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Projeto Ará discute fortalecimento da pesca artesanal e da saúde na Serra da Bocaina


18/05/2023

Angélica Almeida – Agenda de Saúde e Agroecologia/VPAAPS/Fiocruz

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Nas águas claras do mar da Almada, em Ubatuba (SP), as redes do cerco-flutuante acompanham o caminho dos peixes que foi observado, compreendido e transmitido de forma secular pelas famílias pescadoras. Ali, de safra em safra e respeitando o que o mar dá, são capturados carapaus, cavalas, xareletes, sororocas, espadas, olhudos, olhos de boi, olhetes, entre tantas variedades de pescado, assim como arraias, tartarugas e outras espécies marinhas protegidas e/ou não comercializadas que acidentalmente entram nas redes e são sempre devolvidas com vida ao mar ou destinadas a projetos de conservação marinha, quando debilitadas por diversos fatores. 

Visita ao cerco-flutuante em Almada, Ubatuba (SP). Foto: Angélica Almeida - Agenda de Saúde e Agroecologia/VPAAPS/Fiocruz 

Em uma dinâmica pouquíssimo conhecida pela sociedade em geral, mas extremamente relevante para a vida social das comunidades na Serra da Bocaina e para a manutenção da biodiversidade terrestre e marinha, se desenvolve e perpetua, de geração em geração, a prática da pesca artesanal feita por caiçaras, quilombolas e indígenas. 

O quinhão -parte da produção pesqueira destinada à alimentação de quem colabora na captura- e a renda monetária resultante da venda do pescado -dividida entre a dona ou dono do cerco e a tripulação do barco- têm diminuído em uma conta em que a escassez de políticas públicas é gritante e as inúmeras pressões aumentam a cada dia: “A gente vem perdendo o território para a especulação imobiliária, para unidades de conservação - que também não entendem a gente como usuário desse território quando colocam um monte de restrições que você não se encaixa-, o turismo desordenado e várias mudanças que o turismo traz, assim como pela disputa com a pesca industrial - que utiliza de sonares para identificar os cardumes”, conta o pescador artesanal de Trindade, em Paraty (RJ), Robson Dias Possidonio. 

Aventureiro do mar desde os oito anos, Robson sente na carne como o desestímulo à atividade ameaça a continuidade da pesca e traz o risco de apagamento de inúmeros saberes a ela associados. Consciente de que cada canoa e cada pescador/a são “um ato de bravura e resistência” no eixo Rio X São Paulo, ele segue firme e forte na rebeldia de pescar. 

“Eu já vi inúmeros pescadores que falam: ‘Eu não vou investir mais na pesca porque eu só boto dinheiro fora’. Falam exatamente isso e eu também já falei. No entanto, quando chega um mês antes da safra de determinada espécie de peixe como é a tainha, está fazendo investimento porque a gente mais que acredita, a gente sente; é tocado por algo. Algo que não é só no sentido de capturar o peixe, mas é de se alimentar bem, de ter um produto de qualidade. A gente não fala só de alimento para o corpo, a gente fala de alimento para alma. As pessoas que pescam alimentam mesmo este estado de espírito. Você se sente bem, você se sente vivo, pertencente.”, reflete. 

“A gente não fala só de alimento para o corpo, a gente fala de alimento para alma.” Robson Possidonio. Foto: Marina Duarte de Souza - OTSS/Fiocruz 

Este “estado de espírito” é revigorado coletivamente. Em se tratando de pesca artesanal, ou se faz o cerco em parceria com mais pessoas ou não se faz. Ou se pensa no beneficiamento e processamento por meio de uma unidade gerida comunitariamente ou as possibilidades de agregação de valor são inviáveis, especialmente devido à descaracterização do pescado artesanal. Ou se luta pela permanência no território ou se é engolido pela especulação. Ou se organiza para avançar em um arcabouço legal que considere as especificidades desta atividade ou se permanece na informalidade, invisibilidade e criminalização desta prática ancestralmente realizada. 

Compreendendo isso, a pesca artesanal é uma das frentes de atuação assumidas pelo Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT) que historicamente evidencia como este modo de vida promove saúde e sustentabilidade para as populações e para o meio ambiente. 

O Observatório de Territórios Saudáveis e Sustentáveis - OTSS, fruto da parceria entre o FTC e a Fundação Oswaldo Cruz, recentemente realizou, entre os dias 8 e 10 de maio de 2023, uma Visita Sociotécnica a Territórios Pesqueiros justamente enfocando a cadeia produtiva da pesca, com o protagonismo das comunidades do Quilombo da Fazenda e Almada, em Ubatuba (SP), e de Trindade, Paraty (RJ). 

O encontro buscou aproximar coletivos informais e instituições públicas de pesquisa, extensão e assistência técnica que possuem interface com a atividade, a fim de criar uma rede sociotécnica que contribua para a valorização sociocultural da produção artesanal dos pescados marinhos. 

Em um processo de escuta ativa e imersão nas comunidades, a vivência permitiu identificar desafios e potencialidades que estão colocados na pré-captura, captura e sobretudo na pós-captura do pescado, a exemplo do desejo de construção de uma unidade de beneficiamento e processamento adequada à pequena escala de produção e que amplie as possibilidades de agregação de valor e a geração de trabalho e renda nas comunidades. 

“A gente está dando um avanço propondo uma unidade de beneficiamento. Falando de comunidade tradicional, pra gente é algo muito novo. A gente sempre pescou o peixe, vende in natura e, na maioria das vezes, não joga gelo no peixe. Chega à praia e aí que vai gelar em caixa de isopor. Depois, vende in natura para o atravessador ou até mesmo para restaurante. A ideia é agregar valor e gerar mais renda para a comunidade”, conta Robson. 

Além da estrutura de beneficiamento, é preciso avançar em vários aspectos como a adequação sanitária; o acesso às políticas públicas de comercialização, a exemplo da venda para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA); formações em temas como boas práticas, manipulação e fabricação do pescado; a gestão comunitária de empreendimentos; bem como a regularização fundiária dos espaços e a criação e acesso a linhas de créditos para estruturação das unidades. Além disso, têm sido pensados a criação de um selo específico que ateste a qualidade do pescado artesanal e o estabelecimento de um consórcio intermunicipal que responda ao desafio de circulação do produto nas fronteiras de Paraty e Ubatuba, tendo em vista as diferentes competências de fiscalização nas esferas municipais, estaduais e federais. 

“Para nós da Incubadora de Tecnologias Sociais do OTSS, promover espaços de trocas sobre iniciativas e demandas da pesca artesanal tradicional é fator primordial para a saúde e sustentabilidade dos Territórios Pesqueiros. Este momento histórico em que a Pesca Artesanal ganha visibilidade nas estruturas de governo nos permite sonhar e construir caminhos mais justos, calcados na promoção da Economia Solidária através de Arranjos Produtivos Locais, para garantir a continuidade desta prática que alimenta e sustenta comunidades e culturas”, avalia a bióloga marinha Aline Ishikawa, pesquisadora do OTSS e integrante da comissão organizadora da visita sociotécnica. 

“Este momento histórico nos permite sonhar e construir caminhos mais justos, calcados na promoção da Economia Solidária”, Aline Ishikawa.  Foto: Marina Duarte de Souza - OTSS/Fiocruz 

Esta construção passa pela conexão estreita entre saberes tradicionais e científicos. Nesta trama de conhecimentos de várias naturezas, estão sendo envolvidas instituições públicas de pesquisa, extensão e assistência técnica que possuem interface com a cadeia produtiva da pesca como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (FIPERJ), a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI) de São Paulo, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo, o Coletivo Missão Pesca Artesanal, e o poder público municipal de Ubatuba, por meio da Secretaria de Pesca e Agricultura, bem como representantes das Colônias de Pescadores Z10 de Ubatuba e Z17, de São Bernardo do Campo. 

O pesquisador da Embrapa Mauro Pinto explica que, por meio de uma cooperação técnica firmada com a Fiocruz, a instituição tem construído as visitas sociotécnicas no intuito de identificar demandas e necessidades dos territórios a fim de tentar oferecer algum tipo de contribuição técnica ou organizacional que facilite e melhore o trabalho das comunidades e a qualidade de vida das populações. 

Mauro destaca a relevância dos intercâmbios realizados ao longo do encontro e do acúmulo comunitário em torno da pesca, por ele descrito como um conhecimento precioso: “Este tema conecta com os temas mundiais como a mudança do clima, a preservação ambiental e a preservação de modos de vida. Esse tipo de conhecimento é fundamental não só para essa comunidade, mas para a própria sociedade e para o planeta porque possibilita a conservação do mar, da biodiversidade marinha, dos ambientes terrestres... A gente percebe o modo de vida saudável dessas populações mesmo com ausências de políticas públicas que não chegam devidamente ao território. O Estado precisa cumprir o papel de permitir o acesso às políticas que possibilitem a segurança, a qualidade de vida e a tranquilidade dessas comunidades tradicionais do território”, destaca.  

“Esse tipo de conhecimento é fundamental não só para essa comunidade, mas para o planeta”, Mauro Pinto. Foto: Angélica Almeida - Agenda de Saúde e Agroecologia/VPAAPS/Fiocruz 

O conjunto de organizações participantes na atividade assumiu o compromisso de internalizar em suas instituições as discussões realizadas no intuito de construir um plano de trabalho de curto, médio e longo prazo para o fortalecimento da pesca, assim como de identificar e engajar possíveis novas parcerias que também possam contribuir neste processo. 

A visita sociotécnica foi coordenada pelo OTSS e pela Agenda de Saúde e Agroecologia, vinculada à Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fiocruz, e realizada no âmbito do Projeto Ará

Além da Serra da Bocaina, o Ará é realizado na Zona Oeste do RJ e em Petrópolis, em um trabalho integrado com a Fiocruz Mata Atlântica e o Fórum Itaboraí: Política, Ciência e Cultura na Saúde, respectivamente, incentivando a incorporação de tecnologias sociais, a geração de trabalho e renda, a organização comunitária e a segurança alimentar e nutricional das famílias. 

O projeto Ará busca fortalecer territórios na promoção da saúde e da agroecologia. Foto: Marina Duarte de Souza - OTSS/Fiocruz 

As visitas sociotécnicas fazem parte da estratégia de aproximação da VPAAPS, dos programas territoriais da Fiocruz, comunidades e parcerias dos territórios, objetivando aprofundar o escopo das ações do Ará. Vivências nos roçados da Serra da Bocaina e nos quintais produtivos da Zona Oeste do RJ também foram realizadas no último período. 

Os participantes do encontro saborearam deliciosas receitas feitas com o protagonismo das mulheres da pesca. Foto: Angélica Almeida - Agenda de Saúde e Agroecologia/VPAAPS/Fiocruz 

A visita sociotécnica reuniu diversas lideranças comunitárias locais, coletivos informais e representantes do poder público e de insituições públicas que atuam no tema da pesca artesanal.Foto: Marina Duarte de Souza - OTSS/Fiocruz 

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