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Revista Radis debate padrões de masculinidade e saúde


06/11/2019

Por: Luiz Felipe Stevanim (Ensp/Fiocruz)

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Capa da Radis mostra um homem em uma armadura da idade média
Homem de verdade não chora. Não expressa emoção. Não deixa transparecer fragilidade. Desde menino, ele se veste, fala e até se senta como homem. Esses rótulos que dizem respeito a um modo padrão de ser “masculino” nunca fizeram muito sentido para Vinícius Rodrigues da Silva. Estudante de 19 anos do curso técnico de Controle Ambiental no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) campus Nilópolis, ele sempre estranhou essa visão “tradicional” de ser homem. Porém, afastar-se da “masculinidade esperada” não foi para ele um percurso simples - ao contrário, “ser diferente” por vezes ainda se revela uma experiência dolorosa. Gay, negro, morador de Queimados, município da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, ele enfrenta dificuldades para ser respeitado em sua individualidade. “Performar uma masculinidade fora dos padrões, sobretudo para homens negros, não é algo confortável a se fazer, mas também não é algo impossível. Acredito que devemos tentar e aos poucos lutar contra esse quadro”, afirma.

Vinícius sempre gostou de ler. Sobre a mesa de estudos, entre escritos de química e matemática, misturam-se livros de bell hooks [pseudônimo da feminista Gloria Jean Watkins, grafado assim em minúscula], Abdias do Nascimento e um romance de quase mil páginas, “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, que narra a trajetória de uma africana escravizada no Brasil. “De vez em quando ouso estudar algo além”, comenta. Um dos temas que despertam seu interesse é o dos padrões impostos pela sociedade em torno da masculinidade. “Em uma cultura patriarcal, onde os meninos são educados para se tornarem homens que não choram, que não sentem, que não amam, ser homem, segundo hooks, é evitar ‘qualquer preocupação com o amor’”, escreveu em um texto publicado em abril de 2019, quando participou de uma roda de discussão sobre “Masculinidade e seus dilemas” no campus do IFRJ em Nilópolis (RJ). “Devemos ocupar esses espaços para a propagação de uma nova masculinidade, que seja humanizadora e não violenta”, defende.

Os passos dados por Vinícius questionam uma masculinidade que limita os modos de ser homem, impõe comportamentos e pode adoecer homens e mulheres. “É preciso que o homem seja forte, provedor, ativo e, sobretudo, esteja distante emocionalmente de si e de outras pessoas”, reflete o estudante. Não há lugar para os sentimentos nessa figura masculina padrão. Forçados a se portarem como seres infalíveis, que não demonstram fraquezas, os homens são na verdade vulneráveis a altas taxas de homicídio e acidentes, motivados por comportamentos de risco, agressividade e uma cultura da violência. Suicídios ocorrem quase quatro vezes mais entre homens do que entre mulheres, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Os homens também têm maior probabilidade de morrerem antes dos 70 anos na maior parte dos países do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Dietas e estilos de vida pouco saudáveis, consumo excessivo de tabaco e álcool e a baixa procura pelos serviços de saúde, pois “homem de verdade não se cuida”, são alguns dos fatores agravantes dessa vulnerabilidade masculina e que estão, segundo artigo de Carissa Ettiene (25/2/19), diretora da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), ligados a normas predominantes de masculinidade.

Em janeiro de 2019, um vídeo publicitário da marca Gillete mostrava, em situações cotidianas, como alguns comportamentos masculinos baseados no sexismo e no machismo podem prejudicar os próprios homens, desde garotos. A campanha ajudou a difundir a ideia de “masculinidade tóxica”, que se refere a uma visão restrita sobre o que significa ser homem, com impactos negativos nas relações e na saúde das pessoas - e também conclamava os homens a expressarem uma “versão melhor” de si mesmos. Mas como a masculinidade pode ser tóxica? Que padrões sobre o modo de ser homem podem prejudicar e até mesmo adoecer homens e mulheres? Pressões para prover o sustento e vencer na vida, falas e gestos endurecidos, o silêncio sobre os sentimentos, a heterossexualidade compulsória e a sexualidade restrita podem sufocar os homens e afastá-los de uma vida mais feliz e com mais qualidade e saúde.

Uma pesquisa realizada com mais de 40 mil brasileiros, em 2019, pelo Instituto Papo de Homem, com apoio da ONU Mulheres, revelou que seis em cada 10 homens não foram ensinados a expressar emoções; sete em cada 10 brasileiros do sexo masculino afirmam que aprenderam, durante a infância e a adolescência, a não demonstrarem fragilidade; e apenas dois em cada 10 homens tiveram exemplos práticos e boas conversas sobre como lidar com suas emoções e expressá-las de maneira saudável. A maioria também não cultiva o hábito de conversar com os amigos sobre medos, dúvidas e frustações, revela o estudo. “Os homens falam muito, mas pouco sobre o que habita dentro deles e o que realmente sentem”, aponta a pesquisa, que também produziu o documentário “O silêncio dos homens” sobre iniciativas voltadas para debater masculinidades (no plural).

Construir “o que é ser homem”, para Vinícius, é um percurso que envolve “inúmeros ritos de violência e demarcação”. “Em uma sociedade patriarcal, há uma masculinidade esperada. Isso fica claro em comerciais de TV, novelas, programas televisivos e igrejas”, pontua. Para ele, as masculinidades aceitáveis são aquelas que remetem à proatividade, agressividade, desamor, falta de compaixão - e à “desumanidade”. Desde a infância até a adolescência, ele afirma que coleciona episódios de repressão no ambiente escolar, por expressar sua orientação sexual e ser um “garoto diferente” do padrão imposto. “Homens que não se encontram dentro dos padrões (cis, héteros, brancos, ocidentais) enfrentam algumas dificuldades em sua trajetória. A escola é um lugar cruel para aqueles que não performam uma masculinidade esperada”, considera.

As expectativas em torno da masculinidade produzem episódios de machismo, homofobia e violência. Um dos fatos marcantes para Vinícius ocorreu em uma data emblemática. Foi em 2017, quando participava de um ensaio fotográfico para o 2º Dia da Visibilidade LGBT+ do IFRJ e segurava uma bandeira do arco-íris. “Um funcionário da instituição sussurrou algo do tipo: ‘Todas as cores são de deus’, em tom de repressão. Levei o caso para meus superiores, mas a instituição não tomou nenhuma medida”, relembra. Em 2018, ele se tornou monitor do Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual do colégio para tentar “impedir que novos alunos passem por isso”, conta.

O estudante não esmorece o sonho de “imaginar um novo amanhã”, como gosta de dizer. Amante dos livros de bell hooks, o rapaz defende a construção do que a autora chama de “masculinidades feministas”, em que “os homens aprendem o ato e a arte de amar” para transformar a si mesmos. “Na construção de um novo imaginário social, é preciso que os homens repensem seus papeis”, aponta. “A condição para este novo modelo, portanto, é o amor”, escreveu Vinícius em um de seus textos.

Porém, o que fazer para vencer os estigmas e os rótulos que aprisionam a figura do homem na armadura de “sexo forte”, “infalível” e “competitivo”? Radis ouviu histórias e reflexões para entender não apenas como as expectativas em torno da masculinidade podem gerar efeitos negativos sobre a saúde, mas para compreender a busca por expressões de masculinidades mais saudáveis e igualitárias.

Continue a leitura da reportagem no site da revista Radis

Confira também na íntegra a edição de novembro da revista

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