08/07/2024
Barbara Souza (Ensp/Fiocruz)
Maior área úmida continental do planeta e casa de uma biodiversidade tão diversa quanto ameaçada, o Pantanal passa por mais uma intensa série de queimadas. Estima-se que, nos últimos cinco anos, os incêndios tenham degradado cerca de 9% da vegetação do bioma. Essa destruição gera prejuízos para a saúde das espécies que habitam o Pantanal e também das que vivem fora dele. Os danos são incontáveis e atingem, em curto, médio e longo prazo, populações humanas e outros animais de formas variadas. Sobre este assunto, o Informe ENSP entrevistou as pesquisadoras Sandra Hacon e Marcia Chame. Ambas são biólogas e, há décadas, têm se dedicado a estudar questões ligadas à relação entre saúde e ambiente, inclusive no Pantanal.
Foto: Joédson Alves / Agência Brasil
“Para os poluentes não há fronteiras”, afirma Sandra, do Departamento de Endemias Samuel Pessoa (DENSP/ENSP), ao comentar o alcance dos problemas de saúde causados pelas queimadas. A depender da direção, da velocidade dos ventos, de outras condições meteorológicas e do tamanho das partículas geradas pela queima, a poluição pode chegar cruzar municípios, estados e até chegar a outros países. “Partículas de poluentes podem penetrar profundamente nos pulmões, chegando à corrente sanguínea, com efeitos sistêmicos para o organismo humano. Esses poluentes são responsáveis por cerca de um terço das mortes por Acidente Vascular Cerebral (AVC), doença pulmonar obstrutiva crônica, asma e câncer de pulmão, além de um quarto das doenças do sistema circulatório”, cita Sandra Hacon.
Coordenadora da Plataforma Institucional Biodiversidade e Saúde Silvestre (Pibss/Fiocruz) e pesquisadora da ENSP, Marcia Chame também apontou a contaminação pela poluição atmosférica ao elencar problemas enfrentados por quem vive no Pantanal durante as queimadas. Ela destacou ainda que a contaminação ambiental também torna a água imprópria para consumo, elevando a frequência de infecções intestinais. Nesse contexto, há ainda “um aumento de doenças de pele de etiologia desconhecida”, complementou. “A fumaça e o material particulado no ar geram contaminação por mercúrio e outros elementos químicos tóxicos. As cinzas brancas, resultante da queima de toda a matéria orgânica, também é composta de elementos que geram contaminação, intoxicação e doenças degenerativas como câncer, que só vai aparecer tempos depois. Com a chegada das chuvas, toda a cinza deságua nos corixos, poluindo os rios, as baías e matando peixes e alevinos (iscas que são fonte de renda de muitas comunidades). Não há mais água potável para beber”, detalha Marcia.
Outros danos listados por Marcia Chame atingem todos os aspectos da vida, da saúde física e mental à economia, ampliando a dimensão do estrago. “As pessoas pantaneiras sofrem os mesmos impactos que animais e plantas. Respiram o mesmo ar e sentem o mesmo calor, sofrem queimaduras quando tentam apagar o fogo e são alcançadas ou contaminadas por ele. Perdem suas lavouras, seus animais de criação e estimação, a pesca, o turismo e formas alternativas de viver. Perdem a palha e a madeira com as quais constroem suas casas nas aldeias. Além disso, perdem a referência dos lugares onde nasceram e vivem”, lamentou a pesquisadora. Ao listar os prejuízos, Marcia também chama a atenção para a saúde mental dos atingidos. “Os níveis de suicídios são grandes. Há depressão entre idosos e jovens, que não sabem por onde começar e não possuem recursos para um recomeço. Por serem comunidades pequenas e distantes dos grandes centros urbanos, não geram apelos e sensibilização nacional. Estão sós e apartadas da esperança”.
Na mesma linha, Sandra Hacon reforça que as queimadas prejudicam a saúde humana de forma desproporcional, pois os determinantes sociais da saúde, como local e condições de moradia, nível de acesso a serviços de saúde e falta de saneamento, tendem a exacerbar os efeitos da exposição aos poluentes. “Em geral, os impactos são mais acentuados nas populações de menor renda per capita, que vivem condições de moradia precárias”, afirma. A poluição do ar, das águas, dos alimentos, do solo, atinge os expostos de diferentes maneiras, intensidades e magnitudes. “Os mais vulneráveis, como crianças menores de 5 anos, gestantes, idosos e pessoas com comorbidades, são as mais afetadas”, explica Sandra.
Distantes de áreas naturais, como florestas e matas, muitas pessoas não se dão conta de que a qualidade de vida e a saúde delas depende da biodiversidade. Em oposição ao senso comum, as consequências trágicas das queimadas no Pantanal não se restringem a quem habita aquele bioma. “A complexa rede de espécies que garantem o equilíbrio ecossistêmico é a rede que garante a sustentabilidade da vida e, portanto, também da espécie humana”, diz Marcia. O fogo natural no Pantanal representa menos de 5% do total das queimadas que o atingem. Diante disso, a bióloga faz uma crítica ao afirmar que “não há avanços significativos que sustentem ações para a conservação do Pantanal e que garantam, portanto, a saúde humana, animal, do ecossistema e da economia, interdependentes”.
Em relação ao desequilíbrio ambiental, Marcia Chame alerta para a invasão de espécies exóticas ao Pantanal e capazes de sobreviver naquele ambiente degradado. “Elas se instalam rapidamente, dando a sensação que o Pantanal vive. Mas este não é mais o Pantanal, é outro, simplificado e pobre”, lamenta. A vegetação que compõe a biodiversidade e serve de alimento e abrigo para animais, também padecem, gerando um acúmulo de efeitos negativos dos incêndios. “As plantas que não foram queimadas também sofrem com a fumaça e as partículas suspensas no ar. Apenas resistindo, não florescem nem frutificam, o que gera mais fome para os animais e menos flores para polinizadores, menos dispersão de sementes, o que torna a recuperação lenta e sofrida”.
Além de todo o impacto descrito pelas pesquisadoras, reflexos ainda desconhecidos da degradação ambiental pelos incêndios no Pantanal também preocupam. Novas doenças podem surgir e zoonoses conhecidas podem se intensificar. “Ainda é necessário monitorar e compreender como o fogo e a fumaça podem determinar o rearranjo de espécies de vetores e hospedeiros que, fugindo das áreas queimadas e secas, aproximam-se das comunidades humanas e podem favorecer a ocorrência de agentes infecciosos que antes estavam restritos aos ciclos silvestres. Dessa forma, podem surgir novas doenças ou agravar algumas já conhecidas, como a raiva transmitida por morcegos”, elucida Marcia.