22/10/2021
Patricia Álvares (Agência Fiocruz de Notícias)
Quando a Fiocruz se uniu à pequena cúpula de países anfitriões das Comunidade Global sobre Tecnologia e Inovação Sustentáveis (G-STIC, na sigla em inglês), em 2018, o mundo não conhecia o Sars-CoV-2. Agora, enquanto a população mundial se vacina contra a Covid-19, a quinta edição do encontro anual (quarta com a Fundação), aposta em um modelo híbrido de participação entre 24 e 26 de outubro. A programação inclui sessões virtuais e presenciais em busca de novas soluções tecnológicas a serviço da sociedade, amigáveis com o planeta e voltadas a nove dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030. Neste ano, a G-STIC integra ainda o cronograma da Expo Dubai, exposição mundial organizada pelo Gabinete Internacional de Exposições (BIE, na sigla em inglês).
“Há um antes e depois da Covid-19 na forma de pensar tecnologias”, diz Paulo Gadelha a caminho da G-STIC na ExpoDubai (foto: Divulgação)
Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias, o coordenador da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 (EFA 2030), Paulo Gadelha, ressaltou a importância da iniciativa da qual a Fundação é coanfitriã. Às vésperas de embarcar para Dubai, o também ex-presidente da Fiocruz compartilhou as expectativas de trazer a G-STIC ao Brasil em 2022. Além de Gadelha, o pesquisador Pablo Quesado representa a Fiocruz no dia 26 com a palestra sobre organização dos cuidados para responder a calamidades, dentro da temática de gestão para hospitais do futuro.
Embora naquele 2018 de estreia na G-STIC a própria Fundação e outras instituições de pesquisa no Brasil e no mundo já investigavam patógenos nocivos para prevenir eventuais pandemias, ninguém poderia precisar quando, onde e como, ou se, efetivamente, um contágio perigoso surgiria e sairia do controle. Em 2020, quando o coronavírus pegou o mundo de surpresa, a Fiocruz já havia implementado a saúde como eixo transversal ao desenvolvimento sustentável no contexto da G-STIC. Gadelha explica como a conferência global assumiu um papel central no contexto da pandemia.
AFN: O que é G-STIC?
Paulo Gadelha: A G-STIC está voltado para pensar o que a gente chama de tecnologias integradas para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Então, na verdade, busca entender quais são essas tecnologias que já estão no mercado ou muito próximas de entrar no mercado e seu impacto, a relação entre custo e benefício, a acessibilidade. Isso é um tema central, porque primeiro diz respeito ao direcionamento da tecnologia do campo da Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I) como um todo. E isso tem uma correlação muito forte com os princípios da Agenda 2030, configurados no Mecanismo de Facilitação Tecnológica da ONU (TFM, na sigla em inglês). Então, foi nesse momento após a elaboração do próprio documento base da Agenda 2030 que se colocou a relevância fundamental para os ODS.
AFN: É colocar a tecnologia a serviço do planeta?
Paulo Gadelha: É a ideia de conduzir ou dirigir uma carruagem que você precisa levar para algum lugar, defende que a tecnologia e a inovação não têm naturalmente um caminho que leve a responder às necessidades mais relevantes das populações do planeta. A inovação agrega valor e busca otimizar a produtividade, mas ela não tem uma direção per si. O próprio desenho das tecnologias, a forma como são comercializadas, como são produzidas e aonde se dirigem muitas vezes produzem efeitos que levam à iniquidade, a agravos ao meio ambiente. Seja na questão da saúde ou do meio ambiente, a gente precisa de uma série de instrumentos para fazer com que a área de Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I) seja otimizada e dirigida para a resolução desses problemas.
A ONU também tem discutido muito esse tema, mas de volta à G-STIC, que se afirmou no nicho de identificar tecnologias integradas que tenham essas características e debater questões ligadas ao processo de financiamento, regulação e deployment, em inglês, que é um processo de espalhamento das tecnologias, as conexões com a incorporação tecnológica e as questões da política cultural, social e econômica com assimetrias entre países.
A Covid-19 é uma questão central, mas há um antes e um depois que firmou essa faixa de pensar tecnologias integradas para todos os campos dos 0DS e ver quais são as políticas e as condições que se recomenda nesse campo mais geral, aquilo que facilita o processo de chegada dessas inovações no mercado com essas características: que produzam efeitos de equidade, sejam acessíveis e sustentáveis.
AFN: Como avalia o impacto da Covid-19?
Paulo Gadelha: A Covid-19 teve um impacto muito grande sobre toda a questão global, e efeitos no campo da economia, da sociedade, da saúde e da questão ambiental. A própria Agenda 2030 sofreu bastante com a Covid, na medida em que seus objetivos foram impactados na questão da educação, da pobreza, da saúde, e da própria posteridade que não é um tema da agenda. Então, há um impacto bastante forte sobre a Agenda 2030 e seus objetivos, mas ao mesmo tempo a pandemia ressaltou, entre tantas coisas, a importância de pensar a saúde de maneira ampla para colocar os determinantes sociais da saúde associados às cadeias produtivas, ao poder do desenvolvimento, a temas ligados ao extravasamento de fronteiras, ao caso da zoonose, a visão da saúde única. Então, a saúde criou relevância muito grande e, ao mesmo tempo, foi a área que mais sofreu com a pandemia. E mesmo assim se desenvolveu pra sair com medidas virtuosas, o que os americanos chamam é build tech better, que é construir, reconstruir bem. A saúde também se tornou uma questão de base para a recuperação da economia e modelos de desenvolvimento.
AFN: Que lições a pandemia deixa?
Paulo Gadelha: Outra questão muito relevante da Ciência, Tecnologia & Inovação foi o impacto, as lições que vieram da Covid. Foram imensas para essa área. Primeiro ficou claro que os países que tinham um sistema de inovação em curso foram os que melhor saíram adiante porque responderam [rapidamente] a essas crises. Mostrou-se a necessidade de enfrentamento, o que poderia ser colocado para o enfrentamento de todos os temas relacionados à Agenda 2030. A possibilidade de acelerar o tempo de inovação mostrou de novo efeitos extraordinários, como o recorde de um ano para chegar a vacinas eficazes, seguras. Mas houve efeitos perversos também, já que foi feito de uma maneira que aumentou a iniquidade no acesso às vacinas. É bem conhecido que uma dezena de países têm mais de 70% [de sua população vacinada], enquanto a África está em 2%. Assim se mostrou para a comunidade científica a necessidade de repensar suas formas de atuação e os impactos que a Covid trouxe, de quase fazer um reset. Nas palavras do Conselho Internacional de Ciência, apertar o botão reset e repensar o caráter público e compartilhado da Ciência, Tecnologia & Inovação.
AFN: Como ficou a OMS nesse cenário?
Paulo Gadelha: Um exemplo muito forte de tudo que estou falando pode ser analisado na maneira como a Organização Mundial da Saúde (OMS) trabalhou na sua interface. Havia uma crítica muito grande à OMS pelo descolamento, por não ter um agenciamento mais forte no campo da inovação e não fazer um esforço para reduzir o gap entre os financiamentos para pesquisa e inovação e as demandas mais relevantes da população mundial. Com a Covid, algumas dessas características foram superadas e, em muitos sentidos, remetem a uma atuação exemplar: atuou dentro do que a gente chama de “trabalhar a inovação por missão”, que é ter claramente os objetivos para onde se quer chegar, trabalhar com a ideia de compartilhamento de plataformas genômicas e de informação, etc. É trabalhar para atuar no contexto muito mais amplo que envolve processos regulatórios, processos de financiamento e mecanismos de busca para mitigar a iniquidade, como o Covax.
Nesse sentido, a OMS criou um caso exemplar, ainda que mesmo assim, óbvio, pelas dinâmicas mais gerais dos países, da geopolítica, dos interesses nacionais e interesses comerciais. Não chega a romper com essa tendência mais forte que é demonstrada no nacionalismo extremo, nas barreiras alfandegárias, no uso da vacina com viés político... Em certo sentido a gente tinha que pensar isso tudo também, olhar esse grande universo de questões da Covid, a questão climática, a questão energética, a economia circular. São vários temas que têm a saúde relacionada tanto com a Covid, como desdobramentos gerais com relação à cobertura universal e a várias questões, sempre tentando olhar para Ciência, Tecnologia & Inovação.
Serviço:
Comunidade Global sobre Tecnologia e Inovação Sustentáveis (G-STIC)
De 24 a 26 de outubro