15/05/2023
Por Laís Jannuzzi - PMA/VPPCB
Cerca de 40 pessoas se reuniram para fazer parte da Oficina de Trabalho (OT) “Disseminação científica, interseccionalidade e decolonialidade: aprendizados e desafios”, na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no dia 19 de novembro de 2022. O evento fazia parte do pré-Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva da ABRASCO, coordenada pelo Programa de Políticas Públicas e Modelos de Atenção e Gestão à Saúde (PMA) ligado à Vice-Presidência de Pesquisa e Coleções Biológicas (VPPCB) da Fiocruz. O objetivo foi debater com os participantes, se questões referentes a raça, gênero e classe aparecem (ou não) no dia a dia das pesquisas nas quais eles estão inseridos e como provocar essas transformações.
A primeira etapa da programação do evento contou com cinco apresentações, a primeira foi realizada pela coordenadora geral do PMA, Isabela Santos. Para ela, fazer ciência junto com quem usa os resultados é sinônimo de mudanças no percurso da pesquisa. “A mesma coisa vale para a dinâmica de hoje. À medida que vocês forem participando, as coisas vão mudando e a gente quer que essa oficina seja diferente do que a gente pensou”, comentou. A metodologia participativa foi escolhida pela equipe de gestão, justamente por aumentar as chances de construir um caminho que leve à produção de uma ciência que vai servir à realidade brasileira. Isabela acrescentou que as reflexões sobre como alcançar esse objetivo subsidiariam a elaboração do Edital PMA 2023, assim como a condução da rede de pesquisas constituída a partir dele.
Roberta Golstein, coordenadora adjunta do PMA, fez a segunda apresentação e falou sobre o conceito de disseminação científica (DC). A DC é trabalhada pelo Programa e serve para colocar o “fazer junto”, apontado por Isabela, em prática nas Redes de pesquisas geridas pelo PMA. “A gente está fazendo ciência para brasileiros. Nós temos que ir além da escuta, nós temos que envolver as pessoas”. Ela afirmou que a expectativa das dinâmicas da DC nas Redes PMA é fazer os pesquisadores dialogarem com a população que vai ser beneficiada pelo conhecimento produzido e articularem com os agentes estratégicos para fazer a pesquisa acontecer.
De acordo com a fala da Roberta, a DC não influencia apenas o modo de fazer ciência de pesquisadores, mas também do próprio Programa. Durante os dois anos de estudo a respeito da disseminação científica – que culminaram na Nota Técnica de Disseminação Científica em Saúde Pública – a equipe de gestão tomou a decisão de implementar ações afirmativas em seu edital para a Rede PMA-APS de 2019. Para Roberta, o próximo passo é qualificar ações que induzam a participação de equipes de pesquisa mais diversas e estimular que outros editais da Fiocruz promovam um equilíbrio na disputa por espaço dentro do ambiente acadêmico.
Em seguida, a apresentação da historiadora e doutora em estudos étnicos e africanos, Luciana Falcão Lessa, teve o propósito de apresentar os conceitos de decolonialidade e interseccionalidade para dar visibilidade e trazer a experiência de grupos subalternizados num contexto histórico. Sob as lentes dessas correntes teóricas, Luciana diz que é possível enxergar uma série de violações de direitos humanos em todas as esferas sociais, incluindo a área da saúde, e seria fundamental entender essas dinâmicas para construir políticas públicas.
O decolonialismo produzido em países latinoamerianos se debruça sobre as relações de poder construídas a partir da raça como marcador central para a hierarquização social estabelecida primeiro nas colônias e reforçada nos Estados-nações durante a modernidade. Luciana disse que “em todos os lugares onde a colonização implicou em destruição da estrutura social, essas populações foram despojadas dos seus saberes”.
Além dessa opressão epistemológica, o processo de colonização do saber apresenta o raciocínio europeu masculino como conhecimento fora do tempo e espaço, provocando um assujeitamento que atribui uma onipresença de percepção e interpretação do mundo. Para a historiadora, é nesse aspecto que o conceito de interseccionalidade se faz necessário: “Quando todos os ministros do STF votaram a favor das cotas, eles fizeram isso a partir da literatura produzida pelo Movimento Negro. Na educação normal nós não temos essa literatura”.
O feminismo negro passa a olhar para a realidade a partir dos recortes de raça, gênero e classe para dar visibilidade aos diferentes tipos de desigualdades sociais. Luciana demonstrou que a ausência da produção de um saber que leva em consideração a interseccionalidade gerou, por exemplo, que mulheres negras sofressem mais com a violência obstétrica do que mulheres brancas. Ela disse, ainda, que não é possível viver num regime democrático de fato, enquanto a diversidade da população brasileira não estiver representada nos núcleos de poder.
“Violência obstétrica para só uma raça. Enfermeira que não me reconhece como humana e me culpabiliza pela causa”. A nutricionista e mestra em saúde comunitária, Ednéia dos Santos, trouxe os versos do poema “Brasil genocida”, da artista Negra Fya, na abertura de sua apresentação. Enquanto Luciana trouxe o arcabouço teórico num contexto histórico, Ednéia trouxe uma abordagem teórica e artística para conseguir aplicar a subjetividade da estrutura racista nos corpos que sentem o racismo e nos corpos que reproduzem o racismo. “O racismo eu sofro na minha existência, eu não sofro só nos meus estudos”, afirmou. Ela disse que sua apresentação e mediação da atividade teriam a função de incomodar os participantes: “E a gente nesses incômodos vai tentando reconstruir e ressignificar esse processo de estudos e de estrutura social”.
A também apresentadora e mediadora das dinâmicas da OT, Camila Athayde, foi a última a falar. A psicóloga trouxe a questão da raça que não se racializa: a branca. “A branquitude não é só manutenção de poder entre pessoas brancas. É uma cultura repassada cuja maioria é parda e preta”. Camila argumentou que isso se reflete na academia ao percebermos que praticamente todos os referenciais teóricos utilizados são os produzidos por pessoas brancas e europeias. Ela alertou para o perigo de reduzir a interseccionalidade a uma ferramenta de análise apenas para questões alteritárias, e defendeu que o conceito dá conta de analisar relações territoriais de poder.
Com o encerramento das apresentações, os participantes foram divididos em dois grupos e tinham que refletir a respeito de perguntas norteadoras: “Em que medida os conceitos de interseccionalidade e decolonialidade estão presentes em sua vida profissional, na sua experiência em ensino e pesquisa científica?” e “Como incluir interseccionalidade e decolonialidade no seu trabalho e na sua atuação na ciência, em especial nas pesquisas científicas? Quais são as metodologias que vocês utilizariam?”
No grupo 2, a discriminação de metodologias e referenciais fora do conhecimento eurocentrado foi central nas colocações dos participantes. Durante a conversa foi possível perceber a existência de barreiras no cotidiano dos pesquisadores que buscam incorporar outros saberes aos seus estudos. Vanira Pessoa, pesquisadora da Fiocruz Ceará e integrante da Rede PMA-APS, disse já ter ouvido que sua metodologia de pesquisa ação e amorosidade não era conhecimento da área de saúde e que era coisa para a revista “Marie Claire”. “A maioria dos editais aos quais submeto projetos eu tenho que camuflar esse lado da pesquisa para ter chance de aprovação. O edital do PMA foi o primeiro no qual não precisei fazer isso”, disse.
Outra pesquisadora e membro da Rede PMA-APS, Grácia Gondim, disse que sofreu preconceito por ser mulher nordestina e pesquisadora ao se mudar para o Rio de Janeiro. Essa vivência aponta que a resistência acadêmica não se restringe apenas ao desenvolvimento do conhecimento científico, mas também às vivências das pessoas envolvidas nesse processo.
Já no grupo 1, a dinâmica de pesquisa dentro do território e as tentativas de interação com ele foi muito debatida na roda de conversa. Islândia Sousa, também pesquisadora e membro da Rede PMA-APS, disse que ao pensar numa política de ação com as pessoas, enxerga a busca por saber quais são as perguntas realmente importantes para quem mora na região como ponto de partida importante. A enfermeira e pesquisadora da Fiocruz Ceará, Ângela Ostritz, complementou a fala de Islândia quando falou sobre as dificuldades na relação de pessoas indígenas que são geridas sanitariamente por pessoas não indígenas. “Durante a pandemia, eles não queriam que seus parentes fossem intubados”.
Ela também trouxe o exemplo da detecção de arsênio em crustáceos em determinada região e a recusa das marisqueiras a fazerem a testagem por medo de serem excluídas da sociedade. “O gestor público costuma ter uma cabeça, linear. Isso não funciona em situações assim, por isso o trabalho político de articulação com outros campos é muito importante”, concluiu. Para Islândia, é fundamental que os programas voltados para a pesquisa realizaram um movimento autocrítico: “Eles se permitem ser decolonizados? O pesquisador tem lugar de poder e tem que se autoavaliar”. A pesquisadora Anya Vieira (Fiocruz CE) complementou: “E dói na pele, né? É difícil fazer isso, porque nós temos um ego”.
Com o encerramento das reflexões, as relatoras de cada grupo apresentaram uma síntese. Camila pelo grupo 1, falou sobre a questão territorial, enquanto Ednéia ressaltou os desafios de se pensar a subalternidade e disse que o debate promovido pela oficina de trabalho era uma semente capaz de ajudar na construção de editais inclusivos e políticas públicas mais assertivas.