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Fiocruz e FCT identificam 25 novos impactos da exploração do Pré-Sal


26/03/2025

Vinicius Carvalho (OTSS/Fiocruz)

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Capa da cartilha.

“Não só eu, como muitos pescadores caiçaras de onde eu moro, estão sofrendo. A vida deles hoje é bem mais movimentada e você vê que as pessoas estão ficando doentes, com insônia, principalmente. Eu sofro de insônia, porque as coisas hoje estão muito mais difíceis. Os peixes estão sumindo, então os pescadores já saem preocupados. Isso, para nós, não é legal. A gente sofre muito com isso, acaba abalando e afetando a nossa saúde. E à noite não tem sono, isso atrapalha muito o nosso dia-a-dia”.

O relato, de um pescador do litoral Sul do Rio de Janeiro, ajuda a dimensionar os impactos gerados pelos grandes empreendimentos no litoral sudestino do Brasil. Para além das perdas ambientais, mais objetivas e mensuráveis, estão danos subjetivos, intangíveis, que afetam a saúde das comunidades que dependem dos ecossistemas costeiros.

Para ajudar a dimensionar com mais profundidade estes impactos, a Fiocruz e o Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT), por meio do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), construíram o Relatório Analítico de Perdas e Danos da Cadeia do Petróleo e Gás do Pré-Sal. O documento identifica 25 possíveis impactos ainda não listados por estudos que embasaram o licenciamento do Pré-Sal, especificamente o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima).

Além disso, o relatório traz 14 recomendações para aprimorar o processo de licenciamento e fortalecer a defesa de territórios tradicionais localizados na área de influência do empreendimento. Entre elas, está centrar a análise do licenciamento ambiental e de suas condicionantes a partir do conceito de Territórios Sustentáveis e Saudáveis, perspectiva que vai além dos meios tradicionalmente avaliados (físico, biótico e socioeconômico), considerando que há relação entre os impactos de diferentes meios, que se acumulam e potencializam.

“O relatório é muito importante porque traz contribuições fundamentais para avaliar impactos que estão além dos contemplados para o licenciamento. Mas precisamos aprofundar as discussões sobre as demandas apontadas para definir os nexos causais entre os novos impactos e a atividade de exploração de petróleo e gás. É uma grande iniciativa para ajudar a aprimorar nossos processos e a prever perdas de forma estratégica e antecipada”, avalia o analista do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Carlos Eduardo Martins Silva, que atua na Coordenação de Petróleo e Gás Offshore.  

Pré-Sal

A exploração do Pré-Sal, a camada ultraprofunda no oceano que armazena petróleo e gás natural, começou há cerca de 18 anos no Brasil. Essa camada possui cerca de 800 quilômetros de extensão e 200 quilômetros de largura, e está localizada entre os estados do Espírito Santo e de Santa Catarina. É tão grande que nela caberiam mais de três estados do Rio de Janeiro.

Em três etapas de perfuração, exploração e alteração no ambiente original, muitos impactos invisíveis já trouxeram consequências notáveis na saúde mental das pessoas e nas dinâmicas das comunidades. Em processo de licenciamento ambiental pela Petrobras junto ao Ibama, a Etapa 4 tem agora como objetivo ampliar a exploração de petróleo e gás natural do Pré-sal da Bacia de Santos, dando continuidade aos projetos Etapa 1, Etapa 2 e Etapa 3.

Os 10 projetos que compõem a Etapa 4 terão cerca de 152 poços, totalizando uma produção média estimada de 123 mil m3/dia de petróleo e 75 milhões de m3/dia de gás natural. O tempo médio de operação previsto para cada uma das unidades é de 25 anos. Para se ter uma ideia, 123 mil m³ de petróleo bruto seriam suficientes para abastecer aproximadamente 5,7 milhões de carros por dia, considerando o petróleo bruto necessário para produzir a gasolina.

“A gente gostaria de aprimorar a forma de fazer este licenciamento. E as condicionantes também devem ser dialogadas com as comunidades. Do que os territórios precisam? Saneamento, educação, formação? Há várias outras possibilidades de condicionantes”, aponta Marcela Cananéa, coordenadora de Justiça Socioambiental do OTSS e integrante das coordenações do Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) e da Coordenação Nacional de Comunidades Tradicionais Caiçaras (CNCTC).

Avanço na classificação de impactos

Nos estudos técnicos do Ibama e das empresas que operam os empreendimentos, são considerados três categorias de impacto: físicos (alterações no solo, água, ar etc.), bióticos (plantas, animais etc.); e socioeconômicos (afetam o modo como as pessoas vivem, trabalham, se divertem e convivem em comunidade etc.), além dos aspectos de cumulatividade (soma de vários impactos no mesmo lugar).

A partir do estudo do OTSS, a Fiocruz e o FCT propuseram cinco novas categorias de impacto ainda não consideradas pelos documentos oficiais: Culturais; Econômicos e sobre o bem-estar material; Institucionais, legais, políticos e igualdade; Sobre a qualidade do meio ambiente habitado e o bem-viver; e Sobre a saúde e o bem-estar das pessoas afetadas pelo empreendimento.

Neste contexto, boa parte das perdas e danos verificada pelo novo estudo foi identificada a partir de lacunas no processo de licenciamento. Um exemplo é sobre os impactos dos navios aliviadores, que são analisados em documentos diferentes do EIA de exploração de petróleo em águas ultraprofundas do pré-sal. Assim, nenhum EIA de quaisquer das três etapas do Pré-Sal apresenta a análise dos impactos dos navios aliviadores, somente dos navios-plataformas, o que leva a uma visão fragmentada e insuficiente dos impactos reais do empreendimento de exploração do petróleo do Pré-sal.

“Foram aspectos como estes que, por enquanto, geraram uma nova revisão do EIA pelo órgão licenciador, que já cita os impactos gerados pelos navios aliviadores no documento para a etapa 4 do Pré-sal. A gente espera que considerem as demais recomendações também”, pontua a bióloga Lara Bueno Chiarelli Legaspe, pesquisadora do OTSS e parte do grupo que elaborou o relatório Perdas e Danos.

Para Leonardo Freitas, Coordenador Geral de Governança e Gestão do OTSS e revisor tecnocientífico do estudo, é preciso considerar a relevância do licenciamento ambiental como política pública. "Portanto, é fundamental que as populações afetadas por esses empreendimentos possam incidir sobre o licenciamento. Não apenas denunciar problemas quando são observados, mas avançar fazendo anúncios e, na medida do possível, contribuindo para fortalecer e melhorar esse licenciamento. O Estudo de Perdas e Danos busca não apenas mostrar lacunas em relação ao licenciamento do Pré-Sal, até porque suas recomendações valem para muitos empreendimentos licenciados Brasil afora”, argumenta.

Ecologia de Saberes

O Estudo de Perdas e Danos reúne o conhecimento de pesquisadores comunitários e não comunitários de modo a incorporar o conhecimento tradicional produzido pelo Território. Pesquisadoras e pesquisadores comunitários participaram ativamente de todo o processo de criação do documento, junto com outros moradores que vivem na região.

O objetivo inicial foi realizar a identificação de impactos segundo a voz do território; comparar os impactos identificados no território com aqueles listados nos EIAs da cadeia de Petróleo e Gás do Pré-Sal; e trazer reflexões e propostas de adequações ao processo de licenciamento ambiental no Brasil.

Para alcançar tais objetivos, o levantamento seguiu as seguintes etapas: mapeamento participativo dos impactos no território, entrevistas e análise dos dados. Neste processo, os entrevistados relataram aumento no trânsito de navios, presença de petróleo nos ecossistemas costeiros, redução da quantidade de peixe disponível para a pesca, aumento de doenças de veiculação hídrica, diminuição da autonomia dos povos tradicionais sobre o território e diversos danos psicossociais, entre outros impactos.

“A gente não escuta, mas lá fora é muito barulho debaixo d'água, os caras furam direto aquilo lá, dia e noite furando. E o peixe já não vai encostando mais, o peixe vai começando a se afastar, sair mais pra fora. Antigamente passava peixe aqui dentro, a gente via tainha, entrava aqui, ficava tainha pulando pra todo lado aí dentro, hoje você já não vê mais", relata um pescador caiçara ouvido pelo estudo.

Recomendações

Neste contexto, a lista de recomendações gerada pelo estudo traz 14 pontos prioritários tendo em vista o fortalecimento do licenciamento ambiental federal. São eles: 1) O Projeto Povos de Caracterização de Territórios Tradicionais (PCTT) deve ser reconhecido e implantado como política pública, de forma permanente e com atualizações periódicas; 2) O licenciamento ambiental em seus estudos (EIAs) deve centrar sua análise na constituição de territórios sustentáveis e saudáveis, perspectiva que vai além dos meios tradicionalmente avaliados (físico, biótico, socioeconômico), considerando que há relação entre os impactos de diferentes meios, que se acumulam e potencializam; 3) Recomendamos a inclusão de todas as comunidades caiçaras, quilombolas e indígenas, de sertão e da região costeira, nos PEAs e demais condicionantes, tendo em vista a noção de território único e o modo de vida tradicional; 4) A partir dos resultados encontrados nesta primeira caracterização, recomendamos que sejam incluídos nos EIAs os 25 novos impactos, conforme explicitado no Despacho PRM-CGT-SP-00002966-202317; 5) Recomendamos que seja realizado um estudo aprofundado de modo a identificar, integrar e classificar os impactos socioambientais não considerados no EIA; 6) A partir dos 25 novos danos e impactos revelados, que sejam apresentados estudos de reparação justa e integral, e também de valoração, incluindo as externalidades; 7) Os atributos e magnitude dos impactos dos EIAs das Etapas de 1 a 4 do Pré-Sal sejam reclassificados a partir de metodologias que integrem a voz do território; 8) Os impactos já identificados nos EIA das Etapas de 1 a 4 do Pré-Sal devem ser compensados e devem ser elaborados oito novos estudos de reparação dos mesmos; 9) Os Termos de referência para elaboração dos EIAs devem ser construídos junto com os comunitários e movimentos sociais que representam a voz do território; 10) O EIA Etapa 4 deve ser reelaborado de forma a obedecer ao TdR no que se refere a: i) apresentar análise integrada, incluindo mapeamento de fatores ambientais relevantes para as comunidades tradicionais (Pesca e Maricultura Artesanais, infraestrutura urbana e Turismo de Base Comunitária); ii)identificar os grupos sociais sujeitos aos ônus e bônus do empreendimento Etapa 4. Utilizando-se de metodologia muito adequada, dialogando com a voz do território, e que esteja em um local de destaque do EIA; 11) As condicionantes de interesse das comunidades tradicionais devem ter Termos de Referência construídos por essas comunidades, junto aos movimentos sociais do território; 12) As comunidades tradicionais definem e incidem sobre as condicionantes de interesse para o território, e ajudam a elaborar os Termos de Referência das mesmas em diálogo direto entre suas lideranças e o órgão licenciador, sem a necessidade de intermediação de órgãos intervenientes do processo de licenciamento; 13) Os estudos de impactos cumulativos do território sejam territorializados, integrando os resultados dos estudos de impactos cumulativos e sinérgicos do território; e 14) Os órgãos públicos devem ser incorporados nos debates sobre os territórios, com destaque para: Funai, Fundação Palmares, Incra e Iphan.

“Precisamos mostrar os impactos disso tudo, com dados científicos e organizados para pautar o empreendedor e deixar bem claro: nós precisamos de reparação porque o empreendimento afeta nossa saúde mental, afeta nosso território, nosso direito de ir e vir e nossa cultura”, finaliza Vagner do Nascimento, coordenador geral do OTSS e integrante do Colegiado de Coordenação do Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT). 

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