06/10/2022
Revista Radis
Um dos marcos do Modernismo brasileiro, o Manifesto Antropofágico, escrito por Oswald de Andrade em 1928, registrou de modo metafórico o desejo de um grupo de artistas da época em se contrapor ao determinismo colonial que valorizava a assimilação cultural estrangeira. O grupo propunha uma nova visão da cultura nacional, construída a partir do diálogo crítico entre elementos nativos e a crescente industrialização mundial — em outras palavras, “digerir” o que vinha de fora, acrescentando e misturando às manifestações genuínas brasileiras, naquele momento vistas como populares e, por isso, inferiores.
100 anos depois, o espírito “antropofágico” inspirou pautas e propôs questionamentos colocados no 8º Congresso Brasileiro de Saúde Mental, organizado a partir do tema central Democracia, antropofagias e potências da luta antimanicomial. Em sua primeira versão presencial desde a pandemia de Covid-19, o evento foi marcado pela reafirmação e atualização de pautas políticas e sociais e seus impactos na saúde mental, especialmente as propostas pela Reforma Antimanicomial, bem como pela afirmação da arte como elemento essencial na reconquista de espaços e na luta contra retrocessos. O congresso reuniu 3 mil pessoas, teve mais de 740 trabalhos inscritos, promoveu 60 rodas de conversa e 23 minicursos.
“Queremos avançar e construir uma política inclusiva de saúde, neste momento de diálogo, escuta e abraços”, sinalizou Sonia Barros, vencedora do prêmio Nise da Silveira de boas práticas e inclusão em saúde mental, na abertura do evento, no auditório da Universidade Paulista (Unip). A cerimônia, que reuniu especialistas, políticos e ativistas da saúde mental, também contou com uma homenagem às vítimas da covid-19 e reforçou a defesa da democracia como condição essencial para a construção de uma política de saúde mental inclusiva.
Presidente emérito do congresso, o sanitarista Paulo Amarante destacou que a democracia deve ser instrumento de garantia de participação da sociedade nas questões de saúde, para que as políticas sejam organizadas não “para” os usuários, mas sim “com” eles, e lembrou dos 40 anos da Reforma Psiquiátrica. “É uma alegria estar vivo, estar resistindo, estar lutando”, emocionou-se, sob o aplauso entusiasmado da plateia.
“Não é hora de hesitar. Esse congresso é um processo de mobilização e de enunciação coletiva em defesa da universalidade dos direitos”, registrou o sociólogo Léo Pinho, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), organizadora do evento. “Nós queremos construir um novo Brasil com o SUS, o maior sistema de promoção dos Direitos Humanos no país”, convocou a audiência, criticando a “contrarreforma psiquiátrica” que está em curso.
Sua crítica se dirigiu de forma mais contundente às chamadas comunidades terapêuticas — que, para ele “nem são comunidades e nem são terapêuticas, mas sim instrumentos de exclusão” —, ao financiamento de leitos psiquiátricos nas instituições privadas, ao eletrochoque e às redes de ambulatórios de saúde mental, estratégias cujo objetivo, afirmou, é “lucrar com o sofrimento das famílias”.
Para Léo, a medicalização social e a rotulagem do diagnóstico são contrapontos aos direitos humanos, ao protagonismo e ao empoderamento das pessoas. O que defende, acentuou, aponta outro caminho. “Não estamos aqui apenas para dizer não, mas para afirmar um projeto de país”, ressaltou, propondo um compromisso com um novo modelo de cuidado, do cuidado em liberdade.
Um caminho a ser trilhado e construído por meio da arte e da inclusão do sofrimento e da loucura como partes essenciais da vida, como sinalizou a filósofa e psicanalista Viviane Mosé, uma das palestrantes do evento. Arte como potência, democracia como caminho, liberdade como modo de cuidado, temas que mobilizaram as discussões que aconteceram nos três dias seguintes. Um encontro que incluiu na agenda “a contribuição milionária de todos os erros”, como afirmou há quase um século Oswald de Andrade.
Radis se inspirou nos escritos de Oswald e nas criações de outro artista brasileiro, Arthur Bispo do Rosário, para apresentar a compilação de alguns destaques do congresso. Os títulos que entremeiam esse texto foram retirados do Manifesto Antropofágico ou de criações de Oswald de Andrade. A partir das obras reunidas em Bispo do Rosário — Eu vim: Aparição, Impregnação e Impacto, exposição que fica em cartaz de maio a outubro de 2022 no Itaú Cultural, em São Paulo, a reportagem sugere roteiros que registram a potência da criação libertária contra a opressão dos manicômios e de outros retrocessos que precisam ser ressignificados.
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