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Coordenador explica como é feito o levantamento nacional sobre uso de drogas

24/06/2015

Por Graça Portela (Icict/Fiocruz)

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Com o objetivo de estimar e avaliar os parâmetros epidemiológicos do uso de drogas na população brasileira, entre 12 e 65 anos, de ambos os sexos, e residentes em todo o território nacional, aí inclusas as áreas rurais e de fronteiras, está sendo realizado em todo o País o 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira.

O inquérito domiciliar é realizado pela Fiocruz e tem como seu coordenador o pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), Francisco Inácio Bastos. Nesta entrevista, ele fala sobre o 3º Levantamento, sua magnitude, a necessidade de levantamentos regulares e a importância de se abordar a questão das drogas pela ótica da saúde.

Por que fazer um levantamento nacional sobre o uso de drogas?

As pesquisas domiciliares são feitas regularmente no mundo inteiro. Elas são necessárias para que se tenha uma base empírica para documentar se, por exemplo, está caindo ou aumentando o consumo de drogas, em um determinado período de tempo, local ou segmento da população.

O Brasil conseguiu uma vitória ao ter levantamentos regulares sobre drogas na área escolar, mas esta é apenas uma fração da população, absolutamente essencial, mas bastante distinta do conjunto da população brasileira, hoje superior a 200 milhões de pessoas. Temos ainda uma repetência e evasão escolares elevadas, de forma que isso embaralha um pouco a extrapolação dos dados para a população de referência (de escolares e universitários para, respectivamente, crianças e adolescentes, e adolescentes e adultos jovens), porque há pessoas que não estão nas escolas, adultos não universitários, pessoas que já completaram a sua educação, e pessoas que nunca tiveram uma inserção regular nas escolas e que podem estar fazendo uso de drogas e não estarem incluídas nas pesquisas escolares e universitárias. Em relação à fração da população que é universitária, isso é essencial, pois ela corresponde a cerca de 10% da população de referência, e existem fortes heterogeneidades de estrato e classe, entre outras, em termos de acesso à universidade.  

Uma das características deste Levantamento é estender-se as áreas rurais e de fronteiras. Por quê?

Nos levantamentos anteriores, em parceria com o Ministério da Justiça, foram consideradas as cidades de maior porte, as regiões mais industrializadas, de maneira que acabamos por perder uma parte importante do Brasil, pois embora o país seja 85% urbano, 15% em 200 milhões, são 30 milhões de pessoas vivendo em áreas rurais. Então, temos que enxergar esse outro Brasil. E, depois, as cidades de grande porte não são semelhantes às cidades de médio e pequeno porte, cujas características são, frequentemente, desconhecidas, e isso num universo imenso, de quase 5.500 municípios que poderiam ser denominados pequenos e médios (obviamente, na dependência do que definiria um município como grande).

E, finalmente, um equívoco muito grande é ver a área de fronteira apenas como uma região de passagem. Ela não é só isso, lá existem cidadãos brasileiros e dos países vizinhos, que lá residem, trabalham e educam seus filhos. Nas discussões com a área de segurança pública, as pessoas dizem “ah, as fronteiras são porosas...”. Sim, são, mas como as drogas, que as atravessam, afetam a vida das pessoas que estão lá? As cidades de fronteiras não são um mero caminho de trânsito. Não é possível enxergar uma das maiores fronteiras terrestres do mundo exclusivamente sobre o ponto de vista de segurança das grandes metrópoles, que seriam o destino de parte dessas mercadorias, sejam elas lícitas (como a produção agroindustrial) ou ilícitas (como algumas drogas e armas).

Por que – na questão das drogas – enfocar a saúde?

O foco em saúde permite avaliar a diversidade do uso, que pode variar desde o uso experimental, circunstancial, ou, numa etapa subsequente, habitual até quadros de abuso e dependência. Eu sempre ouço dos juristas uma coisa que concordo: o bem tutelado em última instância pela Justiça é a vida das pessoas, dos cidadãos. Se se quer garantir que as pessoas tenham uma vida digna, sem levar em conta a dimensão da saúde, é impossível, seria uma proposta completamente sem sentido.

Em geral, a questão da droga é olhada pelo ângulo da repressão do uso, forçando uma redução da oferta. É possível uma abordagem diferente sobre o assunto?

Na primeira metade do século XX, foram publicados relatórios importantes com visões mais equilibradas, como o Relatório Rolleston, publicado na década de 1930, no Reino Unido. Infelizmente, a partir da segunda metade do século XX, perdemos o equilíbrio e a complementariedade entre os vários atores que debatiam essa questão e, especialmente, a partir do governo Nixon (nos Estados Unidos), a questão foi impulsionada sob a égide da guerra às drogas, com um foco quase que exclusivo na redução da oferta, privilegiando ações de repressão. O que verificamos ao longo de quase 50 anos dessa vertente é que ela não se mostrou bem-sucedida, pois se persiste a demanda, alternativas de oferta acabam por se reconfigurar.

Não acredito, como muitos dos analistas atuais, que se resolva o problema das drogas dessa forma, porque ao reduzir a oferta de determinado produto, temos o surgimento de outro ou outros, alguns deles sintéticos ou semi-sintéticos. Por exemplo, a pressão sobre a maconha in natura, acabou levando à síntese de canabinóides artificiais, alguns extremamente potentes, com relação tênue (ou menos nenhuma) com a planta propriamente dita; a pressão sobre a cocaína acabou levando à produção e a expansão de anfetamínicos sintéticos, que também são substâncias estimulantes, mas que não dependem da matéria prima de origem vegetal (no caso, os alcaloides da coca).

Mas, existe uma demanda...

Até em benefício das próprias ações de segurança pública, é necessário lidar com a demanda e só há dois caminhos para isso: a saúde e a educação. Sem elas, não há condições de resolver minimamente a questão das drogas em nenhuma sociedade. Em segundo lugar, o modelo baseado na compressão da oferta vem se mostrando falho, e isso no mundo inteiro. Não existe propriamente uma compressão da oferta, apenas um deslocamento, não necessariamente benéfico (por exemplo, a pressão sobre o refino da cocaína em pó, favoreceu e favorece a disseminação do crack, de feitura mais simples, e mesmo doméstica).

A ideia de se reformular as políticas de drogas em todo o mundo – e não só no caso das substâncias ilícitas, mas no das lícitas (como álcool, tabaco e psicofármacos) também – só teve resultados positivos quando se uniu a saúde e a educação. Talvez o melhor exemplo disso nem seja no âmbito das drogas ilícitas, que sempre terão um mercado paralelo, que não controlamos, mas sim o grande sucesso do controle do tabaco. Este consiste basicamente nisso – saúde e educação: mostrar os malefícios associados ao tabaco, investir na prevenção, mudar a marco legal, proibir a propaganda, foi assim que a coisa funcionou. O sucesso da parceria saúde-educação é inegável.

No segundo ciclo da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), recentemente lançado, um dos números que chamam a atenção é a questão da discriminação (de todos os tipos) dos usuários do SUS – cerca de 10,6% ou 15,5 milhões de brasileiros. O senhor acha que com o 3º Levantamento vendo o Brasil por outros ângulos, isso possa trazer – talvez – uma melhora nesse atendimento?

Eu acho que se enxergarmos a questão nas suas duas formas complementares, uma a vertente da PNS, que é de caráter genérico e abrange a saúde como um todo, com a que fizemos – Pesquisa Nacional Sobre o Uso de Crack – cujo foco foi o crack, constatamos, inicialmente: que se é algo que surge no âmbito da PNS é porque diz respeito à população em geral. Dez por cento da população em geral, que é de 200 milhões de pessoas é um problema de extensão muito grande: 20 milhões de pessoas correspondem à população de diversos países, por exemplo, ao dobro da população de Portugal!

Na pesquisa sobre o crack ficou totalmente evidente a discriminação sofrida pelo usuário de crack e isso tem consequências muito negativas sobre o atendimento, a continuidade do cuidado e a adesão ao tratamento.

Penso que talvez o 3º Levantamento vá trilhar um caminho do meio. Com uma pesquisa domiciliar sobre o consumo de um amplo conjunto de substâncias, poderemos fazer a ponte entre esse dado da PNS, que é genérico, que se refere às pessoas de uma forma geral, e os dados da pesquisa sobre o crack, que são bastante específicos.

Em que ponto essa discriminação impactaria o atendimento/tratamento?

Infelizmente, a marginalização e a estigmatização podem ser sim devidas a categorias superpostas (gênero, raça, classe social e etc.). É extremamente importante que tentemos entender como elas se superpõem, porque pode ser que tenhamos uma fração da população que é discriminada em função de várias características. Tudo leva a crer que essas pessoas terão um acesso dificílimo aos serviços de saúde, e não só no contexto do SUS, mas aos serviços de saúde (e demais serviços assistenciais) como um todo.

No 3º Levantamento, a população é indagada sobre seus padrões de uso quanto a todas as substâncias psicoativas mais relevantes. Será que vai aparecer alguma discriminação ligada ao álcool ou a cocaína em pó? Eu acredito que sim, porque vejo isso em meu dia a dia quando atendo; vejo que o paciente chega muito magoado, e muitas vezes em final de linha, porque poderia ter sido tratado em um posto de saúde e acaba aparecendo numa emergência, porque não recebeu os cuidados no momento apropriado.

O 3º Levantamento já está nas ruas?

Estamos em campo e quanto mais divulgação sensata e não sensacionalista houver sobre os propósitos e os procedimentos da pesquisa, mais ajuda, porque – infelizmente, em várias áreas do Brasil, temos hoje em dia uma insegurança das famílias em relação a qualquer tipo de abordagem. E isto está aparecendo em São Paulo (e vem sendo documentado por vários meios de comunicação): os agentes de saúde de combate à dengue tiveram que se associar com o Exército, porque as pessoas não estavam deixando eles entrarem em suas casas.

Gostaríamos que as pessoas entendessem que é a partir de dados fidedignos que temos a chance de fazer políticas públicas baseadas em evidências, em benefício de toda a população. Da nossa parte, queremos que o 3º Levantamento aconteça da melhor forma possível. Estamos orientando as equipes de entrevistadores para que eles não criem situações constrangedoras ou de desconforto, porque afinal as pessoas estão recebendo o entrevistador na casa delas. E, por outro lado, gostaríamos que as pessoas se sintam seguras e motivadas a participar. É importante que essa relação de confiança possa ser estabelecida e que a pesquisa possa cumprir os seus objetivos. 

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