19/06/2012
Fonte: Editora Fiocruz
Em meados da década de 1940, a psiquiatra Nise da Silveira organizou ateliês de pintura e modelagem com os pacientes do Centro Psiquiátrico Pedro II, no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. A produção desses ateliês – que hoje compõe o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente – chamou a atenção de cientistas e intelectuais da época. O interesse suscitado pelas obras não se restringia à sua utilidade no tratamento psiquiátrico: elas também exemplificavam um novo conceito de qualidade estética e, ainda, assumiam papel central num debate político mais amplo, sobre o lugar do louco e da loucura na sociedade. É com esse pano de fundo que se desenrolam as análises do livro O Antídoto do Mal: crítica de arte e loucura na modernidade brasileira, de Gustavo Henrique Dionisio, lançamento da Editora Fiocruz e mais novo título da Coleção Loucura & Civilização.
O autor – psicanalista, mestre e doutor em psicologia social – estudou as relações entre o crítico de arte Mário Pedrosa e a psiquiatra Nise da Silveira. “Afeto e forma serão noções fundamentais tanto em Pedrosa quanto para Nise, seja no nível expressivo da forma e de suas poéticas correlatas, seja por meio da revisão do paradigma psiquiátrico proposto pela doutora, discussão que abriria caminhos para a criatividade via ‘emoção de lidar’ com a matéria e com os materiais”, ressalta Dionisio, que é professor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Assis.
Mário Pedrosa buscava transcender a crítica de arte convencional, estabelecendo um diálogo entre objetividade e subjetividade, opondo ao formalismo rigoroso uma arte contemporânea nascente, em contato direto com o espectador, no nível das sensações ou emoções. Nessa nova concepção de arte, encaixavam-se as criações espontâneas de não profissionais, como os pacientes de Nise da Silveira, distantes das convenções acadêmicas, mas próximos dos aspectos humanos do fenômeno artístico. “Eram os artistas que, por não dialogarem com a cultura ou com a história da arte, surgiam naquele momento como um remédio contra a sensibilidade endurecida”, define Dionisio.
Terapêutica da loucura
Nos ateliês de Nise da Silveira, as pinturas e esculturas feitas pelos loucos eram “criações de si”, tentativas de “reconstruir uma realidade psíquica habitável” e, desse modo, elas desempenhavam um papel importante na terapêutica da loucura, contrapondo-se à violência comumente empregada no tratamento de pacientes asilados em manicômios. Mas essa “arte virgem”, segundo o referencial de Mário Pedrosa, ao mesmo tempo em que fornecia combustível para as discussões da reforma psiquiátrica brasileira, causava rebuliço no meio artístico oficial.
“A relação entre Mário Pedrosa e Nise da Silveira é abordada no livro e nos auxilia a compreender muitos dos aspectos que passaram a compor o diálogo entre os campos da arte e da reforma psiquiátrica”, resume o professor Paulo Amarante, do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), editor responsável pela Coleção Loucura & Civilização. “É um tema em aberto, ou permanentemente em aberto, para o qual Gustavo Henrique Dionisio vem contribuir com este estudo, introduzindo novas e importantes inquietações”, avalia Amarante.
O Antídoto do Mal se divide em três capítulos. No primeiro, o autor traça um panorama do modernismo brasileiro, momento de intenso questionamento político-estético que favoreceu o debate sobre a “arte de loucos”. Já o segundo capítulo aborda as influências teóricas contidas na noção de “arte virgem”. E, por fim, o terceiro traz uma análise comparativa entre as categorias de “arte virgem”, de Mário Pedrosa, e “arte bruta”, do intelectual francês Jean Dubuffet, salientando as especificidades da experiência brasileira. “O conjunto da chamada ‘arte informal’ é um fenômeno complexo, pluridimensional. E, no entanto, há um denominador comum a todos os artistas que se engajaram nessa corrente poética: a vontade de romper com uma tendência que lhes parecia opressora, autoritária, esterilizante”, sintetiza o psicanalista João Frayze-Pereira, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), que assina o prefácio do livro.
Dionisio se detém a uma problemática histórica, estudando um período marcado tanto pela ebulição da “arte informal” quanto pelo questionamento das práticas psiquiátricas, de onde resultou o reconhecimento da “arte de loucos”. A partir daí arte e loucura combinaram-se de tal forma que, hoje, quase ninguém duvida do potencial dessa união. “No momento atual, por exemplo, ninguém teria coragem de dizer que Arthur Bispo do Rosário [interno da Colônia Juliano Moreira e falecido em 1989] não é um verdadeiro artista, talvez um dos mais importantes que já tivemos no Brasil”, afirma o autor. “Este é um livro para artistas e críticos de arte e para profissionais que lidam com a loucura e a arte”, recomenda Amarante.
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