23/11/2021
Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)
Em 2019, um pouco mais de mil isolados de bactérias resistentes a antibióticos foram enviados por laboratórios de saúde pública de diversos estados do país para análise aprofundada no Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que atua como laboratório de retaguarda da Sub-rede Analítica de Resistência Microbiana em Serviços de Saúde (Sub-rede RM), instituída pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Ministério da Saúde (MS).
Em 2020, primeiro ano da pandemia de Covid-19, o número de amostras positivas passou para quase 2 mil. Em 2021, apenas no período de janeiro a outubro, o índice ultrapassa 3,7 mil amostras confirmadas, um aumento de mais de três vezes em relação a 2019, período pré-pandemia.
Os dados reforçam uma preocupação dos especialistas: ao longo da emergência sanitária causada pelo novo coronavírus, vem sendo observado aumento na disseminação de microrganismos capazes de resistir a diversos antibióticos, conhecidos popularmente como ‘superbactérias’.
“Durante a pandemia, houve aumento no volume de pacientes internados em estado grave e por longos períodos, que apresentam maior risco de infecção hospitalar. Também houve aumento no uso de antibióticos, o que eleva a pressão seletiva sobre as bactérias. É um cenário que favorece a disseminação da resistência, agravando ainda mais um problema de alto impacto na saúde pública”, afirma a chefe do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar, Ana Paula Assef.
De acordo com a pesquisadora, o aumento do uso de antibióticos nos hospitais durante a emergência sanitária tem sido apontada em pesquisas no Brasil e no exterior, com alguns trabalhos sugerindo prescrição exagerada. Um grande estudo internacional publicado em janeiro, por exemplo, identificou tratamento com antibióticos em mais de 70% dos pacientes internados por Covid-19. Em contrapartida, a presença de coinfecções causadas por bactérias foi estimada em 8%.
Em agosto, a Anvisa publicou uma Nota Técnica com orientações para prevenção e controle da disseminação de bactérias resistentes em serviços de saúde no contexto da pandemia. O texto reforça que os antibióticos não são indicados no tratamento de rotina da Covid-19, já que a doença é causada por vírus e esses medicamentos atuam apenas contra bactérias. Dessa forma, os fármacos são recomendados apenas para os casos com suspeita de infecção bacteriana associada à infecção viral.
“Em parte, a alta na prescrição de antibióticos nos hospitais durante a pandemia pode ser justificada pelo maior número de pacientes graves internados, que acabam desenvolvendo infecções secundárias e necessitando desses medicamentos. Porém, o uso excessivo precisa ser controlado para evitar que se impulsione a resistência bacteriana”, diz Ana Paula.
Motivo de preocupação
Os dados registrados no Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do IOC correspondem a amostras enviadas espontaneamente pelos Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens) de diversos estados do Brasil. Como laboratório de retaguarda da Sub-rede RM, a unidade atua na análise aprofundada das bactérias resistentes a antibióticos, que são detectadas em casos de infecção hospitalar.
Segundo Ana Paula, enquanto os números nacionais sobre monitoramento da resistência compilados pela Anvisa ainda não estão disponíveis para 2020 e 2021, o aumento observado em centros de referência pode ser considerado como um alerta para o problema.
“Esse ano, já recebemos amostras de estados do Sudeste, Nordeste, Norte e Centro-Oeste. O Laboratório Central de Saúde Pública do Paraná (Lacen-PR), que atua como referência na região Sul e parte do Centro-Oeste, também notificou alta. Não temos como precisar a dimensão do problema em nível nacional, mas é importante agir e isso tem sido reforçado pela Anvisa”, diz a pesquisadora.
Na Nota Técnica publicada em agosto, a Anvisa aponta que os dados disponíveis são motivo de preocupação. O documento destaca dados do Lacen-PR, onde o número de amostras recebidas subiu 90%, comparando os primeiros trimestres de 2019 e 2021.
Além do volume, o perfil dos microrganismos chama atenção e foi expresso no documento. Entre outros aspectos, foi destacado aumento na resistência à polimixina, fármaco utilizado como última opção terapêutica, para combater infecções que já não respondem aos demais antibióticos. De acordo com a Nota, no Lacen-PR, os isolados resistentes à polimixina representaram 20% das amostras de Acinetobacter baumannii (uma importante bactéria causadora de infecções hospitalares) analisadas no primeiro trimestre deste ano.
“A polimixina é um medicamento antigo, que não era mais usado por causa dos efeitos colaterais, mas voltou a ser empregado nos últimos anos por causa da resistência aos fármacos mais modernos. Como se trata de uma das últimas opções terapêuticas, mesmo um aumento discreto nesse tipo de resistência já é preocupante”, enfatiza Ana Paula.
No Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do IOC, a proporção de detecção de bactérias A. baumanii resistentes à polimixina subiu de 2,5% em 2019 para 5,6% em 2021 considerando-se o conjunto de amostras recebidas para identificação ao longo deste período. Em bactérias da espécie Pseudomonas aeruginosa (outra importante causadora de infecções hospitalares), o percentual passou de 14% para 51%. Já entre as enterobactérias, o aumento foi de 42% para 58%.
As infecções causadas por bactérias resistentes geralmente são associadas à alta mortalidade. A Nota Técnica da Anvisa cita, por exemplo, um surto registrado em uma unidade de terapia intensiva de Maringá, onde de dez pacientes internados por Covid-19 infectados por bactérias A. baumanii resistentes a antibióticos carbapenêmicos, sete morreram.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que superbactérias causam cerca de 700 mil mortes anualmente. “Bactérias como Acinetobacter e Pseudomonas são oportunistas, causam infecções em pacientes internados, com saúde debilitada. Quando esses microrganismos apresentam resistência, muitas vezes, não se consegue controlar a infecção e há risco de óbito. Esse já era um grande problema antes da Covid-19 e, agora, estamos evidenciando uma piora neste quadro”, salienta Ana Paula.
Dupla resistência
A combinação de mecanismos de resistência também preocupa. Em setembro, a Anvisa divulgou um alerta sobre o registro de casos, no Paraná e em Santa Catarina, de bactérias P. aeruginosa capazes de produzir, simultaneamente, as enzimas carbapenemases KPC e NDM, que destroem antibióticos carbapenêmicos. A presença destas duas enzimas inviabiliza a utilização de um novo antimicrobiano, o fármaco ceftazidima-avilbactam, que tem sido usado nos hospitais brasileiros para o combate das bactérias produtoras de KPC.
Em agosto de 2020, foi detectado o primeiro caso dos genes de KPC e NDM em uma mesma cepa de P. aeruginosa. Em 2021, já foram identificados 13 pacientes infectados com P. aeruginosa multirresistente.
A associação de enzimas que inibem a ação de antibióticos carbapenêmicos também tem sido detectada em diferentes espécies de importância clínica analisadas no Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do IOC. Por exemplo, este ano, a unidade identificou a combinação de enzimas carbapanemases NDM e OXA-58 em amostras de A. baumanni isoladas em Manaus e na Bahia. “Estes achados alertam para uma possível tendência entre as amostras hospitalares”, pondera Ana Paula.
Recentemente, Ana Paula contribuiu para elaboração de cartilha que destaca a importância do uso correto dos medicamentos para prevenir o surgimento das ‘superbactérias’. Confira aqui.
‘Espalhe a consciência, pare a resistência’
Além de medidas para prevenir as infecções hospitalares, como higiene das mãos, uso de equipamentos de proteção individual e limpeza dos ambientes, o combate à resistência depende do uso adequado dos antibióticos, tanto dentro como fora dos hospitais.
Por esse motivo, a OMS, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Mundial da Saúde Animal (OIE) promovem anualmente a Semana Mundial de Conscientização sobre o Uso de Antimicrobianos, que ocorre de 18 a 24 de novembro. Este ano, a campanha tem como tema ‘Espalhe a consciência, pare a resistência’, reforçando a importância da disseminação de informações sobre o assunto para todas as pessoas.
“Existem bactérias vivendo no nosso organismo, nos animais e no ambiente. Sempre que usamos antibióticos, em unidades de saúde, em casa ou na agropecuária, aumentamos a pressão seletiva sobre esses microrganismos. Isso acelera a emergência e a disseminação da resistência, pois as bactérias conseguem transmitir os mecanismos de resistência umas para as outras”, explica Ana Paula.
A pesquisadora ressalta que, além do risco individual para os pacientes, o espalhamento da resistência aos antibióticos representa uma ameaça global, já que a capacidade de tratar infecções, considerada uma das maiores conquistas da medicina moderna, pode ser perdida no futuro.
“É importante que as pessoas entendam que os antibióticos só atuam contra bactérias e não têm efeito contra vírus ou qualquer outro microrganismo. Não se pode tomar antibiótico por indicação de conhecido ou familiar. Para que esses medicamentos continuem eficazes, eles devem ser usados com critério, apenas com prescrição médica. O paciente precisa seguir a receita de forma irrestrita, com a quantidade de dose e duração da administração exatas”, salienta a microbiologista.
Para ampliar a sensibilização sobre o tema, a pesquisadora idealizou a websérie Confissões de uma bactéria, que está disponível no canal do YouTube do Ministério da Saúde. Com dez episódios, a produção apresenta, em linguagem lúdica, informações sobre a resistência aos antibióticos e medidas preventivas que podem ser adotadas. O projeto é uma iniciativa da Fiocruz em parceria com Ministério da Saúde, Anvisa e Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).
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