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"Cuidar da nossa mãe, a Terra, é agroecologia", diz Krenak no encerramento do Congresso Brasileiro de Agroecologia


27/11/2023

Angélica Almeida (Agenda de Saúde e Agroecologia/VPAAPS)

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Uma multiplicidade de pessoas vindas de todo o Brasil e de 20 países da América Latina, África e Europa se reuniu na última semana para dialogar sobre questões centrais para uma agenda de futuro sustentável. Combate à fome, enfrentamento das mudanças climáticas, redução das desigualdades sociais foram a espinha dorsal do 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), realizado entre os dias 20 e 23 de novembro no Rio de Janeiro.

Como componente basilar desta discussão, a saúde foi um dos temas fortes abordados em diferentes momentos do Congresso, impulsionado pelo amplo apoio que a Fiocruz empreendeu na construção do evento. Cerca de 170 trabalhadoras e trabalhadores participaram da atividade, 55 trabalhos de pessoas vinculadas à instituição foram apresentados, além da parceria na condução de diferentes ambientes da programação.

Com uma proposta ousada de reconfiguração dos tradicionais eventos científicos, o CBA privilegiou a presença de segmentos da agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais, promovendo um rico encontro de culturas em diálogos inter e transdisciplinares. A metodologia inovadora do evento, baseada na ecologia de saberes, enfocou o reconhecimento e a partilha de conhecimentos técnicos, acadêmicos e tradicionais em uma programação descentralizada e diversa, que dialogou com a cerca de 5 mil pessoas inscritas e com a população urbana em diferentes pontos do centro da cidade.

O presidente da Fiocruz, Mario Moreira, se disse “emocionado” ao presenciar a ampla participação social no Congresso em defesa de políticas públicas que afetam a vida das parcelas mais vulnerabilizadas. “Aqui pra mim é um exemplo inequívoco disso: são as pessoas que são afetadas pela  política, as pessoas que militam pela política, as pessoas que produzem conhecimento e evidência científica sobre a política, juntas, fazendo política. É uma mudança total de paradigma”, afirmou. 


Foto: Gutemberg Brito

“A Ciência não pode ser só pra publicar artigo científico”

A defesa de uma ciência crítica e cidadã, comprometida com o avanço social, orientou toda a construção do Congresso. Denise Oliveira e Silva, vice-diretora da Fiocruz Brasília, destacou a importância de as instituições científicas se empenharem ativamente na transformação do país, a fim de superar injustiças como a “herança da escravidão ideológica, social, econômica” que permanece influindo na piora de indicadores sociais como o de insegurança alimentar e nutricional para pardos, pretos e povos tradicionais.


Foto: Gutemberg Brito

A vice-diretora destacou que, diante de um modelo predatório de desenvolvimento, o desenho de políticas públicas deve considerar as assimetrias de poder, evitando visões reducionistas e julgamentos. Ao citar os desertos alimentares ao redor de pessoas e comunidades vulnerabilizadas, exemplificou como populações empobrecidas recorrem a produtos alimentícios ultraprocessados. Orgânico não pode ser encarado como “comida de rico, uma peça de classe média ou da elite”, ela defendeu,  reforçando o diálogo imprescindível do Congresso com povos de todo o Brasil, em uma postura de valorização das sabedorias e cosmovisões das populações tradicionais.

“Ou a gente se reconecta com a vida, se reconecta com este planeta, ou a gente perece com ele”, alertou Oliveira ao encerrar sua fala na mesa de discussão: “Sistemas alimentares, Agroecologia e saúde: políticas públicas para um futuro sustentável”, que contou ainda com a presença de Kelly Alves (Ministério da Saúde); de Fran Paula (FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional); de Wagner Cavalcante (CSA Brasil) sob a mediação de Adriana Adell (GT Saúde da Associação Brasileira de Agroecologia).

Saiba também como foi a mesa: “Agroecologia: sistema alimentar que promove saúde”, organizada pelo Departamento de Prevenção e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde.

Em profunda consonância com esta discussão, a conferência “Promover Saúde” foi outro ambiente que privilegiou a relação saúde e agroecologia. Nela foram abordadas, entre outros temas, as questões geopolíticas com correlação desigual de forças entre os países na exposição a danos e riscos à saúde decorrentes do uso intensivo de agrotóxicos, bem como as violações ao direito à alimentação saudável e adequada diante do padrão de consumo de dietas ultraprocessadas. 

A nutricionista, coordenadora técnica do Guia Alimentar para a População Brasileira e professora titular do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo, Patrícia Jaime, alertou que as evidências científicas são muito consistentes relacionando o padrão de consumo de produtos alimentícios ultraprocessados e desfechos de saúde, como  câncer, diabetes, inflamações intestinais, depressão, para além das externalidades relacionadas à saúde dos ecossistemas e do planeta como um todo.

Jaime também chamou atenção para o aumento preocupante do consumo de ultraprocessados entre as populações historicamente vulnerabilizadas, como as indígenas e negras, ao passo que o consumo de alimentos saudáveis vem diminuindo. Ela destacou que estes segmentos precisam ser protegidos, uma vez que são guardiões de um patrimônio gastronômico, cultural e territorial com sentidos e significados que extrapolam a saciedade da fome.


Foto: Gutemberg Brito

“Não tem como pensar saúde sem terra e território”

“As entregas de comida, cesta básica ou merenda não podem virar política pública. Política pública tem que ser entregar terra para o povo fazer floresta”. As palavras-flechas do filósofo, ambientalista e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), Ailton Krenak, caíram de forma certeira no coração e mente da multidão que ouvia atenta e aplaudia a plenária de encerramento do CBA.

Endossando o que os movimentos indígenas e negros vêm sistematicamente expressando em suas lutas sociais -de que sem garantia de terra e território, não há como pensar agroecologia-, o ativista exigiu “respeito e dignidade” para os povos, avaliando que é preciso fazer agrofloresta para todo lado com investimento público. “Difícil é deixar 40 milhões de terras sem cultivo, com capim e veneno, que deveriam ser disponibilizadas para agrofloresta. O Estado está em dívida com esses povos, indígenas e quilombolas, que dependem de campanhas de caridade contra a fome”, lamentou.


Foto: Gutemberg Brito

Em uma metáfora com um cupim que devora a madeira, ele analisou que ainda é “muito pouco o despertar das pessoas para a emergência climática” e que é preciso amplificar a agroecologia em escala planetária. “Um congresso que reúne gente de tantos lugares do país inteiro, de diferentes contextos, para finalmente debater a aplicação no cotidiano da vida das pessoas a agroecologia, é uma novidade tão absurda que chega a nos surpreender a gente ter demorado tanto para entender que nós estamos comendo a Terra”, disse.

Se é preciso cuidar da “nossa mãe, a Terra” e ir além de ações assistencialistas, também é urgente cuidar daquelas e daqueles que sofrem violações de direitos e cuja fome não pode esperar mudanças de longo prazo. Realizado em um dos cartões postais da cidade, a Lapa, o CBA se propôs a dialogar com a população em situação de rua, de modo a explicitar que a agroecologia é um projeto de sociedade que prevê a superação das desigualdades e reconhece o valor da dignidade humana. Ao longo dos dias do Congresso, foram servidas 2.500 quentinhas de alimentos saudáveis e nutritivos, cultivados por mãos camponesas de todo o estado do Rio de Janeiro, exercendo na prática o lema deste 12º CBA: “Agroecologia na Boca do Povo”.


Foto: Gutemberg Brito

 

 

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