18/06/2018
Por: Antonio Fuchs (INI/Fiocruz)*
No final do mês de abril, a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), da Câmara dos Deputados, aprovou o novo texto que regula a pesquisa clínica com seres humanos. A comissão acolheu o parecer ao Projeto de Lei nº 7.082, de 2017, do Senado Federal, que estabelece princípios, diretrizes e regras básicas do processo de investigação. O novo marco legal cria ainda o sistema nacional de ética do setor.
O vice-diretor de Ensino e membro do Comitê de Ética em Pesquisa do INI, Mauro Brandão Carneiro, explica, em entrevista, quatro pontos que são considerados avanços pela comunidade científica no texto aprovado pela CCTCI. Confira!
Qual é a importância da Ética em Pesquisa e por que afeta tantas pessoas em nosso país?
Mauro Brandão: Quando se faz um estudo clínico estamos falando de pesquisar com seres humanos e, com isso, os usando como cobaia. Essa é a expressão clara e que define as pesquisas desse tipo. Os Comitês de Ética em Pesquisa têm como função primordial garantir a segurança desse ser humano e vão sempre se mobilizar para fortalecer e favorecer a pesquisa clínica em todo o país, mas tendo o cuidado com o participante como principal objetivo principal. Por isso a existência dos CEPs.
Durante a discussão do projeto na Câmara, quatro pontos foram aprovados e considerados um avanço. Um deles seria em relação a vinculação do usuário na pesquisa. Do que exatamente isso se trata?
Mauro Brandão: No Comitê de Ética, na avaliação dos projetos de pesquisa que envolvem seres humanos, a presença de representantes dos usuários é fundamental. Por exemplo, quando se analisa um termo de consentimento, se está adequado e bem aceito, a opinião desse participante que vive aquilo ali no dia a dia é de extrema importância. Então, todo CEP tem que ter representação do participante e isso, até o momento, não havia ficado claro no projeto.
Quando tramitou no Senado praticamente extinguiram a possibilidade dessa participação. Depois houve um amolecimento ali, uma concessão aqui e nessa aprovação agora na Comissão de C&T da Câmara, eles conseguiram garantir um melhor desenho dessa participação. Então está garantida a presença de representantes dos participantes das pesquisas dentro dos CEPs.
E por que isso é um ganho?
Mauro Brandão: Porque desde 2015, quando o projeto começou a tramitar no Senado, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), os CEPs, os pesquisadores e toda a comunidade científica vêm lutando por isso junto, evidentemente, com a participação dos usuários. Nós queremos que as pesquisas sejam agilizadas no Brasil. Queremos garantir uma ampla participação e desenvolvimento tecnológico, mas não podemos perder de vista essa visão da segurança dos participantes. Então essa foi a luta que consideramos como um avanço agora.
Essa conquista é extremamente importante porque nós vamos ter garantido por lei, se isso for aprovado, que essa representação dos participantes de pesquisa, dos usuários, dos CEPs, vá se tornar permanente e irrevogável.
Qual a importância da Conep em continuar se mantendo como uma instância independente, e não vinculada, de acordo com o projeto original, ao Ministério da Saúde?
Mauro Brandão: São dois aspectos importantes a se considerar. O projeto desde o início das discussões atribuía à Conep a responsabilidade pelas pesquisas atrasarem e da Comissão criar diversos problemas burocráticos, entre outras alegações. Isso é absolutamente irreal.
Diversos estudos mostraram que existia mesmo, anos atrás, essa dificuldade administrativa-gerencial, mas isso acabou sendo resolvido de maneira extremamente favorável nos últimos cinco anos, desde que a Conep passou a ter mais liberdade de ação e trabalho.
A segunda questão é essa vinculação ao Ministério da Saúde. A Conep, por ser a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, tem que ter uma atuação independente. Ela não pode ser subordinada a ninguém e muito menos ao Ministério da Saúde. Se for subordinada ao MS, vai seguir, obrigatoriamente de qual governo está no poder, a sua política. A Conep tem que ser independente nesse sentido. Ela é vinculada corretamente ao Conselho Nacional de Saúde, que é o órgão máximo, vamos dizer assim, com representação dos usuários, dos profissionais, na gestão da saúde no país. Então a nossa luta é para que ela continue essa independência e mantendo esse vínculo ao CNS.
Nessa aprovação da Comissão de C&T, nós conseguimos essa independência e esse reconhecimento de uma Comissão Nacional independente.
Outra conquista que aparece no projeto é a questão do placebo. Qual o ganho real disso?
Mauro Brandão: O uso de placebo tem que ser bem compreendido. Quando eu vou descobrir ou testar um remédio novo para uma doença, é permitida a utilização de uma pílula de água com açúcar, que é o que chamamos de placebo. Isso acontece quando não existe tratamento nenhum para aquela doença. Então, eu pego um grupo de participantes dou uma pílula de água com açúcar, que não vai resolver em nada a doença deles e para outro grupo eu testo meu remédio. Isso é correto para quando não existe nenhum tratamento para aquela doença. Agora, quando existe, quando já é uma doença que já tem tratamento em vigor, eu sou obrigado a testar o meu medicamento novo com o melhor que existe para poder comparar e dizer que o meu é superior. Essa questão do placebo é fundamental.
No projeto original isso não estava regulamentado. Pelo contrário, você não obrigava a comparação do medicamento novo com o melhor existente. Era deixado ao sabor do pesquisador ou da indústria farmacêutica.
Nessa aprovação agora na Comissão de C&T houve um avanço sem dúvida alguma. No Senado já tinha havido uma mudança nesse ponto, mas agora ficou bem mais claro. Você só vai poder testar um novo medicamento para uma doença que já tem tratamento com o tratamento que é habitualmente utilizado para ela.
A partir de agora, obrigatoriamente você tem que comparar esse novo remédio que você quer testar com o melhor que já existe atualmente para aquela doença. Se não fizer isso, seu remédio não vai ter credibilidade nenhuma. E pior, você vai colocar em risco a vida e a saúde do paciente que você deixa sem tratamento.
O ponto mais polêmico de todo o projeto é o acesso aos medicamentos no pós-estudo. Quais são os argumentos que a indústria usa para não fornecer medicamentos para um grupo que contribuiu imensamente para o desenvolvimento daquele fármaco?
Mauro Brandão: Na verdade, o argumento que os defensores do projeto original ligados à indústria farmacêutica defendem é o lucro. Essa é a realidade. “Sim, eu descobri um medicamento ótimo. Excelente para essa doença e vai curar muita gente, tratar melhor do que o existente hoje. Vocês já podem comprar”, diz o dono do medicamento. E com isso ele já vai lucrar. Então o grande problema é a briga com essa ganância.
A essência da defesa desse argumento de não fornecer ao participante o medicamento depois que acabar é o lucro, mas a indústria não o admite. Para eles funciona o “eu descobri um ótimo medicamento e agora você pode sair e comprar”, mas estamos falando de um grupo que viabilizou a vitória dessa pesquisa e o ganho desse novo medicamento para o tratamento daquela doença. O mínimo que esse grupo merece é ter garantido esse tratamento pelo resto da vida ou pelo tempo que for necessário.
Essa é uma questão mais do que ética, é uma questão moral, uma questão filosófica básica em defesa do participante. Só que a indústria continua pressionando contra o acesso. Isso já tramitou por todas as Comissões do Senado e mesmo nessa primeira tramitação na Câmara não se conseguiu mudar esse conceito e a indústria conseguiu botar dois argumentos no Projeto de Lei muito interessantes.
Quais são esses argumentos?
Mauro Brandão: No projeto de lei que vem tramitando desde o Senado, e que não passou por alterações nesta Comissão da Câmara, dois incisos são inseridos para justificar essa postura. O primeiro diz que o fornecimento do medicamento ao participante pode ser interrompido se houver dificuldade de fabricação, importação ou coisa do gênero, devidamente justificado. Sinceramente? Qualquer representante da indústria tem habilidade para inventar uma justificativa para dizer que não está podendo fornecer o medicamento.
O segundo argumento, mais problemático ainda, diz que a indústria vai parar de fornecer o medicamento quando o SUS começar a distribuir gratuitamente. O SUS vai fazer isso por uma obrigação do Estado em garantir a saúde da população e isso vai atingir milhares de pacientes com aquela doença. Nós estamos falando aqui dos participantes que deram a sua contribuição para a empresa conseguir descobrir esse remédio e ganhar com o lucro das vendas. Então, essa é uma questão chave, ética, fundamental para se garantir no projeto e até agora, infelizmente, não vimos avanço.
E por que não se consegue avançar nesse ponto? Há um lobby das industrias ou falta de representação de quem defende o oposto?
Mauro Brandão: Nessa batalha o lobby está ganhando. Temos muitas entidades vinculadas à pesquisa, pesquisadores, usuários, todos muitos mobilizados em defesa do acesso ao medicamento no final do estudo, mas infelizmente o lobby ainda está ganhando. Precisamos de maior mobilização, pressionar mais o congresso para sairmos vitoriosos.
Uma crítica bastante forte com relação às pesquisas clínicas no Brasil é o tempo para ela ser liberada e começar a ser trabalhada. É possível que com essa nova lei esse processo seja agilizado?
Mauro Brandão: Não há uma relação direta desse projeto de lei com a agilidade do sistema. A agilidade do sistema é considerada resolvida hoje. Hoje nós temos mais aprovações por ano do que quantidade de projetos que chegam. Houve uma inversão total nos últimos cinco anos. Há cinco anos atrás havia fila de projetos esperando aprovação. Hoje, isso se inverteu. A Conep faz esse controle mensalmente. Já em 2015, quando o projeto começou a tramitar, essa mudança estava francamente ocorrendo. Então, o Projeto de Lei, com esses tópicos aprovados vai garantir sim que nós tenhamos uma política que nos permita trabalhar em prol da pesquisa clínica, com a segurança necessária, seja no governo A, B ou C.
*Edição: Juana Portugal
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