26/11/2020
Por: Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)*
Um artigo recém-publicado confirma cientificamente, pela primeira vez, a contaminação por metais em peixes do estuário do Rio Doce, no Espírito Santo, após o rompimento da barragem da mineradora Samarco em Mariana, Minas Gerais. O desastre, ocorrido em novembro de 2015, provocou o vazamento de, aproximadamente, 43 milhões de m3 de rejeitos de mineração. As análises mostram que, em agosto de 2017, peixes comestíveis coletados na Vila de Regência, localidade do município de Linhares, no Norte do estado, apresentavam níveis de arsênio, cádmio, cromo, cobre, mercúrio, manganês, chumbo, selênio e zinco acima do permitido para consumo humano. Na mesma época, a concentração de cádmio, cromo, chumbo e zinco nos sedimentos do estuário era de dez a 350 vezes maior do que no período anterior ao desastre.
O Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) colaborou com a pesquisa, coordenada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). O trabalho também teve participação da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Universidade de São Paulo (USP). Os resultados foram publicados na revista científica internacional ‘PeerJ - Life & Environment’.
Desde o desastre, a pesca encontra-se proibida na foz do Rio Doce. Considerando a situação de 2017 e análises de sedimentos do estuário (ambiente de transição entre rio e mar) coletados em 2018, os pesquisadores apontam risco de contaminação crônica e reforçam a necessidade de monitoramento na região. “O estudo detectou níveis muito altos de alguns metais e correlação com proteínas que indicam ocorrência de estresse oxidativo nos peixes. Esse resultado confirma o dano ambiental e aponta risco para a saúde humana. O biomonitoramento é importante e deve ser contínuo”, afirma a bióloga e pesquisadora do Laboratório de Avaliação e Promoção da Saúde Ambiental do IOC e uma das autoras do artigo, Rachel Ann Hauser Davis.
Atividade pesqueira segue proibida na região (Foto: Angelo Bernardino)
“Observamos uma relação entre a contaminação dos sedimentos e dos peixes em 2017 e nossas análises mostram que, até agosto 2018, os sedimentos continuavam contaminados. Não é possível prever quanto tempo isso vai durar”, reforça o doutorando da Ufes e primeiro autor do trabalho, Fabrício Ângelo Gabriel, acrescentando que os rejeitos continuaram, gradativamente, chegando ao estuário tempos após o desastre. “Quando há grande volume de chuva em Minas Gerais, a água traz a lama das margens do Rio Doce e a abertura de comportas de hidrelétricas libera os resíduos acumulados nos reservatórios. Devido a hidrodinâmica do estuário, nem todo o rejeito passa para o mar. Nesse ambiente, é onde fica a maior parte da contaminação dessa tragédia”, completa o biólogo.
Coordenada pela Ufes, com colaboração da USP, a análise de sedimentos coletados no estuário do Rio Doce em janeiro e agosto de 2018 mostrou presença de metais abaixo dos níveis de 2017. No entanto, o grau de contaminação ainda foi classificado como moderado a alto e as taxas permaneciam superiores às registradas antes do desastre. Os resultados foram publicados no periódico Integrated Environmental Assessment and Management, em fevereiro deste ano. Amostras de sedimentos coletadas em fevereiro de 2019 e em janeiro de 2020 ainda estão em análise. Devido à pandemia de Covid-19, a coleta prevista para agosto deste ano não foi realizada e o monitoramento deverá ser retomado em 2021.
Risco para a saúde humana, animal e ambiental
O estudo recém-publicado analisou cerca de 70 peixes de cinco espécies que costumavam ser consumidas e comercializadas na Vila de Regência antes do desastre. Níveis de metais superiores ao recomendado para alimentação por normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou de organismos internacionais foram encontrados em animais de todas as espécies, incluindo variedades de bagre (Cathorops spixii e Genidens genidens), tainha (Mugil sp.) e carapeba (Diapterus rhombeus e Eugerres brasilianus).
A avaliação incluiu amostras de fígado e músculo dos animais e contemplou nove metais – arsênio, cádmio, cromo, cobre, mercúrio, manganês, chumbo, selênio e zinco. “Tudo que é ingerido passa pelo fígado e aquilo que o órgão não consegue metabolizar, se deposita no tecido muscular, que é consumido pelos seres humanos. Por isso, essas análises são importantes no biomonitoramento”, esclarece Rachel.
Quase 90% dos peixes apresentavam altos níveis de manganês, selênio e zinco no fígado. Considerando bagres e tainhas, os nove metais foram detectados em quantidade tóxica no órgão em, pelo menos, um exemplar de cada espécie. Entre os carapebas, sete metais foram identificados no tecido hepático de D. rhombeus e seis, em E. brasilianus.
Quantidades de cromo, manganês e selênio acima do permitido para consumo humano foram encontradas em amostras de músculo em todas as espécies analisadas. Arsênio e zinco foram achados em níveis tóxicos no tecido muscular em quatro das cinco espécies de peixes, com maior índice nos bagres. A contaminação dos músculos por cobre e mercúrio foi menos frequente, ocorrendo em alguns animais de três espécies, enquanto cádmio e chumbo foram detectados em um exemplar da espécie E. brasilianus.
Tanto no fígado como nos músculos, a presença de metais foi correlacionada com a elevação nos níveis de duas proteínas consideradas como marcadores de contaminação: a metalotioneína, que participa da detoxificação do organismo, e a glutationa reduzida, que atua como antioxidante intracelular. “O aumento na síntese dessas enzimas indica que o animal está sofrendo danos pela contaminação ambiental”, pontua a pesquisadora do IOC.
A concentração de contaminantes nos sedimentos foi comparada com a verificada em 2015, em coletas realizadas logo após o rompimento da barragem em Minas Gerais, antes da chegada da lama à foz do Rio Doce, no Espírito Santo. Os valores foram superiores para todos os metais analisados. As maiores variações foram observadas nas dosagens de cádmio, com aumento de 350 vezes; cromo, 23 vezes; chumbo, 20 vezes; e manganês, 12 vezes.
De acordo com os cientistas, embora os rejeitos de mineração contivessem principalmente resíduos de ferro, a lama arrastou para o estuário partículas de metais que se encontravam depositadas no fundo do Rio Doce. “Os metais chegaram junto com os rejeitos. O rejeito composto principalmente por óxido de ferro está associado a metais. No estuário, em função das condições locais do material de fundo, esses metais podem, a médio ou longo prazo, ser biodisponibilizados. A alta contaminação dos sedimentos se reflete nos animais. A situação dos bagres é particular porque são peixes demersais, que estão diretamente associados ao fundo do estuário e, portanto, têm contato com os sedimentos contaminados. Nestes animais, encontramos os maiores índices de contaminação”, comenta Fabrício.
Os autores do estudo alertam que a contaminação por metais representa um risco para a saúde humana, animal e ambiental. Alguns metais, como selênio e zinco, são essenciais para o funcionamento dos organismos vivos, mas se tornam tóxicos em excesso. Outros, como arsênio e mercúrio, podem provocar danos mesmo em pequenas quantidades. “Os metais causam estresse oxidativo nas células, levando à produção de radicais livres, que danificam o DNA. A contaminação está associada a efeitos neurotóxicos e ao risco de desenvolvimento de câncer, entre outras consequências”, aponta Rachel. “O estuário é um local de reprodução para muitas espécies de peixes, e a contaminação pode afetar o processo reprodutivo dos animais, prejudicando futuramente a produção pesqueira na região”, avalia Fabrício.
A pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes), através do projeto ‘Rede Solos Bentos Rio Doce’. O Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) também apoiaram o estudo.
* Edição: Vinicius Ferreira
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