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Como derrubar barreiras impostas às pessoas com deficiência em territórios vulnerabilizados?


02/07/2024

Barbara Souza (Ensp/Fiocruz)

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“Nossa sociedade, o que inclui servidores públicos, gestores e agentes de saúde, se formou acreditando que pessoas com deficiência não valem à pena, não têm condições e capacidade para contribuir e são um fardo para o contribuinte”. Esta é apenas uma das críticas que a pesquisadora Laís Silveira Costa faz quando o assunto é a saúde das pessoas com deficiência, especialmente daquelas com deficiência intelectual e daquelas que vivem em comunidades precarizadas. 

Em entrevista ao Informe ENSP, ela elencou os principais entraves à saúde das pessoas com deficiência que moram nesses territórios, localizou as raízes no capacitismo, relacionou a questão com a pobreza nos territórios e falou dos caminhos para combater tantas desigualdades. “Falta de vontade política: a sociedade não reconhece sua dívida social com essas pessoas, não as entende como sujeitas de direitos, como cidadãs, e não as incluí nos pactos sociais estabelecidos”, disse. 

As questões abordadas nesta entrevista são tema do projeto “Pessoas com deficiência (PcD) em territórios vulnerabilizados e abordagens interseccionais: diálogos e propostas para a efetivação do direito à saúde”, coordenado pela pesquisadora da ENSP e contemplado com recursos do Programa de Políticas Públicas e Modelos de Atenção e Gestão à Saúde (PMA) Equidade com Diversidade, da Vice-Presidência de Pesquisa e Coleções Biológicas (VPPCB) da Fiocruz. 

 

Confira abaixo a entrevista com Laís Silveira Costa e saiba mais:

 

Como as barreiras sociais, econômicas e culturais afetam o acesso aos serviços de saúde das pessoas com deficiência que vivem em comunidades vulnerabilizadas? Quais são os principais entraves?

Pessoas com deficiência, mesmo as mais privilegiadas, se deparam com inúmeras e variadas barreiras para acessarem seus direitos humanos, dentre os quais, o da saúde. Tal afirmação se respalda na literatura científica que evidencia maior precariedade de acesso e qualidade dos serviços de saúde para essas pessoas, com impacto em seu bem-estar e nos processos de saúde e doença, cujos resultados comprometem a funcionalidade de seus corpos, a autonomia, e reduzem sua longevidade. 

Quando elas vivem em condições e territórios precarizados, outros marcadores sociais se justapõem ao da deficiência, majorando essas barreiras e aumentando a prevalência da deficiência e o comprometimento funcional. A violência no território, por exemplo, muitas vezes impede o acesso a uma consulta especializada aguardada há meses, adiando o início de terapias de habilitação e reabilitação. Ademais, quando a violência não mata, às vezes resulta em deficiência, em especial pela falta de acesso em tempo oportuno aos serviços de saúde. É também nos territórios precarizados que a violência obstétrica é mais prevalente, produzindo, por vezes, deficiência.

Territórios precarizados muitas vezes não apresentam acessibilidade necessária para que pessoas com deficiência física e algumas com deficiência visual circulem, restringindo o contato com os serviços às visitas domiciliares, se existentes. Nesses territórios há relatos de pessoas com deficiência intelectual (DI) impedidas de andarem desacompanhadas, muitas vezes acossadas por agentes do Estado.

Ademais, em territórios marcados pela pobreza, a privatização da deficiência resulta no afastamento da cuidadora do mundo do trabalho, na perenização de sua condição de vulnerabilidade e da relação socialmente constituída entre deficiência e pobreza. Barreiras ao acesso aos serviços impedem o diagnóstico que condiciona não só o acesso às terapias pertinentes, quanto a outros direitos sociais. 

Por fim, importa dizer que o subdimensionamento da Rede de cuidados da saúde da pessoa com deficiência e sua concentração nos grandes centros obstaculizam desproporcionalmente o acesso das pessoas com deficiência em territórios vulnerabilizados.
 

Que medidas poderiam ser adotadas para garantir que os serviços de saúde sejam acessíveis e inclusivos para pessoas com deficiência em áreas vulnerabilizadas?

A primeira questão, e principal, é a falta de vontade política: a sociedade não reconhece sua dívida social com essas pessoas, não as entende como sujeitos de direitos, como cidadãs, e não as inclui nos pactos sociais estabelecidos. Desta forma, transfere-se o problema da sociedade para as famílias ou, mais frequentemente, para as mulheres responsáveis pelo cuidado em suas famílias. Nós, da saúde, não temos nos comprometido e reconhecido a saúde como um direito universal que é TAMBÉM das pessoas com deficiência. Alie-se a isso o capacitismo estrutural. Nossa sociedade, o que inclui servidores públicos, gestores e agentes de saúde, se formou acreditando que pessoas com deficiência não valem à pena, não tem condições e capacidade para contribuir e são um fardo para o contribuinte. 

A Atenção Primária à Saúde deveria estabelecer vínculo com seus usuários, e garantir a integralidade e a longitudinalidade. Entretanto, esse nível de atenção não reconhece o pertencimento das pessoas com deficiência, não elimina as barreiras comunicacionais, sem o que nunca haverá vínculo, qualidade e menos ainda encontro intersubjetivo. Gestores municipais não entendem essa como sua responsabilidade. Não é possível qualificar a atenção à saúde sem conhecer as necessidades objetivas de saúde das pessoas, sem reconhecer sua condição humana integralmente - sendo, portanto, sujeitas das linhas de saúde universais -, e nem sem saber quantas são e que conhecimento já foi desenvolvido que deveria ser disseminado nos serviços de saúde dessa população. 

Entendemos que a qualificação dos serviços de saúde passaria por algumas estratégias combinadas, a exemplo de: campanhas de combate à corponormatividade; ampliação da participação de pessoas com deficiência nas campanhas de saúde; o respeito ao direito à acessibilidade comunicacional; disseminação de tecnologias de baixo custo, como as pranchas de Comunicação Aumentativa e Alternativa - CAA (que fizemos aqui no Rio em face da epidemia da dengue); apoio a tomadas de decisão; rodas de conversa, revisão das linhas de atenção (inclusive proposta agora pelo Ministério da Saúde, como um dos compromissos junto ao Novo Plano Viver sem Limite), etc.

Também se faz necessária a qualificação dos trabalhadores, cuja formação não engloba a temática das pessoas com deficiência. As pessoas com condições mais precárias de vida precisam estar presentes nas rodas e ter suas necessidades mapeadas. Também é nesse território que os serviços de acesso a diagnósticos e a terapias multidisciplinares devem estar prioritariamente. É importante realizar cartografia social e atuar intersetorialmente para desconstruir a relação deficiência, falta de acesso e pobreza. Sendo essa uma população mais pobre, se depara com mais obstáculos ao acesso às tecnologias assistivas, direito de todas as pessoas. Por fim, elaborar política e ações de cuidado pautado na ética é fundamental para o acesso dessas pessoas.
 

Políticas públicas devem ter abordagens interseccionais, certo? Como isso precisa ocorrer na saúde para que as necessidades das pessoas com deficiência sejam atendidas?

As políticas que afetam a vida das pessoas com deficiência, dentre elas a da saúde, têm como prerrogativa a sua participação. Entretanto, ela não se efetiva. Sem a participação de pessoas com deficiência em toda a sua diversidade (de natureza de deficiência, de gênero, de raça e etnia e de pobreza) não seremos bem-sucedidos em universalizar o acesso, tampouco conseguiremos qualificá-los. 

Precisa ter pessoas com deficiência em posição de tomada de decisão na gestão, nos serviços de saúde, em funções diversas, e nos conselhos de saúde, reafirmando ser esse um grupo heterogêneo, que precisa estar representado em sua integralidade - considerando os diversos sistemas de opressão. Sem isso e sem a alocação de recursos não se atenderá às necessidades dessa população que soma 18,6 milhões de pessoas no Brasil e mais de um bilhão no mundo.

Ainda que se defenda a qualificação e adequação dos serviços com o único propósito de respeitar o direito humano universal à saúde também dessas pessoas que vêm sendo deixadas à margem, é importante dizer que essa é uma população em crescimento em função das emergências sanitárias, hábitos de vida, envelhecimento da população, avanço da medicina, violência, ampliação das condições que definem a deficiência e outros motivos. Ou seja, temos um serviço de saúde que tende a atender menos e pior uma parcela significativa e crescente da população. 

Falta qualificação dos profissionais de saúde para oferecer atendimento às pessoas com deficiência, especialmente as que vivem em territórios vulnerabilizados?

As grades curriculares dos cursos de formação dos trabalhadores da saúde não incluem a temática das pessoas com deficiência, ou seja, trabalhadores não são preparados para atender essa população. Devido às condições cada vez mais precárias de trabalho e de vínculo trabalhista, esses profissionais, em sua maioria, não se implicam com a questão, especialmente porque percebem as pessoas com deficiência como quase-humanas e, como tal, com menos direitos. Essa percepção é facilitada pela exclusão social que marca as vidas dessas pessoas e que leva a uma representação social minorada junto à sociedade.

Assim, as iniciativas para a qualificação demandam estratégias combinadas e intersetoriais, e precisariam também atuar para uma mudança cultural. É urgente a realização de companhas de combate ao capacitismo e à corponormatividade. Ademais, urge a revisão das informações e orientações em saúde para que fiquem acessíveis a todes (braile, libras, linguagem simples, comunicação aumentativa e alternativa, descrição de imagens, audiodescrição, arquivos compatíveis com leitor de tela, etc), sem o que se desrespeita leis e cidadania, precarizando a condição de saúde e aumentando o risco de morte prematura. É necessário produzir mais conhecimento sobre essa população, envolvendo-a, eliminando a hierarquia de saberes em reconhecimento da sabedoria e conhecimento que emana também desses corpos e de suas cuidadoras.

Seria necessário qualificar os trabalhadores a partir de programas de educação permanente, desenvolver competências de comunicação, priorizar a temática em residências e estágios supervisionados, qualificá-los para mapear as pessoas e suas necessidades, qualificar a vigilância territorial para atentar para as especificidades e vulnerabilidades; mapear apoios e redes primárias e secundárias e produzir informação para essas redes, garantindo a manutenção do protagonismo do usuário, qualificar o acolhimento, desenvolver estratégias adaptativas, entre outros.
 

Como podemos garantir que as vozes das pessoas com deficiência em territórios vulneráveis sejam ouvidas e consideradas nas políticas de saúde e programas de intervenção?

É necessário atuar na formação desse tecido social, frequentar esse espaço (territórios precarizados) e se implicar com ele. Mas a ruptura social tem suas narrativas que vem  justificando e naturalizando o abandono dessas pessoas, o descaso com seus direitos e com a sua vida. 

A falta ou escassez de escuta a essas pessoas nas pesquisas invisibiliza, uma vez mais, a sua existência e a especificidade de suas demandas. E poucas pesquisas produzem essa escuta. Eventos dos nossos projetos realizados aqui na Fiocruz são parcialmente racializados, dado que garantem a presença de pessoas negras e pardas, mas raramente a participação de pessoas indígenas. Trazemos pessoas com deficiência e familiares das favelas, mas claro que não é suficiente. Enfim, avançamos um pouco, mas o que fazemos ainda está longe de atender aos desafios dessa enorme dívida social. Não se tem nem ideia do que seja a cultura da pessoa com deficiência em situação de rua, e nem de suas necessidades. Não se atua efetivamente na mediação da pessoa com deficiência intelectual, o que colabora com o seu silenciamento e, ainda que sem intenção, para o projeto de genocídio dessa população (de cunho global), como evidenciam os estudos. Aliás, essa é a grande inspiração desse projeto de pesquisa, que quer avançar com metodologias de escuta e mediação das pessoas com deficiência intelectual brasileiras. 
 

Dentro da pesquisa, o que já foi realizado? Quais são os próximos passos?

Nos meses iniciais da pesquisa, realizou-se levantamento bibliográfico nas bases científicas, documentais e audiovisuais, determinaram-se os parceiros e coordenações locais (Lilian Ingrid Façanha Bastos, Eusébio-CE; Albelena Lopes de Almeida Lima, Recife-PE, Rafael de Souza Petersen, Brasília-DF). Buscou-se compor a equipe da pesquisa com pessoas com deficiência, em diferentes funções, em reconhecimento do conhecimento que emana da experiência e em respeito ao pressuposto de participação, presentes na Lei Brasileira de Inclusão (lei 13.146/2015) e na Política Nacional de Saúde da Pessoa com deficiência. Vitória Bernardes, uma mulher branca com deficiência física, conselheira de saúde, passou a ocupar a coordenação geral do projeto, junto a mim e à Maria Helena Magalhães de Mendonça. Foi contratado o pesquisador assistente, Jey Jorge Ramires, homem negro com deficiência, doutorando sobre a temática. Além disso, está em processo a contratação um homem branco com deficiência intelectual, Eliezer Nóbrega de Souza, para compor o corpo de pesquisadores do projeto. O intuito é que também ele possa atuar na coordenação, dado o valor do conhecimento constituído por sua vivência e por sua capacidade de delimitação e validação da metodologia e conteúdo que se propõe a desenvolver. 

Avançamos numa leitura inicial das metodologias participativas inclusivas e, no momento, duas pessoas (coordenação e equipe de pesquisa) estão sendo formadas para a mediação de pessoas com deficiência intelectual. O curso é realizado pela Federação Brasileira das Associações da Síndrome de Down (FBASB).

As principais experiências internacionais de projetos de autodefensorias imbuídos da ampliação do protagonismo de pessoas com DI foram mapeadas. Vale mencionar iniciativas da Irlanda, da Grã-Bretanha, da União Europeia, e dos Estados Unidos. Essas são iniciativas voltadas principalmente à vocalização junto ao legislativo, com experiências importantes de easy-read / linguagem simples e autodefensoria em outros espaços sociais. Além disso, estamos em contato com a Austrália para a troca de experiências e triangulação com uma universidade desse país que têm uma trajetória de escuta e envolvimento da população Z com deficiência. 
 

Há outras parcerias no âmbito do projeto?

Nossas parcerias iniciais foram com as instituições em que atuam as coordenações locais da pesquisa, a exemplo do Núcleo de Apoio Municipal aos Munícipes com Necessidades Especiais (NAMME), em Eusébio-CE, e do Centro de Reabilitação e Valorização da Criança (CERVAC), em Recife-PE, além do Núcleo de Educação e Humanidades em Saúde, em Jacarandá-DF, e do Movimento Down (MoviDown), no Rio de Janeiro-RJ. Estamos costurando uma parceria, formal ou informal, com o Instituto Jô Clemente (IJC), uma dissidência da APAE que buscou potencializar a inclusão de pessoas com DI. Estamos também em parceria com o Centro de Educação Inclusiva (CREI), lançado pelo Sistema Sesc-Senac. 

Também temos a parceria com a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência da Cidade do Rio de Janeiro (SMPD-Rio), que vai prestar o serviço envolvido no emprego apoiado da pessoa com deficiência intelectual contratada, de modo a potencializar sua participação. E estamos apoiando a formação dos trabalhadores de área social, conduzidas pela SMPD-Rio, sobre a metodologia Eu Me Protejo , para educação de crianças com e sem deficiência para prevenção de violência e abuso sexual, no dia 2 de julho de 2024.  Há ainda a tessitura de parceria junto à Organização Paratodos, para produzir conteúdo de orientação sobre o Plano Educacional Individualizado, direito das pessoas que dele necessitem, entretanto inacessível para a maior parte delas.
 

Pode contar sobre eventos, aulas e outras atividades ligadas à pesquisa?

Foi realizado um evento para discutir, dentre os extraídos da literatura, quais temas seriam prioritários para compor uma cartilha com orientações de saúde da pessoa com síndrome de Down [Ver imagem abaixo]. No momento foi finalizada a etapa de validação desse conteúdo e a cartilha está em etapa de diagramação para posterior impressão. Sua versão em cordel já se encontra finalizada, e aguardamos a xilogravura para impressão. Essa cartilha, assim como os demais materiais, já se encontra disseminada – em etapa de finalização – em redes sociais e outras instituições

 

 

O projeto participou de duas Ágoras da Abrasco, uma sobre a Eliminação de barreiras à participação para qualificação da Atenção Primária à Saúde – produzindo saberes de forma participativa e outra sobre o Movimento de Pessoas com Deficiência produzindo saberes de saúde, disponível aqui

Está em curso a impressão da segunda edição em português do guia Simples Assim, com orientações objetivas sobre como comunicar com todas as pessoas, inclusive aquelas com deficiência intelectual. 

O projeto vem atuando na popularização do conhecimento e na formação de trabalhadores de saúde: o conteúdo vem sendo disseminado em programas de Pós-graduação da ENSP, em cursos de extensão para o município de Petrópolis (visando apoiar a formação do Atendimento Educacional Especializado, previsto em Lei), e em minicursos internacionais (aleitamento materno que envolve pessoas com deficiência intelectual e especificamente bebês com síndrome de Down). Estamos coordenando Curso de Especialização em Direitos humanos da Pessoa com Deficiência, iniciativa DIHS/DAPS (ENSP), e participando de debates que envolvem a temática e as políticas a ela relacionadas e de orientações de TCC.

Por fim, tanto a iniciativa das pranchas de CAA, uma matéria sobre a população com síndrome de Down e os ataques à educação inclusiva ganharam destaque na imprensa, com publicações nos jornais O Dia e O Globo, o que contribui para debate um crítico sobre capacitismo e questões que envolvem o bem viver das pessoas com deficiência no Brasil. 

 

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