31/03/2021
Por: Ana Cláudia Peres (Radis)
Luhandra fez cinco anos. Ganhou laço de fita no cabelo comprido, bolo, presente, salgadinho, as letras de seu nome em balões metalizados na parede. Aninhada nos braços da mãe, é o centro das atenções. Assim tem sido desde que nasceu em 5 de novembro de 2015, com 38 semanas e dois dias, em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife (PE), desafiando os prognósticos mais pessimistas. Diziam que, se sobrevivesse ao parto, ela não chegaria ao primeiro ano de vida, que teria muitos problemas no cérebro, que seria uma recém-nascida “danificada” — foi a palavra que a mãe de Luhandra ouviu de um médico depois de um exame de ultrassonografia. “Da-ni-fi-ca-da!”, assusta-se ainda hoje Jusikelly Severina da Silva, ao lembrar do episódio. “A minha filha é o meu milagrezinho”.
Luhandra Vitória da Silva — o segundo nome é uma explícita referência à primeira etapa vencida — veio ao mundo com microcefalia, essa palavra comprida pronunciada por médicos diante de mães atônitas que não entendiam por que as suas crianças nasceriam com cabecinhas pequenas, o perímetro cefálico menor do que o considerado normal. Jusikelly ficou abalada. Ainda hoje não lembra como conseguiu encontrar o caminho de volta para casa logo após o diagnóstico. Estudou, pesquisou, virou noites na Internet. Viu na TV que o seu caso não era o único. No Centro Médico onde Luhandra nasceu, escutou que pelo menos outros 50 casos haviam sido registrados no mês anterior. Era o final do ano de 2015, um verão quente em Pernambuco.
Ainda demoraria um pouco até que, intrigados, médicos e outros profissionais de saúde, pesquisadores e autoridades sanitárias apontassem respostas. O fenômeno estava associado ao vírus zika — transmitido pelo mosquito Aedes aegypt — que pode ultrapassar a placenta de mulheres grávidas infectadas durante a gestação causando malformações congênitas nos fetos. Diante das evidências, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em fevereiro de 2016, que o aumento repentino no número de casos de microcefalia pelo vírus zika constituía uma Emergência Sanitária de Interesse Global. De lá para cá, pesquisadores, instituições e sociedade têm trabalhado conjuntamente. E o Sistema Único de Saúde segue desempenhando papel central. Mas muito ainda precisa ser feito. É quase automático relacionar a microcefalia à epidemia daquele período. Na verdade, essa é apenas uma das características do que ficaria conhecido mais tarde como Síndrome Congênita do Vírus Zika, um quadro que engloba inúmeros outros sintomas diante do comprometimento do sistema nervoso central. Crianças com a síndrome podem apresentar deficiências físicas, motoras e sensoriais: problemas de visão e audição, rigidez muscular e atraso no desenvolvimento psicomotor, por exemplo.
Foi aos seis meses de idade a primeira convulsão sofrida por Luhandra. Os 15 dias de internação seguidos por mais 15 deram a dimensão do caminho em zigue-zague que Jusikelly teria pela frente. “Ela desaprendeu até a mamar”, conta à Radis, cinco anos depois. A cada crise convulsiva, a filha de Jusikelly precisa começar tudo outra vez. “Isso é o que mais atrapalha porque cada vez que acontece é como se ela esquecesse de tudo”. Quando está bem, Luhandra reage aos estímulos da mãe e às terapias, sabe escolher as sílabas para pedir água ou mingau, chama pela avó e, ao seu modo, convoca a família para um passeio. “Ela adora rua”. Gargalha quando assiste às novelas ou a um filme na TV. A mãe vibra com cada conquista. “Luhandra tem as limitações dela, mas é bem evoluída fisicamente, principalmente se levarmos em conta os danos que tem no cérebro — e que são muitos”. Sua rotina inclui muitas consultas, exames, idas à fisioterapia, fonoaudiólogos, neurologistas, ortopedistas e outras terapias que acessa via SUS. No ano passado, começaria a frequentar a creche depois de assegurar que um profissional se responsabilizaria pelos cuidados especiais de que necessita — Luhandra se alimenta por sonda. Mas a pandemia de covid-19 interrompeu os planos por ora.
Jusikelly é uma mulher de 37 anos, com outros quatro filhos, além da caçula. Quando Luhandra nasceu, viu a pequena mercearia, ganha-pão da família, definhar até fechar as portas. Precisava se dedicar inteiramente à menina. “A gente era pobre, mas tinha estabilidade financeira. Perdemos tudo. Foi complicadíssimo. Só agora estamos nos reorganizando”. Nos últimos tempos, além da ajuda do marido e dos filhos mais velhos nos cuidados com Luhandra, conta ainda com o auxílio da mãe que passou a morar com ela. Pode deixar a pequena em segurança, antes de partir para a lida diária no serviço que começou recentemente como técnica em tubulação de gás. Mas as quintas-feiras continuam destinadas à filha. Arruma a sua garota, pega a cadeira de rodas e apanham juntas a van até a Fundação Altino Ventura, no Recife, entidade filantrópica que reúne, em um único local, as muitas terapias necessárias.
No dia do quinto aniversário da filha, diante da velinha, é provável que Jusikelly tenha feito em silêncio o mesmo pedido que revelou à Radis durante a nossa entrevista: “Meu desejo hoje era que ela andasse e falasse e parasse de comer pela sonda”.
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