16/11/2022
Luana Dandara (Portal Fiocruz)
Os surtos de meningite meningocócica C registrados em 2022, na cidade de São Paulo, trazem à memória um episódio que marcou a história do Brasil: a maior epidemia de meningite do país, registrada na década de 1970. Segundo Carlos Fidélis, historiador e pesquisador do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), os primeiros casos da doença começaram entre 1970 e 1971, em Santo Amaro, região carente da Zona Sul paulista. O pesquisador conta que, na época, a ditadura militar censurava qualquer informação que pudesse comprometer a reputação do governo: ou seja, problemas na saúde pública como esse, não podiam ser tratados na imprensa. Isso facilitou a propagação da infecção, transmitida através de secreções respiratórias, ganhando proporções epidêmicas meses depois.
“Como os dados estavam sob censura, a população e nem mesmo o corpo médico sabia sobre os primeiros surtos, o que facilitou o avanço e a contaminação pela doença meningocócica dos sorotipos C e, posteriormente, A. O Brasil já havia passado por duas epidemias de meningite em 1923 e em 1945, mas nada parecido com o que aconteceu na década de 70. Pela falta de informações, não sabemos como a epidemia começou exatamente, pode ter vindo do exterior”, explica o historiador.
Dados do estudo “A doença meningocócica em São Paulo, Brasil, no século XX”, de José Cássio de Moraes e Rita Barradas, apontam que os casos de meningite meningocócica C na cidade de São Paulo aumentaram de 2,16 casos por 100 mil habitantes, em 1970, para 29,38 casos por 100 mil habitantes em 1973. A partir de 1974, houve uma explosão da infecção, motivada pela circulação da meningite meningocócica A, gerando uma sobreposição de surtos. Neste ano, a taxa de meningite chegou a 179,71 casos por 100 mil habitantes, e estima-se 2500 mortes.
“A censura permitiu que os casos aumentassem em proporção geométrica, sem controle. Nos bairros mais pobres, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento. Até que, em 1974, não dava mais para esconder o problema. A doença passou a infectar a população de regiões mais nobres de São Paulo. O Hospital Emílio Ribas, referência nesse tipo de atendimento, tinha, na época, 400 leitos e internou cerca de 1200 pacientes com doença meningocócica. As pessoas evitavam até passar na frente do hospital”, diz Carlos Fidélis. Surtos também começaram a ser registrados em outros estados, como Rio de Janeiro, Bahia e Distrito Federal.
Governo começa a tomar providências
A enorme ascensão do número de casos e a sucessão do presidente Emílio Médici por Ernesto Geisel, de perfil mais moderado, em 1974, finalmente levaram a ditadura militar a agir para controlar a epidemia. As autoridades começaram a reconhecer o problema publicamente, e foi criada o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica e a Comissão Nacional de Controle de Meningite. As escolas de São Paulo passaram a abrigar hospitais de campanha e até mesmo os Jogos Pan-Americanos, que iam acontecer na cidade em 75, foram transferidos para o México.
“As medidas de controle só começaram a ser tomadas três anos após o início da crise. O Brasil tinha cerca de 90 milhões de habitantes, e precisava imunizar algo em torno de 80 milhões de pessoas com a vacina meningocócica AC, para conter a epidemia. Ninguém no mundo fabricava uma quantidade dessas de vacina. O governo se deparou com a falta do produto até conseguir um acordo com o Instituto Pasteur Mérieux, da França. Mas seria necessário, para isso, construir uma nova fábrica que desse conta do tamanho da demanda”, detalha o historiador da Casa de Oswaldo Cruz.
Fundação de Bio-Manguinhos
O encarregado pela transação com a instituição francesa foi o economista Vinícius da Fonseca, então na Secretaria de Planejamento (Seplan) da Presidência da República. “Ele pegou essa oportunidade e teve a ideia de negociar não só a compra da vacina, como também a transferência da tecnologia para a Fiocruz”, relata Fidélis.
Assim, em 1976, foi criado o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), com a estratégia de incorporar e nacionalizar tecnologias existentes no mundo. “Os franceses construíram a fábrica na França para a entrega da encomenda dos imunizantes e treinaram os brasileiros, alavancando o desenvolvimento industrial de ponta nesse campo no país”, afirma Carlos Fidélis. Em 1977, Bio-Manguinhos passou a produzir a vacina anti-meningocócica em larga escala, fabricada até hoje pela instituição. Fonseca foi nomeado presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 1975, que presidiu até 1979. Ele foi importante, ainda, na criação do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz), e auxiliou na fundação do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS/Fiocruz).
Controle da epidemia
Em 1975, foi iniciada a campanha de vacinação massiva para todas as faixas etárias, que começou por São Paulo e rapidamente se espalhou para o Brasil. “Tinham filas quilométricas para vacinação no Viaduto do Chá e no Vale do Anhangabaú, na capital paulista. Foi uma campanha intensa, agilizada pelo advento da pistola de vacina. No ano seguinte, em 1976, o número de casos já começou a cair e normalizou em 1977”, afirma Fidélis.
De acordo com o especialista, são estimados 67 mil casos de doença meningocócica durante os anos de 1971 e 1976, sendo 40 mil apenas em São Paulo. “Mas são números controversos, já que não existia sistema de informação. As crianças foram as que mais sofreram. Esse fato histórico nos mostra a importância da vacinação, o quanto precisamos estimulá-la para não enfrentarmos novos surtos e novas epidemias. É alarmante a queda das coberturas vacinais”, destaca.