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Artigo aborda as características e os desafios das doenças raras


03/03/2022

Fonte: Ensp/Fiocruz

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Segundo o Ministério da Saúde, as doenças raras são caracterizadas por uma ampla diversidade de sinais e sintomas e variam não só de doença para doença, mas também de pessoa para pessoa acometida pela mesma condição. As doenças raras podem ser degenerativas ou proliferativas e a condição para essa classificação é que ela afete até 65 pessoas em cada 100.000 indivíduos, ou seja, 1,3 pessoas para cada 2.000 indivíduos. O Dia Mundial e o Dia Nacional das Doenças Raras é lembrado sempre no último dia de fevereiro. Para esclarecer as características e os desafios dessas doenças, o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Cláudio Cordovil Oliveira, que é membro do grupo internacional de pesquisadores do projeto Social Pharmaceutical Innovation (SPIN), produziu o texto Doenças raras: qual a coisa certa a fazer?. Confira.

Doenças raras: qual a coisa certa a fazer?

O dia 28 de fevereiro marca o Dia Mundial das Doenças Raras. Na verdade, tal efeméride acontece sempre no último dia de fevereiro (28 ou 29, a depender do ano). A escolha da data se deve a um fato curioso. A cada quatro anos, como é sabido, temos o acréscimo de um dia ao calendário, o que ocorre no mês de fevereiro. Assim os dias 28 e/ou 29 de fevereiro acabam sendo os dias mais raros do calendário.

No Brasil, doenças raras são todas aquelas que acometem até 65 pessoas a cada 100 mil (1,3 pessoas a cada 2 mil), consoante definição estabelecida pela Organização Mundial de Saúde. Nos EUA, as que afetam até 200 mil pessoas. E na União Europeia, as que atingem uma pessoa a cada 2 mil. Até o momento foram catalogadas pouco mais de seis mil doenças raras. Cerca de 72% delas têm origem genética e 70% delas iniciam-se na infância. Afetam algo entre 3,5% a 5,9% da população mundial; 300 milhões em todo o mundo;  30 milhões na União Europeia; 25 milhões nos EUA e 13 milhões no Brasil. São doenças muitas vezes graves, incapacitantes e que cursam com risco de vida. Apenas 5% delas possuem tratamento medicamentoso.

Desafio global sem precedentes

Inúmeras razões as tornam um desafio global sem precedentes. Suas características tornam difícil sua abordagem pelas ferramentas convencionais de saúde pública, centradas que estão na prevenção primária. Seus fatores de risco, na maioria das vezes, são inatos ou congênitos e, portanto, inerradicáveis, em tese, por estratégias de prevenção.

Restaria sua detecção precoce através de triagem neonatal como medida de prevenção secundária. Uma medida bem intencionada, mas ainda tímida, quando estamos a falar em algo próximo a seis mil doenças existentes. Em maio deste ano, entra em vigor a Lei Nº 14.154, de 26 de maio de 2021, que aperfeiçoa o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) do SUS, por meio do estabelecimento de um rol mínimo de doenças a serem rastreadas pelo “teste do pezinho”. Com a nova lei, o exame passa a englobar, de forma gradual, 14 grupos de doenças, e poderá identificar até 53 tipos diferentes de enfermidades e condições especiais de saúde. Seis mil doenças raras, aproximadamente; 53 exames de triagem neonatal. Muito ainda por fazer.

Uma portaria que cria a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, aprova diretrizes e institui fontes de custeio existe desde 2014 (Portaria MS 199/2014). No entanto, apesar dos avanços por ela trazidos, persistem desafios. Como a complicada implantação de centros de referência para seu tratamento em território nacional. Segundo o site do Ministério da Saúde, até o momento foram criados 17 destes centros, sendo que nenhum deles na Região Norte. As dimensões continentais do país tornam esse número insuficiente. Fazer com que o paciente tenha pronto acesso ao diagnóstico continua a ser um objetivo relevante e de difícil solução, bem como a terapias medicamentosas que possam impedir a progressão da doença.

Dificuldades no caminho

Outras características tornam tais doenças pouco palatáveis aos preceitos convencionais da saúde pública, quando esta é vista de forma convencional e pouco inventiva. Destacamos algumas destas dificuldades: diagnósticos tardios e de difícil obtenção; ausência de definição de casos para vigilância epidemiológica; codificação reduzida e definição incipiente na Classificação Internacional de Doenças (CID); mecanismos fisiológicos e/ou moleculares pouco conhecidos; insuficiência de linhas de cuidado e itinerários terapêuticos bem definidos, baseados que são em parcas evidências, dada a pequena escala dos estudos (estamos falando de doenças raras!); escassez de dados provenientes de estudos longitudinais; falta de eficiência de programas de triagem vis-a-vis o número de enfermidades pouco frequentes já catalogadas; registros clínicos (registries) e bases de dados de limitado escopo; desenvolvimento de medicamentos fragmentado e pouco frequente; conhecimento sobre a maioria destas doenças insuficiente (afinal também são chamadas de “doenças órfãs”, pelo fato de despertarem pouco interesse de pesquisadores, médicos, fabricantes de medicamentos e gestores).

Tal elenco de dificuldades de encaixe talvez seja responsável pelo modo enviesado pelo qual profissionais de saúde pública ou sanitaristas em solo brasileiro costumam ingressar no debate público sobre a questão. Parecem esquecer dos rudimentos do que configura seu mister: a concepção da saúde como “completo bem estar biopsicossocial e não apenas como ausência de doenças”.

Ao embarcarem no enfadonho ‘samba-de-uma-nota-só’ da assistência farmacêutica e da judicialização, caem na armadilha do senso comum, que jamais concebeu a saúde nos moldes definidos pela Constituição da Organização Mundial de Saúde, desde 1946. Um debate estéril e sem solução aparente.

Ao insistirem na temática farmacêutica como ponto de pauta mais relevante no debate público, os profissionais de saúde pública promovem, ainda que involuntariamente, um círculo vicioso. Na melhor lógica do “cachorro correndo atrás do rabo”, aos pacientes, desinformados do conceito ampliado de saúde, só restaria reivindicar cada vez mais medicamentos de alto custo através da judicialização.

Necessário se faz que os profissionais de saúde pública, com seu considerável poder de agendamento, desempenhem um papel mais expressivo no que tange à adequada compreensão pública do fenômeno, como uma questão de justiça social, equidade e direitos humanos.

Não por outra razão, talvez, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, em 16 de dezembro do ano passado, uma resolução (A/RES/76/132) onde reconhece as pessoas que vivem com doenças raras e seus familiares como uma subpopulação a exigir imediata atenção de governos e sociedade. Como disse, estamos falando de 300 milhões de pessoas ao redor do mundo.

A resolução destaca os desafios comuns enfrentados por grande parte deste contingente populacional. Muitos deles inscrevem-se como Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030. Ressaltamos os mais pertinentes para este grupo populacional: Erradicação da pobreza (ODS 1); Saúde e bem-estar (ODS 3); Educação de qualidade (ODS 4); Igualdade de gênero (ODS 5); Trabalho decente e crescimento econômico (ODS 8); Redução da desigualdade (ODS 10). 

“Não deixar ninguém para trás”

E agora debruço-me sobre uma agenda possível de temas para os profissionais de saúde pública/coletiva de forma a deixar de lado o nó górdio da assistência farmacêutica em doenças órfãs. Um debate nacional a meu ver sem solução a curto e médio prazos, dado o alto custo dos medicamentos. O dever de casa em doenças raras: Proteção aos direitos humanos; combate ao estigma, exclusão e marginalização; capacitismo; vulnerabilidade (ou vulneração); direitos da criança e do adolescente; direitos das mulheres; Agenda 2030 e seu compromisso de “não deixar ninguém para trás”; inclusão social.

Todos estes temas estão relegados a um segundo plano no debate público. Caberia aos profissionais de saúde pública mudar o vetor das discussões, na grande conversação propiciada pela grande imprensa e pelas mídias sociais. Medicamentos, sim; direitos sociais também!

Desta forma, poderíamos vislumbrar a possibilidade de os pacientes pensarem no seu “direito à saúde” para além da (bio)medicalização hegemônica. Não obstante muitos destes medicamentos órfãos destinados a doenças raras visarem necessidades médicas não-atendidas, há espaço para uma agenda de promoção da saúde voltada para este público-alvo. Afinal, o artigo 12 § 1 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais reconhece “o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental”.

Visando dar nossa contribuição à mudança do vetor no debate público, desenvolvemos uma plataforma virtual destinada não só a pessoas que vivem com doenças raras e seus familiares, mas também ao público em geral. “Academia de Pacientes 2030” tem como objetivo a promoção de Educação Continuada não-formal em Saúde Pública, voltada para doenças raras, com foco nas interfaces entre direitos humanos e cidadania, à luz dos ODS da Agenda 2030.
O escritor Aldous Huxley certa vez disse que “às vezes é necessário restabelecer o óbvio”. As doenças raras representam um poderoso convite para que se restabeleça o óbvio esperado de profissionais de saúde pública neste campo: a promoção da justiça social e dos direitos humanos, como éticas subjacentes ao seu ofício. 

* Cláudio Cordovil Oliveira é pesquisador em Saúde Pública do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e membro do grupo internacional de pesquisadores do projeto Social Pharmaceutical Innovation (SPIN).
 

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