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Maconha: ressignificação cultural pode substituir criminalização e estigma


23/06/2015

Por: Regina Castro (Agência Fiocruz de Notícias)

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Geógrafo, mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Jorge Luiz Barbosa fez doutorado na Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Geografia Humana pela Universidade de Barcelona, na Espanha. À frente do Observatório de Favelas, no Rio de Janeiro, trabalha com o uso da internet e a apropriação de tecnologias que afirmam a visibilidade do jovem de origem popular. Palestrante da mesa “Impactos sociais, políticos e econômicos da legislação sobre a maconha”, ele entende que a regulação da maconha deve levar em consideração o controle social da produção, manuseio, comércio e consumo. E mais. Barbosa ressalta que a regulamentação societária do uso da maconha deve inserir os sujeitos que já desenvolvem essa atividade atualmente, como forma de incluí-los no processo produtivo e numa política efetiva de geração de trabalho e renda, além de uma espécie de reconhecimento do “erro incorrido em quase um século de proibicionismo e criminalização”.

Quais são os principais impactos sociais, políticos e econômicos da atual legislação brasileira sobre a maconha?

A legislação brasileira, estabelecida sob os princípios do proibicionismo, que criminaliza o uso e o comércio da maconha no Brasil, assim como em diversas outras partes do mundo, vem resultando em um enorme fracasso. Primeiro, porque não logrou êxito em seu objetivo principal, que é reduzir ou eliminar o uso e o comércio da droga. Segundo, pelo conjunto de impactos nefastos causados sobre a sociedade.

De modo geral, podemos dizer que o consumo da maconha vem sendo cada vez menos condenado socialmente. Ainda que não seja propriamente uma visão hegemônica, podemos dizer que existe um processo em curso de ressignificação da maconha e do seu consumo. Cada vez mais se difunde uma percepção da maconha como uma droga leve e como suas diversas possibilidades de uso – medicinal, recreativo, alimentício, artesanal etc – vêm ganhando legitimidade e notoriedade.

Ao mesmo tempo, os impactos negativos causados pela proibição têm suscitado movimentos e debates políticos significativos, colocando em causa o modo como se constitui a legislação brasileira sobre a maconha, mais especificamente.

Quais os impactos causados pela proibicionismo?

Podemos listar os seguintes impactos causados pelo proibicionismo e pela legislação brasileira voltada para a maconha: aumento do poder econômico de indivíduos e do poder bélico de grupos criminosos armados que realizam a atividade de venda da maconha, e, por conseguinte, da presença de armas de fogo em nossa sociedade; o nível de letalidade causado pela dinâmica de violência e pelos confrontos gerados no âmbito do tráfico de drogas, seja entre os grupos criminosos que realizam essa atividade, especialmente aqueles voltados para o varejo nas favelas e periferias do país, seja entre esses grupos e as forças de segurança voltadas para o enfrentamento do tráfico de drogas; o investimento em políticas de segurança militarizadas, com foco privilegiado em aquisição de material bélico e repressão, em detrimento de ações de prevenção e inteligência; o custo anual dessas políticas de segurança que acabam, indiretamente, impedindo um maior investimento em outros campos e direitos sociais tais como a educação, saúde, moradia; o encarceramento massivo que superlota os presídios e as instituições voltadas para crianças e adolescentes em conflito com a lei, sobrecarregando os sistemas penitenciário e de medidas socioeducativas; a obstrução de importantes avanços científicos no que diz respeito às propriedades farmacológicas da maconha; a não utilização de um imenso potencial econômico da maconha em suas relações com a produção de alimentos e têxtil, entre outras.

Como esses impactos afetam a população que mora nas favelas?

Podemos afirmar que o principal problema causado aos moradores de favelas diz respeito ao controle do território por parte de grupos criminosos armados e as situações de confrontos advindas da afirmação e/ou defesa do domínio territorial entre os grupos armados e a polícia. Deve-se também incluir as milícias neste contexto, embora o comércio de drogas não se faça presente no seu cartel de atividades ilícitas; algumas de suas ações são expressas como uma reação violenta ao tráfico de drogas, expulsando e impedindo a entrada de grupos voltados para essa atividade. O domínio de territórios e a regulação social imposta por esses grupos afetam substancialmente a vida de todos os moradores, que passam a conviver com um conjunto de normas ditadas de maneira autoritária e violenta e com um nível absurdo de letalidade.

Desse modo, se podemos indicar uma 'sociabilidade violenta' diversa e disseminada nas diferentes regiões do país, a atuação e o poderio desses grupos criminosos produz um cotidiano ainda mais violento nos espaços populares, pela presença maciça e ostensiva de armas de fogo, especialmente, nas favelas e periferias da região metropolitana do Rio de Janeiro. Poderio bélico que, inclusive, sustenta a lógica militarizada do confronto que tradicionalmente pauta as políticas públicas de segurança empreendidas com algumas exceções.

A presença de grupos armados com domínio de território e as situações de confronto acabam por disseminar ainda uma série de estereótipos e estigmas vinculados aos moradores de favela, produzindo um conjunto de efeitos sociais perversos.

Como exemplo, podemos apontar o modo como a Lei 11.343/06 produz consequências diferentes nos diferentes sujeitos e territórios da cidade. Em um caso de flagrante de porte de drogas, a estigmatização do morador de favelas incide diretamente na forma como estes sujeitos serão avaliados e julgados por policiais – no modo como estes realizam ou não a prisão e registram a ocorrência – e por juízes envolvidos no caso.

Por que isso acontece?

Isso acontece por conta de dois fatores. De um lado, a inexistência de um critério objetivo que indique a quantidade e o limite que possa ser considerado como um porte voltado para o uso da droga. De outro, a estigmatização das favelas e de seus moradores.

Assim, uma mesma quantidade de drogas pode suscitar interpretações distintas, motivadas pela análise da situação e do contexto onde são efetuadas essas ocorrências, elementos determinantes para a configuração do enquadramento do indivíduo como usuário ou traficante. Assim, um indivíduo que não more em favelas e possua algumas características que o vinculem às classes médias da sociedade, tais como ser branco, estar bem vestido (...), portando algumas gramas de maconha, numa abordagem policial tem muito mais chance de ser caracterizado como um usuário de drogas do que um jovem negro, morador de favelas e espaços populares em geral, que seja flagrado com essa mesma quantidade numa ação policial.

Portanto, a chance desse jovem ser caracterizado como traficante é imensa, apesar de ser flagrado com a mesma quantidade de maconha ou outra droga ilícita qualquer, usualmente vendida pelos grupos que atuam na cidade. O contexto da ocorrência, o local de moradia e classe social, a cor – ainda que não declaradamente –, os antecedentes criminais e outros elementos de natureza social influem decisivamente no julgamento desse sujeito.

Parodiando o ditado, ainda que mantendo, de certo modo, seu sentido original, temos para um mesmo peso, duas medidas diferentes.

Como analisa a criminalização do uso de drogas no Brasil?

A recente despenalização proporcionada pela Lei 11.343/06, que exclui as penas privativas de liberdade para o usuário de drogas, deveria trazer consigo um viés positivo. Sem dúvida, isso denota um avanço na abordagem legal e na percepção do uso de drogas, que potencialmente pode provocar um deslocamento ou, talvez, uma pequena relativização da vinculação corrente na sociedade entre uso de drogas e criminalidade. A princípio, reduziria o estigma em torno do usuário e sua criminalização.

No entanto, esse potencial avanço acaba sendo limitado pela representação do usuário como doente, o que reforça uma generalização de todo usuário de drogas ilícitas como um dependente químico – o que não é verdade.

Pelo contrário, os próprios conceitos de uso abusivo e dependência química não são, de modo algum, isentos de críticas, discussões e controvérsias – como, aliás, todo conceito que se pretende puramente científico. A singularidade de cada sujeito e a multiplicidade dos usos, sentidos e relações com a droga existentes na sociedade impedem essa generalização.

Desse modo, a demonização e os estigmas relacionados a essas drogas são reforçados, fortalecendo uma correlação entre uso de drogas e periculosidade, uma vez que se difunde a visão do usuário – e por extensão, do dependente – como um indivíduo irracional, capaz de tudo, seja pelo efeito ou para conseguir a droga, constituindo-se, portanto, numa ameaça constante ao tecido social.

Além disso, o probicionismo, que define o tratamento a determinadas drogas gera um conjunto de contradições e abordagens confusas sobre o mesmo tema. Prova disso é que a despenalização do usuário acarretou uma repressão ainda mais severa do tráfico de drogas, transformando o dito ‘traficante’ numa categoria demonizada, no principal inimigo interno e ameaça social existente na sociedade. Essa demonização e o incremento das ações repressivas produzem um encarceramento massivo, que incide objetivamente na falência do sistema penal e no aumento da violência, em suas diversas nuances e facetas, na sociedade brasileira.

Que programa deveria ser adotado no país?

Ainda que não tenha propriamente uma proposição específica sistematizada na forma de um programa, poderíamos nos inspirar em algumas experiências existentes no mundo, especialmente, em países como Portugal, Suíça e Holanda, além do modelo desenvolvido no Uruguai. Na medida em que o Brasil tem dimensões continentais, além de marcantes diferenças socioculturais com relação a esses países, a replicação de um modelo de política pública sempre traz brechas e assimetrias que impedem sua aplicação integral e exigem uma releitura e uma adaptação aos territórios em que se desenvolvem.

No entanto, devemos regulamentar o uso da maconha, considerando o controle social da produção, manuseio, comércio e consumo. É claro que esta proposição exige uma nova pactuação política e ressignificação cultural no âmbito da sociedade civil. Acreditamos que devem ser incluídos na regulamentação societária do uso maconha os sujeitos que já desenvolvem essa atividade nos dias correntes, tanto como forma de incluí-los no processo produtivo e numa política efetiva de geração de trabalho e renda, quanto como uma espécie de reconhecimento do erro que temos incorrido em quase um século de proibicionismo e criminalização. Erro que, sem sombra de dúvida, produziu sofrimentos incomensuráveis e impactos brutais sobre esses sujeitos, suas famílias e o cotidiano das favelas, periferias e demais espaços populares.

Legalizar a maconha e entregá-la aos interesses das grandes corporações e do grande capital é, ao nosso ver, além de uma afronta diante dessa dívida histórica que se erige ao analisar os efeitos negativos produzidos, um modo de, mais uma vez, virar as costas a esses atores sociais e ignorar o potencial produtivo desse grupo, deixando intactas as perspectivas desses sujeitos e o quadro de desigualdades sociais vigente.

O que mais gostaria de destacar sobre o assunto?

Por fim, ressaltamos os prejuízos sociais causados pela estigmatização de determinadas drogas. O modo como essas substâncias, especialmente, a maconha, seus usuários, produtores e o seu comércio é interpretado hegemonicamente por nossa sociedade gera problemas para a garantia e promoção de todo um conjunto de direitos à cidadania no Brasil, aprofundando desigualdades sociais e produzindo gastos econômicos e impactos sociais nefastos e absurdos. E pior: totalmente incompatíveis com os problemas que, porventura, o uso da maconha possa causar.

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