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Memórias de um sanitarista na 8ª Conferência Nacional de Saúde

Foto de Ary de Carvalho Miranda, sanitarista

05/10/2016

Por: Marcelo Garcia - Portal Fiocruz

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Meados da década de 1980, o Brasil começa a respirar ares mais democráticos com o processo de abertura que levou ao fim da ditadura militar. Uma proposta de reforma profunda do Estado ganha espaço e mobiliza diversos setores da sociedade: o movimento da Reforma Sanitária, que propõe modelo de sistema de saúde baseado numa visão nova, ampliada e integral dessa área tão fundamental da vida.

Sergio Arouca, recém empossado presidente da Fundação Oswaldo Cruz, é uma das figuras-chave desse movimento, que consegue mobilizar o setor para a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde (ou, simplesmente, “A Oitava”) – a primeira a contemplar a participação popular democrática.

Entre as diversas figuras que estiveram ao seu lado nesse momento estava Ary Carvalho de Miranda, chefe de gabinete de Arouca durante seu período na presidência da Fiocruz e membro do comitê assessor da comissão organizadora da Oitava.

Trinta anos após a conferência, o sanitarista e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), concede entrevista ao Portal Fiocruz e relembra os dias de muito trabalho e de intenso debate daquele período. Longe de tomar para os sanitaristas o protagonismo da conferência, Miranda reforça que a realização da Oitava e o estabelecimento dos pilares para a criação do Sistema Único de Saúde, dois anos depois, foram conquistas protagonizadas pela sociedade brasileira. Em meio ao atual cenário político conturbado, ele demonstra sua preocupação com as ameaças que se configuram hoje contra os direitos sociais conquistados nas últimas décadas.

Na segunda parte da entrevista, ele conta como foi o dia a dia da Oitava.

Portal Fiocruz: A década de 1980 é marcada pelo processo de redemocratização. De que forma, na sua opinião, a 8ª CNS se insere nesse contexto?

Ary Miranda: Alguns fatos que antecedem a conferência, como a promulgação da Lei da Anistia, a greve do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, as primeiras eleições diretas para governador e a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), são importantes. Eles mostram que era um contexto de grande participação política e debate na sociedade. A realização da Oitava, fundamental para o desenho de direitos básicos assegurados na Constituição de 1988, só podia acontecer naquele contexto. O grupo da Reforma Sanitária conseguiu colocar na agenda de discussão da sociedade uma nova visão sobre saúde e colocar a saúde como direito de todos e dever do Estado, superando o modelo anterior, no qual o direito de acesso aos serviços de saúde não era garantido a todos os brasileiros, mas definido por políticas públicas do Estado, segundo suas escolhas e opções.

Sergio Arouca foi presidente da Oitava e uma das figuras de maior destaque da Reforma Sanitária. Sua nomeação para a presidência da Fiocruz poucos meses antes, em 1985, foi um passo importante desse processo?

Houve uma grande mobilização para levar o Arouca à presidência da Fiocruz. Na época, nosso estatuto ainda não contemplava eleições, o presidente da Fiocruz era nomeado pelo Presidente da República e não tinha mandato. Arouca foi nomeado a partir de uma grande pressão interna – e não só interna, mas nacional, a mesma que levou outros militantes da Reforma Sanitária a outras posições estratégicas, como o Hésio Cordeiro à presidência do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). Nesse processo, se discutiu a realização de uma conferência de saúde que rompesse com o padrão das anteriores, que se caracterizavam por encontros técnicos voltados para a burocracia do Estado – algo que só poderia ser construído a partir de uma grande mobilização social.

Por que Arouca ganhou destaque nesse contexto? Como era sua relação com ele?

Ele já era professor da Escola Nacional de Saúde Pública [que hoje leva seu nome] e um pesquisador proeminente, sua tese de doutorado foi um marco para o campo da saúde coletiva. Além disso, ele tinha uma militância política muito importante. Ou seja, conjugava compromisso e ação política, com ideais socialistas, com uma grande capacidade científica. Nós dois éramos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, quando ele me convidou para ser chefe de gabinete nossa relação pessoal se estreitou, dada nossa convivência cotidiana no trabalho, num momento de enormes desafios. Em 1989, ao sair da presidência da Fiocruz, ele saiu candidato à Vice-Presidência da República, na chapa do Roberto Freire, quando Roberto Freire ainda era progressista. Trabalhamos nessa campanha e, depois, em 1990, coordenei a campanha dele para deputado federal. Ele se elegeu com uma votação expressiva, se reelegeu em 1994, mas sempre dizia que era mais feliz como sanitarista da Fiocruz. Todo esse processo nos aproximou e nos tornamos muito amigos. Arouca era uma pessoa querida, carismática, afetiva e ao mesmo tempo com grande capacidade de formulação política e muito firme em suas convicções. Essas qualidades fertilizavam sua capacidade de liderança.

Como foi o processo de mobilização da participação popular na 8ª CNS?

A conferência chegou à população através dos movimentos sociais que participavam da luta contra a ditadura e pela constituição de uma sociedade mais democrática. À época, a Cristina Tavares, que trabalhava na comunicação social da VIII, articulou a divulgação da Conferência numa novela da TV Globo. Nesta novela um dos personagens fazia a conclamação da população a participar da VIII. Foi importante este momento, pois divulgou bastante e ajudou nossa articulação com as organizações da sociedade civil. A participação foi composta por 50% de representantes do Estado, entre ministérios, secretarias estaduais e municipais, e 50% de representantes da sociedade civil, escolhidos como delegados. Só que como o nível de representação era elevado, mesmo com delegados já eleitos, milhares de outras pessoas chegaram à Brasília querendo participar da Conferência. Foram cinco mil participantes. Todos participaram dos 98 grupos de trabalho, assim como da plenária final, que decidia com os votos dos delegados.

O processo de preparação da conferência levou o debate ao Brasil todo?

Todos nós envolvidos na organização nos distribuímos na articulação nacional, para fazer contato com as secretarias estaduais e municípios, com diversas entidades, para estimular e alimentar o debate. Não existia uma proposta fechada para ser discutida. Os elementos centrais estavam colocados, mas seu detalhamento foi elaborado nesse turbilhão de debates. Eu participei em reuniões com diversos sindicatos, do Nordeste ao Sul do Brasil, participei de várias conferências estaduais. Me reuni dentro de um convento no Maranhão com uma quantidade grande de sindicatos rurais, foram três dias de discussões. Assim como eu, todos os que estavam envolvidos na organização tiveram experiências desse tipo. Isso era algo impensável nos anos 1970, por exemplo. Também estivemos no interior do Paraná e de São Paulo e participamos em Conferências preparatórias à Oitava em todo o país. Houve um vigor muito grande nas discussões, tanto nas cidades como nas áreas rurais.

A participação foi composta por 50% de representantes do Estado, entre ministérios, secretarias estaduais e municipais, e 50% de representantes da sociedade civil, escolhidos como delegados - Ary Miranda, sanitarista

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