15/12/2021
Fernanda Marques (Fiocruz Brasília)
Coordenada pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), a Plataforma Zika – organizada em cinco Eixos de atuação – tem como objetivo central acompanhar as crianças nascidas durante a epidemia de síndrome congênita pelo vírus zika, e avaliar os impactos na vida das famílias, orientando, com base em evidências científicas, políticas públicas voltadas à população acometida. O alcance desse objetivo depende de algo fundamental: dados, compreendidos não só como elementos básicos da pesquisa, mas como bens públicos e de alto valor, desde que garantida sua qualidade, da coleta à extração do conhecimento, passando por sua gestão, compartilhamento, abertura e reutilização, bem como pela participação social nas decisões sobre a governança e o destino desses dados. Discutir essas questões, na perspectiva da ciência aberta e cidadã, é a missão do Eixo 5 da Plataforma, que conta com participantes do Cidacs, da Vice-Presidência de Educação, Informação e Comunicação (VPEIC) e da Fiocruz Brasília. Nesta entrevista da série “Fala aê, pesquisador – Especial Plataforma Zika”, a atual coordenadora do Eixo 5, Bethânia Almeida, comenta as diferentes fases do trabalho e as pesquisas em andamento.
Como foi a fase 1 do trabalho?
A fase 1 se inicia no final de 2016, quando o Eixo 5 da Plataforma Zika trabalhou estreitamente com a Vice-Presidência de Educação, Informação e Comunicação (VPEIC). Começamos um mapeamento do que estava sendo feito no mundo sobre ciência e dados abertos em termos de infraestrutura, formação de pessoal, diretrizes e políticas. Estudamos o que ocorria em alguns países desenvolvidos, como os da União Europeia, Reino Unido, Austrália e Estados Unidos. Esse trabalho resultou num relatório, chamado de Livro Verde, disponível no Arca, o repositório institucional da Fiocruz. Percebemos a busca por uma certa padronização dos dados para que eles possam ser reutilizados numa perspectiva acadêmica e governamental; a importância dos princípios FAIR (dados encontráveis, acessíveis, interoperáveis e reutilizáveis); a necessidade de infraestruturas específicas para pesquisa. Tudo isso já é apontado no Livro Verde, verde justamente porque é um mapeamento inicial, ainda não é um produto maduro. Em 2019, fizemos outra publicação, mais específica, a partir de uma discussão da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e da importância dos marcos legais e éticos para a pesquisa na saúde. A discussão sobre a reutilização de dados na perspectiva da ciência aberta nasce a partir dos dados primários, gerados dentro dos projetos de pesquisa, coletados com a finalidade daqueles projetos, submetidos aos Comitês de Ética. A nossa discussão na Plataforma Zika é diferente, porque usamos dados secundários, coletados pelo governo nas suas diferentes atividades, mas que também podem ser reutilizados para responder a perguntas de pesquisa. Ou seja, não são dados de pesquisa, mas para pesquisa – dados de diferentes fontes, que podem ser integrados e reutilizados para pesquisa. Havia uma discussão grande voltada para dados primários e percebemos que nosso objeto era mais complexo. Ainda na fase 1, além das publicações, também participamos da produção de conteúdo para um curso sobre ciência aberta, disponível no Campus Virtual Fiocruz. O Grupo de Trabalho da Fiocruz sobre ciência aberta nasceu no âmbito do Eixo 5 da Plataforma Zika. Esse GT fez um termo de referência com princípios e diretrizes sobre o tema. O documento foi apresentado ao conjunto da Fundação, ficou em consulta pública, recebeu contribuições e subsidiou a Política de Gestão, Compartilhamento e Abertura de Dados da Fiocruz, lançada em dezembro de 2020. Com isso, a Política segue no âmbito da VPEIC e, então, o Eixo 5 da Plataforma Zika inicia sua fase 2. Mas, claro, a gente continua participando das discussões institucionais. Hoje, por exemplo, eu coordeno a fase 2 do Eixo 5 e faço parte do Fórum de Ciência Aberta da Fiocruz, representando o Cidacs e a Fiocruz Bahia.
Na sua opinião, como está sendo o processo de implantação da Política?
Na verdade, é uma Política que estabelece princípios e diretrizes; não é mandatória. A Política é um avanço muito grande. Ela tem no seu escopo as questões do interesse público, da gestão e curadoria de dados, dos marcos regulatórios, dos aspectos éticos, das especificidades da saúde pública, da necessidade de infraestrutura robusta e sustentável ao longo do tempo, e da ciência cidadã, democrática e inclusiva. Para que ela possa ser efetiva, existem uma série de desafios institucionais, que não são fáceis, mas já começam a ser enfrentados. A Fiocruz começa a discutir o Arca Dados, repositório de dados da instituição, o que requer infraestrutura computacional, pessoas especializadas, um grupo responsável pela curadoria de dados, condições e termos de acesso estabelecidos, e outras normatizações. Muitas vezes, o pesquisador tem financiamento internacional e as agências de fomento querem que os dados sejam depositados, disponibilizados e compartilhados abertamente. Quando a gente fala em ciência aberta, as pessoas acham que tudo vai ser aberto livremente, mas não é assim. A Política da Fiocruz, assim como a ciência aberta no âmbito internacional, reconhece uma série de situações para não abrir os dados, desde que haja justificativas claras, aí considerados os aspectos éticos, legais e de propriedade intelectual. Claro que, numa emergência de saúde pública, o contexto é outro, e os dados precisam ser disponibilizados de forma muito rápida para responder a essa emergência.
Com qual perspectiva de ciência aberta vocês trabalham?
A ciência aberta é muito complexa. Antes, o foco era muito no acesso aberto; nos últimos anos é que se começou a falar na questão da abertura dos dados. Mas a ciência aberta requer uma série de outras coisas que ainda não vêm sendo suficientemente discutidas no mundo todo. A ciência aberta é socialmente responsável e inclusiva, requer transparência e reprodutibilidade, é uma ciência cidadã, participativa. Hoje se fala muito de big data, e de como os dados circulam num mundo globalizado e conectado. A forma como os dados são produzidos e utilizados, o tipo de conhecimento que geram, suas finalidades: tudo isso tem que ser considerado na perspectiva de dados como bens públicos, que devem ser aplicados para melhorar as condições de vida e saúde da população brasileira, e orientar políticas públicas. É nessa perspectiva que o Eixo 5 tem trabalhado.
Em que consiste a fase do trabalho?
O Eixo 5 tem características mais de ciências sociais e humanas. Na fase 2, começamos a desenvolver pesquisas que buscam um mapeamento e uma compreensão sobre dados em suas diferentes perspectivas. Uma dessas pesquisas teve como objetivo entender as percepções e experiências de diferentes atores – gestores, pesquisadores, beneficiários de programas sociais e representantes de grupos de pacientes – sobre o uso de dados pessoais para pesquisa científica e políticas públicas na área da saúde. Trata-se de uma pesquisa exploratória e qualitativa para compreender o que as pessoas pensam e suas vivências em relação aos dados. Outra pesquisa é uma revisão sistemática sobre emergências de saúde pública, tendo como recorte analítico o zika vírus e o Sars-CoV-2. A partir da literatura científica internacional, de 2015 a 2020, o estudo busca identificar os desafios operacionais e regulatórios para abertura, compartilhamento e vinculação de dados em emergências de saúde pública. A análise dos artigos vai trazer o cenário de uma emergência localizada, o vírus zika, principalmente na América Latina, no Brasil e no Nordeste, e de uma pandemia global, a Covid-19, que atingiu todos os países. Há também uma pesquisa que analisa os impactos do uso de dados administrativos para as pesquisas sobre zika no Brasil, como geram conhecimentos sobre a situação das famílias e evidências para orientar políticas públicas. Verificar como os dados são coletados e utilizados dentro da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde é o objetivo de outro estudo, que pretende identificar lacunas e potencialidades para que esses dados sejam mais bem aproveitados.
Quais os resultados já obtidos?
O relatório da pesquisa sobre percepções e experiências foi lançado em novembro. Além de integrar a Plataforma Zika, essa pesquisa faz parte de um projeto em parceria com a Universidade de Glasgow, na Escócia. De modo geral, observamos que as pessoas tendem a aprovar o uso de seus dados para pesquisas e políticas públicas, desde que tenham salvaguardas e isso gere algum benefício na vida delas. Claro que existe um receio também, principalmente em relação a quem pode ter acesso aos dados e para quais finalidades. Percebemos também que falta um fluxo bem estabelecido dentro dos departamentos do governo para que os dados possam ser mais bem utilizados.
Inspirados por essa pesquisa, junto com o Núcleo de Comunicação e Disseminação do Cidacs, elaboramos diferentes estratégias para divulgar o assunto, como uma série de posts nas mídias sociais abordando a importância dos dados nas nossas vidas, para pesquisa científicas e políticas públicas, e usos éticos, entre outras temáticas. Tudo o que a gente faz no Cidacs é inspirado pela nossa realidade e pelas nossas demandas, para dialogar sobre o nosso trabalho e melhorá-lo.
E quanto à revisão sistemática de literatura?
Sobre a revisão de literatura, percebemos que os desafios operacionais e regulatórios são ainda pouco discutidos. Muito se fala sobre compartilhamento e abertura de dados para responder às emergências de saúde pública, mas numa perspectiva global, como se as capacidades dos países fossem homogêneas em termos de sistemas de informação, preservação, interoperabilidade entre bases, questões éticas e legais, quando, na verdade, sabemos que os países apresentam capacidades bastante distintas. Não se pode perder de vista o papel do chamado Norte Global, que é, de fato, quem tem recursos para financiar as pesquisas. E as orientações para compartilhamento e abertura de dados nascem muito das agências de fomento internacionais, pois dados reutilizados podem diminuir o tempo e os recursos necessários para novas pesquisas. A ênfase é nos dados de pesquisa, os dados primários, porém, mais recentemente e ainda de modo incipiente, começam a aparecer discussões sobre o compartilhamento de dados de outras fontes, como dados administrativos, climáticos etc. Faremos uma norma técnica a partir dos resultados dessa revisão sistemática.
Quais outros aspectos das pesquisas você destacaria?
O Eixo 5 tem discutido os impactos das pesquisas que vão além da geração de conhecimentos. A pesquisa, de modo geral, acaba sendo muito divulgada para pares, por meio de artigos científicos, e mesmo as evidências para políticas públicas ficam muito restritas no âmbito dos gestores. No eixo 5, buscamos traduzir e disseminar essas discussões, incorporando novos olhares para que os dados tenham mais qualidade, sejam mais bem utilizados e, de fato, tragam melhoria das condições de vida e saúde da população brasileira. Essas duas pesquisas – a do impacto social e a da SVS – analisam, de formas diferentes, as bases de dados usadas no Eixo 1 da Plataforma Zika. O eixo 5 tem a especificidade de que ele dialoga com todos os Eixos da Plataforma Zika.
O que significa o advocacy sobre acesso e compartilhamento de dados, uma das atribuições do Eixo 5?
A gente tem um papel de defender o uso de dados administrativos para pesquisa em saúde pública. Quando falo em advocacy, é no sentido de levar essa discussão para os mais variados atores, inclusive a sociedade civil, para harmonizar e incorporar diferentes perspectivas, de modo que os dados sejam utilizados em benefício do país e da população brasileira. Os dados circulam e, hoje, a grande questão não é tanto ter acesso aos dados, mas extrair conhecimento deles. Você precisa de uma retaguarda computacional, algoritmos, processos automatizados e inteligência artificial. Os dados têm valor. E defendemos dados como bem públicos, usados de forma transparente e responsável, com finalidades de prover serviços e outros meios para que as pessoas tenham acesso a seus direitos como cidadãos. A gente está iniciando, um trabalho que começa com a Plataforma Zika e vai além. Não se trata só de publicar artigos científicos, mas de trazer diferentes atores para conversar sobre o tema. As pessoas têm direitos sobre os seus dados, e os dados têm impactos reais nas nossas vidas.