29/10/2013
Por: Daniela Lessa/ Portal Fiocruz
Melhoria no financiamento, regionalização e formação dos profissionais de saúde voltada para as necessidades da população são algumas das ações que aproximariam a realidade prática do Sistema Único de Saúde (SUS) do ideal formulado a partir da Constituição de 1988. A conclusão é da pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Luciana Dias de Lima, que participou do bate-papo entre autores e jovens do ensino médio organizado pela Editora Fiocruz durante as comemorações da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia 2013.
Em meio à exposição do Museu da Vida sobre os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS), Luciana explicou aos jovens a importância de se ter uma política de saúde com foco na universalidade. A pesquisadora, que é médica sanitarista com mestrado e doutorado em saúde coletiva e uma das organizadoras do livro Políticas de Saúde no Brasil: continuidades e mudanças, também concedeu entrevista ao Portal Fiocruz, comentando o tema.
As políticas de saúde do Brasil, definidas a partir da Constituição de 1988, têm sido respeitadas?
Luciana Dias de Lima: A definição da saúde como direito universal de cidadania na Constituição de 1988 influenciou a atuação do Estado e a produção de políticas no Brasil nos anos 1990 e 2000. Essa foi uma conquista significativa da sociedade que condicionou o desenvolvimento de ações concretas, ainda que o contexto político e econômico pós-88 não tenha sido favorável à universalização das políticas sociais. O Programa de Saúde da Família, por exemplo, se expandiu com grande capilaridade no território brasileiro, o que permitiu a ampliação do acesso da população antes desprovida de cuidados individuais de saúde. Entretanto, esse mesmo programa sofreu uma série de restrições devido à falta de recursos adequados, e à ação dúbia dos governos, que financiam e favorecem a expansão do setor público e privado de modo concorrencial no Brasil.
Como é essa ação dúbia? Como ocorre esse duplo financiamento do público e do privado no Brasil?
LL: Estimativas demonstram que o gasto per capita das três esferas de governo com o SUS apresentou um crescimento real de cerca de 89% no período de 2000 a 2010. Um fator positivo nesse sentido foi a aprovação da Emenda Constitucional 29 em 2000, que assegurou a participação das três instâncias governamentais [federal, estadual e municipal] no financiamento das ações e serviços públicos de saúde, a partir de um aporte mínimo de recursos. Isso garantiu maior estabilidade no financiamento, situação que não existia até o final da década de 1990. Mesmo reconhecendo os avanços, os recursos ainda permanecem insuficientes para suprir as necessidades de gasto no SUS. Ao consolidar todas as fontes de financiamento da atenção à saúde no Brasil, as privadas superam as públicas. Isso se deve ao aporte indireto do setor público, por meio da renúncia fiscal que beneficia indivíduos e empresas, e pelo aporte direto de recursos do Tesouro aos planos de saúde de servidores e à própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). As isenções fiscais tornam os planos mais baratos e atrativos para os empregados formais. Há também as deduções fiscais permitidas às organizações filantrópicas, principalmente as Santas Casas, que, muitas vezes, comercializam planos próprios de saúde e se integram à rede suplementar. Por tudo isso, temos uma atuação do Estado que favorece a expansão e fortalecimento do setor privado, que compete com o SUS por recursos financeiros, mão de obra qualificada e clientela mais favorecida economicamente.
Como são orientadas as políticas de saúde em países que têm sistemas como foco na universalidade?
LL: Nesses países o gasto privado não atinge 30% do total, sendo que há restrições à participação dos planos privados de saúde. Na Inglaterra, por exemplo, o seguro privado pode comercializar alguns serviços não cobertos pelo sistema público estatutário, e que não são considerados fundamentais para a saúde. O atendimento relativo à maior parte das enfermidades é provido de forma universal, integral e gratuita pelo Serviço Nacional de Saúde. No Canadá, país federativo, o sistema é diferente da Inglaterra, pois é regido por princípios nacionais e ofertado de modo regionalizado pelas províncias. As provinciais apresentam algumas diferenciações no que tange à cobertura do sistema público de saúde, sendo que existem planos adicionais para suprir alguns serviços odontológicos, medicamentos e fisioterapia. Paralelamente às restrições ao segmento privado que atua na maior parte das vezes de modo complementar, esses países aportam maior volume de recursos financeiros e oferecem condições atrativas para os profissionais nos serviços públicos de saúde, de forma a mantê-los nesse sistema.
Comparando o ideal da Constituição de 88, a realidade de hoje e as perspectivas de futuro para o SUS, o que fazer para que a prática se aproxime mais da política da saúde desejada?
LL: Uma questão fundamental é a ampliação do financiamento público para o setor. É preciso garantir mais recursos para que o sistema possa dar conta das necessidades plenas dos cidadãos. Atualmente, está em tramitação no Senado Federal a proposta Saúde+10, que visa destinar 10% da receita bruta da União para a saúde. A aprovação dessa medida é essencial para tornar o SUS hegemônico em nosso país. Outra medida essencial diz respeito à formação de profissionais adequados ao sistema público de saúde. É necessária uma reforma curricular nas graduações em saúde que aumente o compromisso dos profissionais com o SUS. O sistema público precisa de profissionais que possam dar resposta às demandas da população, que atuem preferencialmente na atenção primária, com um olhar mais abrangente sobre os determinantes dos processos saúde e doença. No entanto, o que tem ocorrido é uma valorização das especialidades, em detrimento das formações clínicas. Por último, é importante regionalizar a atenção à saúde, de modo a permitir melhor adequação da oferta à diversidade territorial do país e a superação das desigualdades regionais injustas. Para isso é preciso desenvolver compromissos e ações articuladas entre os governos no plano regional.
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