03/03/2023
Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)
A Presidência da Fiocruz lamenta profundamente o falecimento, nesta sexta-feira (3/3), aos 87 anos, do parasitologista e protozoologista Erney Felício Plessmann de Camargo, professor-emérito da USP, instituição na qual fez parte do corpo docente do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB). Camargo foi membro do Conselho Superior (CS) da Fundação, órgão consultivo composto por representantes da sociedade civil que não pertençam aos quadros da instituição, e coordenador do Comitê de Avaliação de Credenciamento de Laboratórios no Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
Erney de Camargo na conferência proferida nos 119 anos da Fiocruz (foto: Peter Ilicciev)
Em 27 de maio de 2019, Camargo proferiu a conferência A ciência do futuro e o futuro da ciência na Fiocruz, um dos principais eventos comemorativos dos 119 anos da Fiocruz. Na ocasião, ele lembrou sua trajetória profissional e acadêmica, da conturbada vida política nacional nas últimas décadas, das perseguições e do arbítrio do regime militar e dos pontos de contato que teve com a Fiocruz e seus pesquisadores ao longo dos anos.
Camargo lembrou que quando estudou medicina na USP, na década de 1950, os médicos saíam dos bancos escolares diretamente para os consultórios. Foi justamente naquele período que isso começou a mudar, por empenho de professores como Samuel Pessoa, que se indignava com o descaso com a saúde e as más condições de vida da população brasileira, especialmente os moradores dos rincões interioranos, e com quem Camargo teve aulas. Foi Pessoa quem convenceu o jovem médico para vir ao Rio de Janeiro conhecer o IOC/Fiocruz.
Os primeiros trabalhos de Camargo foram sobre a bioquímica de protozoários parasitas, em colaboração com outro pesquisador que no futuro se tornaria um dos grandes cientistas brasileiros: Luiz Hildebrando. O primeiro trabalho independente, publicado em 1964, versou sobre o crescimento e diferenciação do Trypanosoma cruzi, sendo até hoje citado na literatura científica internacional.
Com o golpe de 1964, Camargo e vários outros pesquisadores foram demitidos da USP, sendo que alguns foram presos. Entre eles, Luiz Hildebrando, Luís Rey e Leônidas e Maria Deane, que mais tarde trabalhariam na Fiocruz. A violência dos inquéritos policiais militares (IPMs) contra as instituições acadêmicas caiu de maneira pesada em cima da Faculdade de Medicina da USP, sobretudo em relação aos pesquisadores que combatiam as precárias condições sanitárias da maior parte da população, e Camargo teve que sair do Brasil, indo para a Universidade de Wisconsin (EUA).
De volta ao Brasil, Erney de Camargo ingressou, em 1970, na Escola Paulista de Medicina, onde ajudou na reorganização do Departamento de Microbiologia e Parasitologia. Mas logo depois ele e Hildebrando foram novamente presos. Camargo trabalhou um tempo na iniciativa privada e foi colega, na Editora Abril, de outros dois perseguidos pelo regime militar: o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o economista José Serra. Com a redemocratização, em 1985 ele retornou à USP como professor Departamento de Parasitologia do ICB. Na universidade ele ocupou cargos administrativos e reconstruiu sua carreira, sendo citado entre os cientistas que compõem a elite brasileira da protozoologia. Seus trabalhos abarcam um amplo espectro do conhecimento, tratando da biologia, da evolução e da filogenia de tripanosomídeos, plasmódios e vetores como o Anopheles. Camargo foi também um dos responsáveis pela criação de um núcleo avançado de pesquisa da USP na cidade de Monte Negro, em Rondônia.
Graduado em Medicina em 1959, com doutorado e livre-docência pela USP, Camargo foi professor-titular do ICB e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi pró-reitor de Pesquisa da USP, diretor do Instituto Butantan e presidente da Comissão Nacional Técnica de Biossegurança (CNTBio) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No período em que foi presidente do CNPq, de 2003 a 2007, o Conselho expandiu sua capacidade de financiamento e por isso sua gestão é até hoje muito bem avaliada pela comunidade científica brasileira. Camargo era diretor-presidente da Fundação Conrado Wessel e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Foi presidente da Sociedade Brasileira de Protozoologia e membro das sociedades brasileiras de Bioquímica e Parasitologia e da Linnean Society of London.
Na USP, o pesquisador também trabalhou com taxonomia, filogenia e evolução de tripanosomatídeos. Nos últimos 15 anos atuou, principalmente, na Amazônia, África e América do Sul (Venezuela e Colômbia) e dedicava-se ao Programa Pro-África, tendo visitado aquele continente anualmente, desde 2008. Em 2012 ele recebeu o título de professor-emérito da USP.
Seus quatro filhos (Marcelo, Fernando, Eduardo e Ana Maria) seguem carreiras científicas e sua esposa, Marisis, é professora universitária na área de Literatura Inglesa. Literatura, história, música, futebol, trabalho de campo em malária e seus 11 netos eram suas paixões. O velório terá início às 9h deste sábado (4/3), na Funeral Home, Sala Roma, e a despedida será às 13h. O local fica na Rua São Carlos do Pinhal 376, na capital paulista.