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Fiocruz foi epicentro da mobilização pela 8ª Conferência


10/11/2016

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Por Juliana Krapp/ Portal Fiocruz

Os dias eram de censura e barbárie. No Castelo Mourisco, tomado por representantes do governo militar, vigorava o autoritarismo. Mas, em outros pontos do que é hoje a Fundação Oswaldo Cruz, pulsavam focos de resistência e de novas ideias. É o caso da Escola Nacional de Saúde Pública, que, nos anos 70, compunha um dos núcleos mais ativos da chamada Reforma Sanitária. Médicos, cientistas políticos e outros profissionais se debruçavam sobre a defesa de que saúde é indissociável das condições sociais, e um direito de todos os cidadãos. Com isso, construíam a mobilização e o debate que seriam fundamentais para a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986.

“Na leitura do marco que foi a Oitava, é fundamental compreendermos que o evento foi um ponto dentro de um movimento maior, que vinha se consolidando desde muitos anos antes”, destaca o sociólogo Arlindo Fábio Gómez de Sousa, que foi vice-presidente da Fiocruz durante a gestão de Sergio Arouca, figura proeminente do movimento sanitário, coordenou a Comissão Nacional da Reforma Sanitária e é, hoje, superintendente do Canal Saúde.

Como parte desse processo, um passo essencial foi a criação dos cursos descentralizados de saúde pública, em meados da década de 1970, pela Escola Nacional de Saúde Pública. Com a inauguração dos núcleos em diferentes estados brasileiros, desenhou-se uma rede de escolas que confrontava os antigos modelos de atendimento em saúde, ao incorporarem os debates do movimento sanitário.

Resistência e debate

“Os cursos ajudaram a espalhar o pensamento crítico do movimento pelo Brasil, abrindo caminho para o debate”, explica Arlindo, narrando também os desafios desse período: “A Ensp sempre foi inovadora. Em meados dos anos 60, já tinha um departamento de ciências sociais, o que não era nada usual [nos espaços destinados ao ensino de saúde]. Era um campo fértil para novas ideias, um espaço onde os profissionais se mantinham atentos ao que ocorria no mundo. Não à toa, durante a ditadura houve uma tentativa grande de acabar com a Escola, de esvaziá-la. Muitos de seus profissionais foram perseguidos. Em 67, éramos mais de 80 professores. Em 1973, apenas oito. Mas, enquanto isso acontecia, mantínhamos a perspectiva de olhar a saúde pela dimensão social.”

Carlos Paiva, historiador da Casa de Oswaldo Cruz (COC), também destaca o papel da rede de escolas: “Os cursos descentralizados em saúde pública se situam, de um lado, no contexto de fortalecimento político-institucional da Fundação Oswaldo Cruz, recém-criada sob esse formato. Ainda que possamos reconhecer que aquele período foi marcado por duros anos que impuseram perdas, especialmente de pessoal, também foi uma fase em que a Fundação pôde exercitar sua musculatura, tornando-se mais forte e atuante pelo amplo território brasileiro. Ao promover a descentralização de seus cursos básicos de saúde pública a Fiocruz ampliava sensivelmente o número de alunos matriculados, ampliando, igualmente, a formação e a qualificação de pessoal de saúde pública nacional”.

Além disso, contando também com a apoio de iniciativas como a do Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde (PPREPS), a Fundação apoiou a criação de Núcleos Regionais de Formação de Recursos Humanos em Saúde por vários estados brasileiros, lembra o historiador. “Esse movimento todo aumentou, sem dúvida alguma, o espectro de debates do movimento sanitário. Um debate que tinha, num só tempo, contornos políticos muito claros, mas sobretudo se deu a partir do aumento e da consolidação de uma produção científica que, mais adiante, localizaríamos como parte do campo da Saúde Coletiva.”

O papel do Programa Radis

Outro elemento fundamental no processo rumo à Oitava foi a criação do Programa Radis de Comunicação e Saúde, em 1982. Suas três publicações — Súmula, Tema e Dados — inovaram ao abordar a temática da saúde em seu sentido mais amplo, levando para todo o país reportagens aprofundadas sobre temas caros ao campo, análises de informações epidemiológicas e um apanhado crítico do que era publicado na imprensa. “O Programa  Radis foi absolutamente fundamental nesse processo, uma vez que foi um instrumento eficaz para fazer os debates sobre saúde chegarem nos sindicatos, nas instituições, nos alunos, nos serviços de saúde. Imagina o que era estar no interior do Acre, no começo dos anos 80, e poder ter acesso a essas informações todas.  Foram as revistas que ajudaram a fomentar os debates anteriores à Conferência”, conta Arlindo. Mais tarde, em 1987, o Radis também lançaria Proposta, jornal em formato tabloide, que colocaria em debate as teses do movimento sanitário.

Carlos Paiva recorre ao contexto histórico para apontar a importância do programa: “Na primeira metade dos anos 80, a ditadura militar agonizava, mas também agonizavam a economia e a situação de vida do povo brasileiro. A agonia da ditadura, porém, criava a esperança de que poderíamos, finalmente, produzir meios concretos para a superação do quadro social devastador. Era preciso reunir uma ampla base de apoio político para iniciativas e políticas específicas capazes de enfrentar a realidade social degradada. Nesse sentido, os esforços de comunicação e disseminação do conhecimento sobre a situação de saúde e os caminhos a serem seguidos nessa área não eram um empreendimento que se pudesse classificar como desimportante. O Programa Radis veio justamente para cumprir esse importante papel. Seu viés crítico e independente permitiu que viesse a público uma série de análises que dialogavam com um conceito ampliado de saúde, fundamental para a produção de uma base política – ainda que com contradições em seu interior – que permitiria que o movimento sanitário tivesse certo êxito tanto na Oitava quanto no processo de construção do SUS”. 

Pela posse de Arouca

Um ano antes da Oitava Conferência, algo de sua atmosfera — e de sua força mobilizadora — já se ensaiava num outro episódio emblemático para a história da saúde coletiva: a chegada de Sergio Arouca à presidência da Fiocruz. Apesar de suas naturezas distintas, os dois episódios estão interligados na trajetória rumo à construção do SUS. E não apenas pelo protagonismo que Arouca teve na execução da Oitava. A força-tarefa que uniu médicos, cientistas, sociólogos e figuras políticas numa campanha suprapartidária pela posse do sanitarista foi uma espécie de ensaio para o movimento de mobilização que, mais tarde, daria vigor à conferência.

Até aquele ano de 1985, a presidência da Fiocruz era ocupada por nomes impostos pelo governo militar. A instituição sofrera um intenso processo de desmonte, com episódios de violência, cassações, censura e bloqueios à ciência e aos trabalhos em saúde coletiva. Arouca já era um sanitarista renomado e professor de destaque na Ensp. No campus, surgiu com muita força um movimento para leva-lo à presidência da instituição, quebrando, enfim, o ciclo de presidentes indicados à revelia da comunidade de Manguinhos. Faltava, porém, convencer o governo, em Brasília. A redemocratização estava começando, e José Sarney era o presidente da República, após a morte de Tancredo Neves.   

O novo ministro da Saúde, Carlos Sant´Anna, apesar de não ter envolvimento direito com a reforma sanitária, era casado com uma médica sanitarista, Fabíola de Aguiar Nunes, engajada no ideário do movimento. O secretário-executivo do ministério era Eleutério Rodriguez Neto, médico que foi figura-chave na reforma sanitária e no movimento em prol do SUS. Ambos — Fabíola e Neto — deram força para que a defesa pela posse de Arouca ultrapassasse os muros da Fiocruz, forjando uma campanha que teve intensa participação da sociedade civil organizada.   

“Formou-se um movimento nacional pela posse do Arouca. Não foi, porém, tão espontâneo quanto parece. Teve muito trabalho envolvido. Nós, pessoas mais próximas, colocávamos o currículo do Arouca debaixo do braço e viajávamos o Brasil todo, pedindo apoio”, conta a jornalista Christina Tavares, assessora de comunicação da Fiocruz à época. Entidades como Abrasco, Cebes, OAB e ABI ajudaram na mobilização, acrescenta. E o apoio de figuras importantes, como Betinho, deu ainda mais peso à campanha. Logo o gabinete de Carlos Sant´Anna passou a receber inúmeros telegramas e telex’s, pedindo a nomeação. “Ainda assim, foi uma saga. O PMDB ora apoiava, ora mudava de ideia. E havia os concorrentes na disputa pela presidência. Havia até um dentista de Bonsucesso que dizia ser médium e receber o espírito de Oswaldo Cruz. Segundo ele, o cientista não queria ver Arouca na presidência. Outro oponente calcou toda sua campanha na defesa de que a Fiocruz não poderia ser presidida por um comunista [Arouca era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB)].”

Tomada do Castelo

A mobilização, porém, deu certo. No começo de maio, a nomeação de Arouca foi publicada no Diário Oficial. Nesse dia, ocorreu o episódio que foi chamado, informalmente, de “tomada do Castelo”. O sanitarista e outras dezenas de profissionais da Fiocruz subiram juntos as escadas do Castelo Mourisco, em euforia. “Arouca conseguiu unir sanitaristas, cientistas e tecnologistas. No castelo, só encontramos as secretárias. As chefias anteriores já haviam deixado tudo para trás”, relembra Christina.

Poucos dias depois, ocorria um marco histórico, com a cerimônia de posse. “Foi uma catarse. O espírito da Oitava já estava presente ali, um dos momentos mais marcantes daquele período”, descreve a jornalista. Tão logo assumiu a liderança da Fiocruz, Arouca recebeu a missão de coordenar a Oitava Conferência. A mesma atmosfera de congraçamento que aglutinou inúmeros atores na defesa de sua nomeação foi a tônica para o processo de mobilização popular que antecedeu o encontro. “Formamos caravanas e, de novo, caímos Brasil afora”, diz Christina. 

“Eu estou convencido de que a mobilização em torno da figura do Sergio Arouca tem muita relação com a efervescência da Oitava Conferência”, afirma Paiva. “A ‘tomada do Castelo’, para além do simbolismo que se podia ter em um personagem afinado com os ideais da Reforma Sanitária assumir uma das mais importantes instituições de pesquisa do país, tinha também uma imensa movimentação de bastidor que, antes e depois, fez pessoas convergirem, se organizarem, ganharem experiência na condução política de suas propostas frente a outras lideranças, partidos políticos, enfim, conduzirem negociações em um ambiente marcado por imensas disputas.  E Arouca ocuparia a Presidência da Oitava Conferência. Ele acompanhou de perto, por esse imenso país, a realização das conferências preparatórias para a Oitava, todas realizadas no âmbito dos estados, de maneira que foi possível arregimentar e melhor organizar diferentes atores que, ainda que sempre sob imensas disputas, convergiriam para o campo de batalha da Oitava.”

Arlindo, que experimentou intensamente esse campo de batalha, reforça a importância de considerar a conferência como um elemento, dentre tantos outros, na construção de uma nova forma de encarar a saúde no Brasil: “A Oitava é resultado de um processo longo, difícil, trabalhoso, de muito sacrifício. E, diferentemente do que algumas leituras sugerem, ela não desemboca naturalmente no texto que deu origem à Constituinte. Em vez disso, a conferência criou a Comissão Nacional da Reforma Sanitária, onde ocorreram debates muito intensos, dos quais nasceu o texto que seria submetido à Assembleia Nacional Constituinte. É preciso observar que a Oitava Conferência é um momento de inflexão dentro de um momento de inflexão maior — o da sociedade brasileira, que revia a si mesma.”

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