09/02/2022
Camile Duque Estrada e Lidiane Nóbrega (Agência Fiocruz de Notícias)
O Boletim do Observatório Covid-19 Fiocruz, divulgado nesta quarta-feira (9/2), apresenta um balanço de dois anos da pandemia de Covid-19, declarada Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020 e de importância nacional pelo Ministério da Saúde em 3 de fevereiro daquele ano. A análise apresenta uma perspectiva da evolução da pandemia, dividida em fases, desde a descoberta do vírus até os dias atuais, com base nos estudos realizados pelos pesquisadores da Fiocruz, e sintetiza a dimensão das perdas, totalizando 388 milhões de casos no mundo e 26 milhões no Brasil (6,7% do total), com 5,71 milhões de óbitos no planeta e mais de 630 mil no país (11% do total).
O estudo aponta para um cenário ainda preocupante, com rápida transmissão da variante Ômicron e especulação sobre o fim da pandemia. Para os pesquisadores do Observatório Covid-19 Fiocruz, a cada fase da pandemia se apresentam novos desafios. “Se o diagnóstico e tratamento correto, adequação dos hospitais e estabelecimentos de saúde foram cruciais para a redução do impacto da doença inicialmente, a vacinação hoje é considerada prioridade para o controle da pandemia”, avaliam. No entanto, os pesquisadores ressaltam que as medidas não-farmacológicas continuam sendo importantes, uma vez que o distanciamento físico e uso de máscaras são os principais meios de redução da exposição e infecção pelo vírus.
O monitoramento da nova variante, associado ao estudo genético de suas mutações, sugere rápido crescimento de casos, por conta da sua capacidade de propagação, até 70 vezes maior que a Delta, em alguns estudos. Alguns pesquisadores defendem que se trata de uma variante menos agressiva, uma vez que a ocorrência de hospitalizações e óbitos não acompanha a curva de crescimento dos casos. Porém, não há consenso sobre o assunto, observam os pesquisadores.
Alguns países e agências de saúde já discutem ou vêm adotando a transição de pandemia para endemia. Para os pesquisadores, a mudança não representa a eliminação do vírus e da doença, nem mesmo a desobrigação de medidas de proteção individuais e coletivas. “A classificação da doença como endêmica representaria a incorporação de práticas sociais e assistenciais na rotina do cidadão e dos serviços de saúde e só poderia ser pensada após drástica redução da transmissão pelas novas variantes e por meio de campanha mundial de vacinação”, aponta o documento.
Apesar das controvérsias e incertezas ainda existentes, os pesquisadores atestam que a explosão de casos cria temporariamente imunidade ao vírus, mesmo que a duração seja curta ou temporária e este cenário pode ser encarado como uma janela de oportunidades. “Em um momento em que há muitas pessoas imunes à doença, se houver uma alta cobertura vacinal completa há a possibilidade de tanto reduzir o número de casos, internações e óbitos, como bloquear a circulação do vírus”, dizem.
O documento sugere que para que isso seja possível é essencial colocar em prática quatro estratégias de saúde pública. Garantir oportunidade de aplicação de vacina, com a disponibilidade em unidades com horário de funcionamento expandido e em postos móveis, realizar busca ativa por pessoas que ainda não iniciaram seus esquemas vacinais, massificar a campanha de incentivo à vacinação de crianças e reforçar os benefícios gerados pela correta higienização, assim como o bom uso de máscaras.
Finalmente, o Boletim aponta que o avanço da vacinação no Brasil, depois de um ano, tem ocorrido, mas não de forma homogênea e evidencia as diferentes realidades do país. Enquanto as regiões Sul e Sudeste apresentam elevado percentual da população imunizada, áreas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste ainda têm bolsões com baixa imunização para Covid-19. “Estes bolsões se constituem em locais de menor Índice de Desenvolvimento Humano, populações mais jovens, menos escolarizadas, baixa renda e residentes de cidades de pequeno porte. Para estes locais, o fim da pandemia parece mais distante que para grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo, que já apresentam elevada cobertura vacinal com duas doses”, avaliam os cientistas.
Casos e óbitos
Com óbitos que chegam a 5,71 milhões em todo o mundo, o Brasil representa 11% (mais de 630 mil mortes) desse número. Além de impactar na saúde da população e sobrecarregar os sistemas de saúde, resultou em uma combinação de efeitos sociais e econômicos que agravam as desigualdades estruturais da sociedade. De acordo com o Boletim, a pandemia não atingiu todos os grupos sociais e territórios uniformemente.
Na nova onda de transmissão que iniciou em dezembro de 2021 observa-se um acelerado aumento no número de casos, com velocidade superior às anteriores, além de uma elevação no número de óbitos, ainda que em menores proporções. “A redução da gravidade da doença, da sua mortalidade e das demandas por internação são devidas à alta cobertura da vacinação alcançada para a população adulta e idosa, bem como uma menor virulência dessa variante em relação às cepas anteriores”, indica o documento.
Indicadores de leitos de UTI para Covid-19
O quadro atual, embora preocupante, constitui um cenário muito diferente do observado entre março e junho de 2021, no momento mais crítico da pandemia no Brasil. Os pesquisadores afirmam que as diferenças dizem a respeito à parte da população brasileira estar vacinada contra a Covid-19, as características da doença produzida pela variante Ômicron e à disponibilidade de leitos de UTI, hoje significativamente menor. O documento evidencia a preocupação com o crescimento consistente das taxas de ocupação de leitos de UTI observado nas últimas semanas, bem como os indícios da interiorização dos casos frente à desigual cobertura vacinal no país.
Vacinação conta Covid-19 no Brasil
A desigualdade da vacinação no Brasil expõe problemas de base, como acesso geográfico, logística de distribuição, armazenamento, gestão de estoques e velocidade na informação. Mesmo considerando a população elegível, mais jovem e predominante, sobretudo na Região Norte, a diferença na cobertura é elevada quando comparada com as regiões Sul e Sudeste. “Em meio a pandemia, problemas que deveriam ter sido enfrentados antes, para trazer mais equidade e eficiência no processo de imunização, podem tornar populações com baixa taxa de cobertura mais vulneráveis e permitir o surgimento de novas variantes, como observado em áreas mais pobres do continente africano”, explicam no documento. Dados de outros países indicam que áreas com baixa vacinação favorecem a ocorrência de surtos localizados, com intensidade amplificada devido à movimentação das pessoas e queda no cuidado com medidas não farmacológicas.
Para os pesquisadores, a falta de ampla campanha de comunicação para sustentar os benefícios das vacinas e das medidas não farmacológicas se mostrou muito prejudicial. Mesmo com a trajetória de sucesso do PNI, manter a qualidade e o desempenho de um programa dessa natureza, em um país com as características do Brasil, não é tarefa fácil. Sendo assim, é preciso planejar e investir permanentemente de modo a promover o acesso, a equidade e a universalização dos cuidados de saúde necessários.
Fases da pandemia de Covid-19
Expansão da transmissão das capitais para as cidades menores (fevereiro a maio de 2020)
O aumento de casos de SRAG com a entrada do vírus Sars-CoV-2 no país foi observado nas primeiras semanas epidemiológicas de 2020, por meio do Infogripe, sendo mais frequentes em indivíduos acima de 60 anos. Nas primeiras semanas de março ocorreu a expansão da transmissão de capitais e grandes cidades em direção a áreas periféricas, pequenas cidades e zonas rurais, num movimento gradual de interiorização. Esse processo foi mais lento que o verificado em outros países, iniciando em fevereiro e perdurando até maio de 2020.
Nessa fase observavam-se grandes filas de espera para internação em UTI e elevada ocorrência de óbitos por falta de acesso, ou acesso tardio aos cuidados de alta complexidade, mesmo após uma expansão acentuada no número de leitos de UTI SRAG/Covid-19, incluindo a abertura de diversos hospitais de campanha no país. Entre os meses de abril e maio, em Manaus, único município do Amazonas com capacidade para oferta de cuidados hospitalares de alta complexidade, ocorreu o primeiro grave colapso do sistema de saúde no país.
Primeira onda e sincronização da transmissão no país (junho a agosto de 2020)
Na fase, a queda contínua das medidas de distanciamento físico foi seguida do crescimento gradual de casos, positividade de testes, internações e óbitos que estabilizaram em um patamar elevado. Este foi um período caracterizado especialmente por um alto patamar na mortalidade, com cerca de mil óbitos diários. No período também começou a ser observado o aumento do número de casos e de óbitos em gestantes, um forte indicativo que a Covid-19 não era apenas a causa direta da morte, mas também causa indireta, por criar empecilhos para a assistência ao ciclo gravídico-puerperal.
Período de transição entre primeira e segunda ondas (setembro a novembro de 2020)
No período houve relativa redução do número de casos e de óbitos, com governos estaduais e municipais adotando medidas isoladas de distanciamento físico e social e uso de máscaras, sem que se dessem de modo articulado nacionalmente e regionalmente. Em novembro, os casos voltaram a crescer e o maior impacto nas taxas de ocupação de leitos de UTI se concentraram nas regiões Sul e Centro-Oeste e novamente no Amazonas.
Embora com variações espaciais, com alguns estados e municípios apresentando, em determinados períodos, maior número de casos, internações, taxas de ocupação de leitos UTI e óbitos, na maior parte de 2020 a média de idade das internações em UTI esteve acima de 60 anos e a idade média dos óbitos sempre esteve acima deste patamar, impactando principalmente as pessoas com mais idade, além daquelas com comorbidades. Este fato foi decisivo para que esses grupos fossem classificados como prioritários para a aplicação da primeira dose da vacina contra Covid-19, logo que fosse aprovada.
Segunda onda (dezembro de 2020 a junho de 2021)
Uma segunda onda de transmissão iniciou no verão e coincidiu com o período de festas de fim de ano e férias, acompanhada da flexibilização das medidas de restrição à mobilidade, principalmente em dezembro de 2020. Nesse contexto ocorreu rápido crescimento e predominância da variante Gama, atingindo seu ápice em abril de 2021, com valores muito altos de casos e óbitos de março a junho, alcançando picos de até 3 mil óbitos por dia (pela média móvel). Esta fase foi marcada pelo colapso do sistema de saúde e pela ocorrência de crises sanitárias localizadas, combinando deficiência de equipamentos, de insumos para UTI e esgotamento da força de trabalho da saúde.
Em 17 de janeiro de 2021 se iniciou a campanha de vacinação contra a Covid-19 no Brasil, porém com um pequeno número de doses (6,2 milhões), chegando a março com volume de doses suficientes para acelerar o processo de vacinação (27,5 milhões). O avanço, contudo, não impediu o rápido crescimento e grande número de casos, internações e óbitos, bem como a crise e o colapso do sistema de saúde, entre março e junho de 2020.
Os impactos positivos da campanha da vacinação (julho a novembro de 2021)
Foi um período de redução do número de casos, casos graves e mortalidade. Nesse período, ao mesmo tempo em que a variante Delta crescia e se tornava predominante, pôde-se verificar a efetividade da vacinação na redução da transmissão e, especialmente, da gravidade dos casos de Covid-19, resultando na queda das taxas de ocupação de leitos de UTI Covid-19 para adultos. A queda da taxa de positividade de testes também apontou a menor transmissão do vírus Sars-CoV-2, como efeito da vacinação, que alcançava 20% da população com duas doses. Em setembro, com 40% da população elegível vacinada, o Brasil alcançou uma média diária de 500 óbitos. E em novembro, já com 60% da população vacinada, a média de óbitos diários estava em torno de 250.
Terceira onda (dezembro de 2021 a janeiro de 2022)
Uma nova onda de transmissão foi iniciada em dezembro de 2021, coincidindo com o período de festas, férias, relaxamento de medidas de restrição à mobilidade e a introdução no país da variante Ômicron. Essa fase também foi marcada por uma epidemia de vírus influenza A em vários municípios, o que levou ao aumento de casos de SRAG, assim como várias semanas de interrupção na recepção de dados da vigilância, comprometendo o monitoramento e análise da evolução da pandemia.
Segundo os pesquisadores do Observatório Covid-19 Fiocruz o Brasil ainda se encontra nesta fase e há forte especulação sobre que momento da pandemia o país vive e se está caminhando para o fim. “Em que pese o fato de a vacinação ter impedido que as internações e óbitos subam em igual velocidade aos casos, o aumento súbito de doentes faz crescer, inevitavelmente, a demanda por serviços de saúde, com impactos nas taxas de ocupação de leitos de UTI”, apontam.
O cenário indica ocorrência de internações maior entre idosos, quando comparadas aos adultos. No entanto, as internações entre crianças crescem em níveis preocupantes. Por se tratar do último grupo em que a vacinação foi iniciada, já em 2022, as crianças representam hoje o grupo com maior vulnerabilidade.
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