13/11/2023
Suzane Durães (Coordenação de Ambiente - VPAAPS/Fiocruz)
Foto: Fiocruz Brasília
Com o objetivo de debater recomendações e evidências que auxiliem os gestores e atores-chave do Sistema Único de Saúde (SUS) no processo de formulação de políticas, que garantam o direito à saúde e à vida dos povos originários e comunidades tradicionais dos cerrados brasileiros, foi realizado no dia 8 de novembro, na Fiocruz Brasília, o painel “Ecocídio do Cerrado: Subsídios para a garantia do direito à saúde dos povos originários e comunidades tradicionais”.
O painel, organizado pela Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS), com o apoio da Fiocruz Brasília, se insere no contexto da Cooperação Técnica-cientifica entre a Fiocruz e o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) e é um dos desdobramentos da pesquisa “Ecocídio e Globalização dos Cerrados Brasileiros: resistências e lutas dos povos e comunidades originários e tradicionais pelos direitos à saúde e à vida”.
Segundo Guilherme Franco Netto, coordenador da pesquisa e professor visitante do CES, o estudo tem por objetivo analisar a resistência dos povos originários e comunidades tradicionais do Cerrado em suas lutas contra o ecocídio e a globalização do território, contribuindo para a garantia de seus direitos à saúde e à vida. Foi a partir da denúncia feita ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP) pela Campanha em Defesa do Cerrado que a Fiocruz iniciou o projeto de pesquisa.
Foto: Suzane Durães
Durante o evento, foram apresentados dados impactantes sobre processo de ecocídio nos territórios e abordaram a necessidade de intervenção nesses territórios. Marli Borges da Silva, representante da Comunidade Quilombola Guerreiro/Maranhão, alerta para a destruição do seu território que vive cercado pelo agronegócio. “A tendência é acabar com o Cerrado e toda a população que vive nele”, disse.
Ela também destaca o aparecimento de doenças na comunidade. “Meus netos já sofrem com as doenças. Minha netinha tem colesterol alto. Meu neto só vive no hospital com tontura e coceira. Tem dia que tenho medo de tomar banho porque leva cerca de 30 minutos para parar a coceira e quentura no corpo”, afirma.
Na Comunidade Quilombola Cocalinho/Maranhão, os relatos não são diferentes. Raimunda Nonata Nepomuceno, representante da comunidade, afirma que os quilombolas estão tomando água contaminada pelos agrotóxicos e sofrendo com a perda da produção. “Antes colhíamos arroz, feijão, abóbora... e agora a produção tem diminuído. Como vamos sustentar nossas famílias se a nossa produção de alimentos está destruída? Estamos sem água e sem alimentos”, disse.
O documento “Vivendo em territórios contaminados: um dossiê sobre agrotóxicos nas águas do Cerrado”, lançado pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, foi apresentado pela pesquisadora do Instituto Aggeu Magalhães (IAM/Fiocruz), Aline Gurgel, que também mostrou dados alarmantes colhidos, no âmbito da sua pesquisa realizada nos estados do Centro-Oeste (GO, MT e MS) e do chamado Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Segundo Aline, 90 substâncias foram analisadas em comunidades e constatada a presença de agrotóxico na água em todos os estados pesquisados. “No total, foram encontrados 13 agrotóxicos. Em Cocalinho, no Maranhão, numa única amostra foram encontrados nove agrotóxicos diferentes na água”, explicou.
Alessandro Aldrin Pinheiro Chagas, assessor técnico do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), ressaltou a necessidade de ação imediata do SUS local diante das evidências apresentadas sobre presença de agrotóxicos na água para consumo humano, de acordo com a portaria que define os parâmetros e valores aceitáveis dos agrotóxicos e o aprimoramento do modelo de atenção integral à saúde no Território Quilombola de Cocalinho, que engloba as comunidades de Cocalinho e Guerreiro.
Paulo Rogério, representante da Alternativas para a Pequena Agricultura no Tocantins (APA-TO) e da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, explica que a partir da década de 70 observa-se uma série de programas governamentais que trouxeram logicas de desenvolvimento de Estado. “Esse conjunto de programas foi possibilitando recursos para que o Cerrado se transformasse no que é hoje, focado na expansão do agronegócio. Grilagem, violência e destruição da sociobiodiversidade do Cerrado são resultados dessas políticas”, disse.
A necessidade do fortalecimento das ações governamentais de proteção aos povos originários e comunidades tradicionais e a melhoria do acesso à saúde dessas populações também foram ressaltadas pelos participantes. Para Valcler Rangel, assessor especial da Ministra da Saúde, o governo Lula tem o papel de acelerar o processo de redução da desigualdade. “Uma das tarefas que temos é fazer o SUS chegar nesses locais e isso precisa ser feito por meio do diálogo com as pessoas”, afirmou.
Valcler também abordou a concentração de riqueza e do racismo no Brasil. “O enfrentamento de quatro milhões de negros trazidos da África para o Brasil não pode ser um enfrentamento qualquer. Não tem como olhar para essa situação sem colocar a constituição do racismo no Brasil”, ressaltou.
A questão do racismo ambiental também foi trazida por Ronaldo dos Santos, secretário nacional de Políticas para Quilombos, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Ciganos do Ministério da Igualdade Racial. “Não basta denunciar os crimes ambientais sem denunciar a conotação racista que estrutura e sustenta muitas práticas desenvolvimentistas e que se dão muitas vezes as custas das condições de vida de muita gente, disse. Ele ainda ressaltou a “necessidade dos braços do Estado, da academia, e ações voltadas ao fortalecimento dessas populações que ocupam todos os biomas e ecossistemas”.
Ana Maria Sales Placidino, coordenadora-geral de Inclusão Produtiva e Etnodesenvolvimento de Quilombolas e Povos e Comunidades Tradicionais da Secretaria de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombola e PCT’s / Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, lembrou um dos lemas da revolução dos Malês - manifestação de escravizados ocorrida em 1835, em Salvador. “A liberdade é o estado do não abatimento. E hoje, vimos no vídeo apresentado e nas falas a luta secular pela liberdade presente em todos nós”, completou.
Na avaliação de Hermano Castro, vice-presidente da VPAAPS, as desigualdades e exploração nesse país têm grande impacto na saúde e essa situação precisa ser reparada. “Precisamos ver como a Fiocruz e o TPP podem avançar na análise desse projeto de pesquisa. Esse painel poderá contribuir para a construção de políticas públicas para o Cerrado e isso envolve todos aqui”, destacou.
Maria Fabiana Damásio, diretora da Fiocruz Brasília, defendeu a união de esforços para a preservação do Cerrado e seus povos e comunidades do Cerrado. “O Cerrado é o berço das águas e precisamos lutar para que não seja um berço de lágrimas. Neste bioma são encontradas mais de 12 mil espécies de plantas, considerado uma das maiores biodiversidades do mundo, e nos deparamos com o desmatamento”, ressaltou.
Foto: Suzane Durães
Um dos desafios apontados no painel é o cadastramento dos povos e comunidades tradicionais do Cerrado. Segundo Lilian Silva Gonçalvez, coordenadora do Acesso e Equidade da Secretaria de Atenção Primária à Saúde / Ministério da Saúde, os cadastros e informações referentes aos povos e comunidades tradicionais, enquanto sistema de saúde, deveria conseguir enxergar essa população.
“Estima-se que existe muito mais de 10 milhões de pessoas como povos e comunidades tradicionais e floresta águas no Brasil, segundo informação do MDA e do MPA. No entanto, no nosso sistema de informação só tem apenas 1,62 bilhão pessoas cadastradas. A assessoria técnica tem revisto isso, temos olhado recentemente para os dados e estamos pautando a questão com a Secretaria de Informação e Saúde Digital (Sedigi), o DataSUS e a Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS).”, afirmou.
Também participaram do painel: Gianni Tognoni, secretário-geral do Tribunal Permanente dos Povos (TTP); João Arriscado Nunes, professor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) da Universidade de Coimbra; Patrícia Canto, coordenadora de Atenção da VPAAPS/Fiocruz; Paulo Gadelha, coordenador da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 da Fiocruz; e Karyston Adriel Machado da Costa, representante da Secretaria de Saúde do Mato Grosso do Sul na Câmara Técnica de Vigilância em Saúde Ambiental do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).
Foto: Suzane Durães
Mostra fotográfica - Além do debate, os participantes puderam apreciar a mostra fotográfica “Cores, Sabores, dores e fazeres de quilombolas no Maranhão” do fotógrafo Maurício Maia. As fotos retratam o dia a dia dos moradores das Comunidades Quilombolas Cocalinho e Guerreiro, localizadas a 44 km do município de Parnarama, no Maranhão, na divisa com o Piauí. As imagens foram captadas durante a atividade de campo do projeto de pesquisa, realizado em julho de 2023.
Foto: Lorena Covem
Documentário - O Canal Saúde, que acompanhou a atividade de campo no Maranhão, está preparando um documentário sobre as comunidades quilombolas de Cocalinho e Guerreiro. Uma prévia deste documentário foi apresentada na abertura do painel e as imagens da destruição do cemitério de Cocalinho pelo agronegócio impactaram os participantes.
Foto: Fiocruz Brasília
Encaminhamentos - Necessidade de ação imediata sobre as evidências apresentadas no painel, como por exemplo, a contaminação da água para consumo humano pelo uso de agrotóxicos; fortalecimento da rede de assistência, mobilizando o Cosems do Maranhão; fortalecimento da Política de Atenção Integral do Campo, Florestas e Águas. Quanto à questão interserorial, o Ministério da Integração Racial e o Ministério do Desenvolvimento Agrário deverão atuar conjuntamente para que a titulação do território quilombola de Cocalinho seja efetivada. Do ponto vista da coordenacao da pesquisa, esta iniciativa de articulação intersetorial também é desejada para ser expandida para os outros 14 casos de ecocídio no Cerrado analisados pelo TPP.