01/06/2015
Por Carlos Tautz / Portal Fiocruz
Na semana em que se celebra o Dia Mundial do Meio ambiente (5 de junho), é importante destacar algumas questões sobre a agricultura brasileira, presentes no dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), intitulado Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde e lançado em 28 de abril de 2015. Uma delas é a constatação de que o Brasil mantém, desde 2010, a posição de maior consumidor mundial de agrotóxicos, após décadas de crescimento continuado e aceleração nos últimos 15 anos. Outra é a percepção de que os transgênicos, liberados no país, incentivam o aumento do consumo de venenos agrícolas.
Alguns números sugerem a correlação entre commodities agrícolas geneticamente modificadas e agrotóxicos. Afinal, a extensão das áreas plantadas com sementes transgênicas no Brasil cresceu ao passo do aumento da consumo de defensivos agrícolas. O fato é que até 2003 não havia registro oficial sobre a produção transgênica nos 62,3 milhões de hectares cultivados no País; hoje, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os transgênicos alcançam 54% dos 74 milhões de hectares cultivados. O consumo de todo tipo de veneno na agricultura brasileira aumentou 288% entre 2000 e 2012.
Então, quanto da explosão do consumo de agrotóxicos no Brasil se deve à introdução dos transgênicos nas lavouras?
“Não se pode fazer essa correlação”, afirma a bióloga Adriana Brondani, diretora-executiva do Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB), uma associação civil privada sem fins lucrativos que visa divulgar informações técnico-científicas sobre a biotecnologia. Segundo ela, é errado atribuir qualquer relação entre os dois crescimentos. “Transgênicos são específicos. Resistem a determinado agroquímico. São plantas tolerantes a herbicidas, por exemplo. Então, não se pode atribuir ao cultivo dessas plantas o aumento no consumo de inseticida”, explica. Entre os associados do CIB estão grandes multinacionais produtoras de agrotóxicos e transgênicos, como a Monsanto, a Basf e a Bayer.
Os autores do dossiê Abrasco, entretanto, não concordam com Adriana. O caso da introdução, no Brasil, da Roundup Ready (RR), semente de soja transgênica produzida pela Monsanto, ilustra a visão dos autores do dossiê. “A liberação do sistema “Roundup Ready” no Brasil fez com que fosse necessário que a Anvisa aumentasse em 50 vezes o nível de resíduo de glifosato permitido no grão colhido”, informa o documento. A semente Roundup Ready (RR) é resistente ao Roundup, agrotóxico à base de glifosato, igualmente produzido pela multinacional americana. O estudo afirma que a aplicação do produto acelera o desenvolvimento de plantas resistentes ao glifosato, que por sua vez demanda o consumo de produtos mais tóxicos para seu controle, alguns deles banidos em outras partes do mundo", continua o dossiê
Uso de agrotóxicos pode ser ainda maior
Embora já seja considerado alto, o uso de agrotóxicos na agricultura em geral - transgênica ou não - pode ser ainda maior do que revelam os registros. Em entrevista ao site do Instituto Humanitas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS), a biomédica Karen Friedrich, uma das organizadoras do Dossiê Abrasco e pesquisadora do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) da Fiocruz, disse que “pelo menos 70% dos alimentos que foram analisados tinham agrotóxico, sendo 30% a 35% deles em níveis considerados irregulares. Ressaltamos que o glifosato — que é o agrotóxico mais usado no Brasil — não foi analisado pela Anvisa. Então, temos a expectativa de que a contaminação seja muito maior”.
Segundo Adriana Brondoni, 93% da safra brasileira de soja, uma das culturas que mais consomem agrotóxicos, é transgênica. O índice, portanto, pode ser considerado revelador da relação entre o crescimento das lavouras transgênicas e a do consumo dos venenos. Para o representante da Campanha Permanente contra Agrotóxicos e Pela Vida Alan Tygel, é impossível negar essa relação. “Considerando que mais da metade dos agrotóxicos usados no Brasil vão para a soja, a afirmação de que a contribuição dos transgênicos no consumo de agrotóxicos é algo menor está, no mínimo, subjugando a nossa inteligência”, diz Tygel, que é engenheiro e membro da coordenação da Campanha, integrada movimentos sociais e institutos de pesquisas científicas.
Além de afirmar que existe relação entre o aumento da área plantada com trangênicos e o consumo de agrotóxicos, o documento da Abrasco também informa outros números que mostram o impacto do consumo de agrotóxicos para a saúde pública. O dossiê afirma que 64% dos alimentos estão contaminados pelos venenos, de acordo com números de 2013 levantados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O DataSUS, do Ministério da Saúde, registra 34.147 notificações de intoxicação por agrotóxico entre 2007 e 2014.
É possível um outro modelo de agricultura
Uma inovação do dossiê da Abrasco sobre agrotóxico é a proposição de políticas públicas para superar os malefícios causados pela verdadeira cultura dos venenos agrícolas. Entre as sugestões das várias instituições que colaboraram para o documento, está a mudança para um modelo agrícola sem agrotóxicos nem transgênicos.
“Essa possibilidade deve ser vista na perspectiva de um conjunto amplo de mudanças. Em primeiro lugar, não podemos seguir com o modelo dos grandes latifúndios de monoculturas, com destaque para as commodities para exportação. Precisamos de um amplo processo de reforma agrária, que possibilite às famílias agricultoras produzir alimentos em escala compatível com a lógica dos sistemas de base agroecológica”, projeta a engenheira agrônoma Flávia Londres, secretária-executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), uma frente de organizações populares que contribuiu para a produção do dossiê.
“Precisamos de assistência técnica e extensão rural de qualidade e fundamentada nos princípios da agroecologia, com os cursos de nível técnico e superior de ciências agrárias aprofundando a pesquisa agropecuária”. Segundo Flávia Londres, também é necessário criar uma política de abastecimento e investir na construção e consolidação dos mercados locais e circuitos mais “curtos” de comercialização, sem a necessidade do transporte de mercadorias entre diferentes regiões.
“O sistema de crédito para a agricultura precisa deixar de induzir os agricultores a adotarem o pacote tecnológico que inclui sementes transgênicas, adubos químicos e agrotóxicos e, ao invés disso, favorecer a transição agroecológica”, Flávia também defende o fim da isenção fiscal para os agrotóxicos e a implementação do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, já aprovado pela Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. “Já existe um conjunto de iniciativas nos campos do registro, controle, monitoramento e responsabilização da cadeia produtiva”, completa a agrônoma.
Mesmo com essas políticas sistematizadas, o setor de agrotóxicos continua crescendo. As estatísticas do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindveg) informam que o setor cresceu, em 2014, 6,9% em relação ao ano anterior e movimentou cerca de US$ 12 bilhões. Nesse período, a área plantada com soja cresceu de 51% para 55,5% do total cultivado no Brasil.
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