amil na Bolsa americana e a compra da Amil pelaUnitedHealth (a Informação 002/2008/PROGE/GECOS) é uma miscelânea de argumentos frágeis contidos em um instrumento que, a rigor, apenas sugere uma linha de conduta para órgãos vinculados à Administração Pública Federal. Não tem nenhuma grande força jurídica. Invoca a concorrência como motivo para a admissibilidade da entrada de capital estrangeiro na saúde e o resultado é a aprovação da compra da Amil pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em tempo recorde, sem passar pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que deveria analisar impactos sobre a concorrência. Conclusão: somos um país pseudojudicialista, onde vale qualquer justificativa se as forças político-empresariais são favoráveis.
Na prática, qual a diferença com relação à permissão anterior, restrita, do capital estrangeiro a planos de saúde, seguradoras e farmácias?
A explicação é que essas três atividades estão fora do escopo direto de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS). A vedação constitucional ao capital estrangeiro nos serviços de saúde tinha esse sentido de preservar as áreas de atuação do SUS. O texto constitucional pode ter sido fruto de uma negociação para admitir a atividade privada na saúde, tentando mantê-la sob algum controle.
O que explica essa preocupação é o fato de a imbricação público-privada nos serviços de saúde no Brasil ser uma das mais extremas do mundo. Ainda que muitos leitos privados tenham sido perdidos nos últimos dez anos, dois terços de nossos hospitais são privados (metade com fins de lucro e metade sem fins de lucro) e grande parte deles serve ao SUS e aos planos de saúde. Então, embora o capital estrangeiro em princípio seja tema pertinente para a saúde privada, ele acaba entrando sim no SUS, porque temos uma ampla base de prestadores privados integrando o sistema público.
Como isso poderia, também, impactar a questão da fiscalização e o controle pelo Estado?
O que provavelmente vamos ter com a entrada de mais capital estrangeiro em um primeiro momento não é a criação de capacidade instalada - como advogam os defensores da abertura -, é a oportunidade de alavancar os lucros em saúde. E tudo por meio de fusões e aquisições, com parte de portfólios de investimento de grupos financeiros ou de multinacionais da saúde, como a UnitedHealth.
Controle e fiscalização no Brasil, isso é relativo – não devemos esquecer que, numa "penada", baseada em um instrumento, digamos, paralegal, a ANS “by-passou” a análise de impacto da entrada da UnitedHealth sobre a concorrência pelo Cade. Outro exemplo é o “negócio” da Qualicorp, tão complexo que o próprio criador não conseguia explicar o conceito - dizia apenas que era lucro certo a risco zero. Quem consegue fiscalizar isso?
Então, fica difícil falar em controle da saúde privada no Brasil. E o pior, com a expansão das Organizações Sociais de Saúde (OSS), o SUS cada vez mais se torna dependente da prestação privada, agora de grandes empresas e não mais de Santas Casas isoladas. Quem disse que a SPDM - a maior OSS brasileira, com faturamento anual de R$ 3 bilhões em 2013 - é obrigada a restringir sua clientela ao SUS? Cria um braço SA e está tudo resolvido. Agora, então, com capital estrangeiro liberado até para as filantrópicas, brevemente teremos SUS “powered by” empresas de capital estrangeiro.
Como a participação do capital estrangeiro na oferta de serviços à saúde pode inviabilizar o projeto do SUS?
O objetivo do investimento estrangeiro no estado atual do capitalismo financeiro é sempre a geração de lucro rápido e não necessariamente pela via do aumento da capacidade produtiva. Os países em que se investe são escolhidos pelo diferencial de geração de lucro em relação às matrizes – seja pelos fatores de produção mais baratos, seja pelo acesso a mercado interno. Quando esse diferencial some ou diminui, as matrizes não têm mais por que investir nesses países. O tipo de compromisso das empresas não tem relação alguma com direito à saúde.
A entrada mais esperada do capital estrangeiro se dará na área hospitalar. Hospital é um negócio caro, onde não ocorreu nenhuma mudança tecnológica radical nos últimos 50 anos. É bem diferente da área de laboratórios, onde a automação de fato barateou os exames. Então, é previsível que tenhamos fortes impactos em termos de aumento de preços, inicialmente afetando mais a saúde suplementar.
Em um segundo momento, aproveitando o movimento pelo aumento do financiamento público da saúde, que nós mesmos sanitaristas estamos promovendo, podemos chegar a uma situação de ingresso maciço de prestadores estrangeiros no SUS. É bem possível também que um dia financiemos, por exemplo, a saúde inglesa, porque a internacionalização da marca National Health Service (NHS) faz parte das estratégias inglesas para financiamento de seu sistema de saúde.
E de que forma pode impactar no direito à saúde?
Investimento direto estrangeiro na saúde é um tema em que as discussões se dão com base em baixos níveis de evidência. Há mais clichês do que evidências sobre efeitos benéficos e maléficos. Mas uma unanimidade na literatura é que o investimento estrangeiro acentua as desigualdades de acesso aos sistemas de saúde. Os países em desenvolvimento, onde há intensa entrada de capital estrangeiro na saúde, como Índia e Turquia, não evidenciam nenhum avanço em seu sistema de saúde, no sentido de ampliação do direto à saúde. O que vemos é uma segregação ampliada, com turismo médico, com os próprios hospitais indianos se internacionalizando.
Outro aspecto a ser comentado é que a aprovação da entrada de capital estrangeiro na saúde no âmbito legislativo, sem qualquer debate pelas instâncias decisórias do SUS é, no mínimo, indecente. Desautoriza todo um arcabouço institucional que levamos anos para construir e que será destruído como resultado da abertura da saúde ao comércio internacional. Controle social, estados, municípios e União em pé de igualdade são inadmissíveis nos arcabouços de governança do comércio internacional de serviços, cuja abertura, na prática, está sendo sancionada com a Lei 13.097. O SUS jamais será o mesmo.
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