30/06/2015
Por: Eliane Bardanachvilli (CEE-Fiocruz)
Para o médico e professor João Menezes, do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, é urgente que a proibição e a criminalização da maconha sejam revertidas. “Assim, a regulamentação medicinal pode ser fundamentada em bases mais racionais e humanas”, considera ele, que participará da mesa Regulação da maconha medicinal, quinta-feira, 2/7, às 9h30. Estudioso da neurogênese do cérebro, integrante do comitê científico do Congresso Internacional sobre Drogas, realizado em Brasília, em 2013, e organizador da Marcha da Maconha no Rio de Janeiro, João Menezes observa que a maconha tem toxicidade baixa e que como fitoterápico, ou planta medicinal, sua segurança já está bem estabelecida. Como medicamento farmacêutico ainda precisa passar por número maior de estudos clínicos. “São estudos obrigatórios, mas difíceis de serem feitos sob o véu da proibição”.
Em janeiro deste ano, a Anvisa liberou o uso controlado do canabidiol (CBD). O que isso significa e para onde é preciso caminhar no que diz respeito ao uso medicinal da maconha?
Significa uma resistência injustificável do Poder Executivo e da classe médica – houve também resolução recente do CFM [Conselho Federal de Medicina] sobre o uso e prescrição dos extratos ricos em CBD – em aceitar o óbvio, com enorme prejuízo à saúde da população, prejuízos irreversíveis para pacientes, graves ou não, que se beneficiariam do acesso aos extratos atualmente existentes, e que têm direito de escolher o próprio tratamento. As limitações impostas pelo CFM para a prescrição dos extratos, relativas a idade do paciente, patologias e médicos especialistas autorizados a prescrever, não têm fundamento médico científico. A argumentação do conselho, muito boa em relação aos estudos clínicos com a maconha, mostra cautela injustificável em relação a segurança da maconha e seus derivados, que é mais estabelecida e maior do que muitos dos medicamentos comercializados. É uma planta que acompanha a humanidade há séculos, tendo seu uso tradicional como remédio principalmente. Todos os estudos, inclusive os que não detectaram eficácia terapêutica, citam poucos e toleráveis efeitos colaterais indesejados. Apenas não ocorreu, ainda, um número maior de estudos clínicos, encomendados por agências reguladoras, duplo-cegos, randomizados e em populações controladas de fase um a quatro. São estudos obrigatórios para medicamentos farmacêuticos, mas difíceis de serem feitos sob o véu da proibição. Como fitoterápico, ou planta medicinal, sua segurança está muito bem estabelecida. Como não se prevê a possibilidade de produção nacional, conforme a lei brasileira sobre drogas, atrasa o desenvolvimento da indústria e o conhecimento nacional. É urgente que a proibição e a criminalização da maconha sejam revertidas, e, com isso, que a regulamentação medicinal possa ser fundamentada em bases mais racionais e humanas.
Como deveria ser comercializada e adquirida a maconha para uso medicinal? Seria comprada em farmácias, em embalagens, como um medicamento?
Antes de falar em uso médico, é necessário entender que as equipes de saúde precisam ser treinadas para o atendimento aos usuários de maconha medicinal. Devido a anos de proibição, existe grande desinformação nas equipes de saúde. O uso de fitoterápicos tampouco é ensinado nas escolas médicas. Isso deverá ser progressivamente estabelecido no Brasil. Sobre o acesso à maconha medicinal, este deverá ocorrer, num regime de regulamentação inteligente, de várias formas.O autocultivo deverá ser permitido. Isso beneficiaria os pacientes que precisam ter acesso permanente, como nas indicações de uso crônico e prolongado – preferencialmente, mas não de forma obrigatória, com acompanhamento de equipe de saúde treinada. Há também os clubes de cultivo [cooperativas para cultivo de forma coletiva] especializados ou não em maconha medicinal, fiscalizados e sem fins lucrativos. Para melhor eficiência e segurança do funcionamento destes, e do autocultivo, será necessário implementar laboratórios (privados ou públicos) especializados na análise fitoquímica de controle de qualidade, para garantir a ausência de contaminantes, fungos e estabelecer perfil fitoquímico dos fitocanabinóides e terpenos de cada planta oferecida ou cultivada.
Há, ainda, a produção industrial ou semi-industrial de fitoterápicos (flores e extratos) de qualidade farmacêutica, comparável à companhia Bedrocan na Holanda, para suprir este mercado em expansão, potencialmente muito grande. Poderão ser vendidos em lojas de fitoterápicos, farmácias tradicionais e de manipulação ou lojas especializadas em produtos canabicos como os dispensários americanos.
E quanto a medicamentos propriamente?
Há os produtos farmacêuticos, como pílulas e extratos, em formas industriais. Essa fatia do mercado deve evoluir conforme a pesquisa sobre os componentes da maconha e seu uso médico evoluírem. Poderão ser formas mais purificadas e equilibradas dos princípios ativos terapêuticos da maconha, como canabinóides e terpenos. Esses produtos poderão ser inclusive sintéticos e/ou transformados quimicamente. Poderemos prever também produtos importados, alguns já existentes, como Sativex, Epidiolex, Cannador, Cesamet (Nabilona), Marinol (Dronabinol) e outras formas de material in natura ou extratos fitoterápicos já existentes como Bedrocan, HempMeds, Revivid, e outros. Estes deverão ser limitados a farmácias tradicionais ou de manipulação. Sujeitos a regulamentação e regras de importação comuns a esse tipo de produto.
Os produtos dos dois últimos itens devem passar pelos testes necessários para medicamentos farmacêuticos e/ou fitoterápicos conforme a legislação brasileira específica sobre o tema. Também deverá de ser obrigatório um rigoroso controle de qualidade laboratorial. E finalmente, aí exigida a prescrição médica.
Quais os benefícios já comprovados da maconha? Para onde vêm se encaminhando os estudos científicos a respeito?
A maconha é uma planta de uso tradicional e cultural de longa tradição com evidencias que a apontam como um cultivar pré-histórico, remontando ao início da agricultura. Pode ser usada como fonte de alimento, fibra vegetal para manufaturas, óleos, e pelas suas propriedades psicoativas e medicamentosas. Em muitas sociedades é usada como medicamento e de uso não-ritual frequente, diário. Provavelmente suas primeiras indicações médicas eram tópicas e orais. Estava presente na farmacopeia europeia e americana desde o século 19 para várias indicações curativas e paliativas, tendo sido excluída em meados do século 20. Atualmente nos países e regiões que permitem seu uso médico, volta-se para uma diversidade de patologias, geralmente com componente autoimune ou inflamatório, dor crônica, enxaquecas, algumas doenças degenerativas autoimunes como esclerose múltipla, doenças neurológicas, tratamento paliativo para efeitos colaterais de quimioterapia do câncer e aids. A mais contundente utilização é sobre as epilepsias refratárias em crianças e adultos. A lista é longa. O que estamos vendo internacionalmente é um maior incentivo as pesquisas básicas e clínicas sobre maconha e sobre o sistema endocanabinoide como um todo. Recentemente os Estados Unidos criaram linhas de financiamento para estudar as propriedades médicas e benefícios da maconha, dos seus componentes e da biologia do sistema endocanabinoide. É a primeira vez que as linhas de financiamento não são limitadas apenas a estudar os efeitos negativos da maconha. O Brasil deve fazer o mesmo.
Com que frequência a maconha pode ser consumida sem causar danos?
A maconha tem baixíssima toxicidade direta. Vários estudos demonstram uma grande tolerância a maconha por adultos, com poucos efeitos indesejados em longo prazo. Podemos dizer que o uso regular da maconha por adultos é compatível com uma vida longa, produtiva e saudável. As melhores evidências dessa segurança é para um consumo de um a três baseados por dia aproximadamente (sabemos ainda pouco sobre o uso de métodos de administração potencialmente mais seguros como a vaporização). Os riscos aumentam com doses maiores, mas como boa parte dessas evidências foram obtidas com maconha do mercado negro, é possível que muitos dos efeitos deletérios devam-se a contaminantes da maconha e não pela maconha per se. É claro que como qualquer medicamento ou substancia existem grupos de risco, pessoas mais suscetíveis a problemas advindos do uso, principalmente crianças e adolescentes, mais ainda naqueles com história familiar de doenças mentais. Outro grupo de risco são mulheres grávidas. Algumas doenças pré-existentes podem aumentar os riscos, como doenças hepáticas, renais e cardíacas. Recentemente crianças com epilepsia refratária têm se beneficiado de extratos de maconha ricas em CBD, de uso continuo e prolongado. Até o momento não temos evidencias de que isto esteja sendo prejudicial ao desenvolvimento cerebral dessas crianças, muito pelo contrário.
De que forma a maconha atua em nosso organismo?
Não há como responder em poucas linhas a ação da maconha, mas arrisco uma síntese limitada. A maconha atua através de múltiplos princípios ativos, da ordem de uma centena, de pelo menos dois tipos principais, fitocanabinóides e terpenos. O somatório dos efeitos conjugados dessas moléculas produz os resultados desejados, seja o medicinal, seja pela psicoatividade apenas. Este é o chamado efeito comitiva, comum à maioria das plantas medicinais. Como toda comitiva, existem protagonistas. Identificamos dois fitocanabinoides, que explicam muito do efeito global da maconha, as formas decarboxilada do tetrahidrocanabinol (THC), principal responsável pelo efeito cognitivo euforizante e do canabidiol (CBD), com efeito psicoativo ansiolítico. Existem muitos fenótipos, cepas e cruzas estáveis de maconha, com grande variedade na composição destes compostos. A experiência relatada (mas pouco sistematizada para entender a contribuição de um efeito placebo) é que as diferentes cepas produzem diferentes efeitos sobre a psicoatividade, dor e outras aplicações médicas. Estamos longe de entender o mecanismo de ação do uso fitoterápico com a planta inteira. Sabemos por experiência que os usuários medicinais preferem os fitoterápicos ao THC e seus análogos sintéticos purificados. É importante entender que na planta os fitocanabinoides estão na sua forma ácida, não decarboxilada, e que para produzir psicoatividade a planta precisa passar por um processo de aquecimento que provoca decarboxilação destes compostos. No entanto, parte da atividade terapêutica esta presente na também nas forma ácidas. Na índia, era comum uma forma tradicional de ingestão de maconha, uma espécie de chá com leite, conhecido como Bhang. O Bhang é produzido com temperaturas relativamente baixas, menos de 100o C, esta bebida apresenta muitos fitocanabinoides decarboxilados, inclusive o THC, e nesta apresentação tem baixa psicoatividade, mas ainda com efeitos terapeuticos. Existe então um enorme potencial de uso médico para esta apresentação, sem qualquer chance de dependência, pois não apresenta psicoatividade hedônica importante
Como a maconha deveria circular em nossa sociedade, para uso medicinal e para uso recreativo? Seriam formas diferentes de circulação?
Como sugeri na resposta anterior, favoreço um modelo com mercados separados, mas com alguma superposição. As demandas do uso médico são diferentes daquelas do uso pessoal. No entanto, as pessoas tem direito de decidir como vão usar a liberdade de escolha quanto a forma de tratamento, inclusive a auto medicação. É um princípio de autodeterminação que é geralmente inviolável na nossa sociedade. Essas pessoas poderão escolher o caminho do autocultivo e dos clubes, preferencialmente com acompanhamento médico. Existem riscos claros, mas todos mais fáceis de lidar do que com a proibição radical e seus efeitos indesejados. Um mercado medicinal oficial robusto, inteligente e bem regido será sempre mais atrativo que um mercado amador, pirata, desregulado. Caso evolua um mercado amador desregulado grande e com consequências negativas à saúde pública, com abusos como pseudocurandeirismo e exploração da dor alheia, o que eu duvido, será sinal de que o mercado médico oficial não está robusto o suficiente. A conduta será de aperfeiçoar este sistema médico e não proibir o mercado informal. A maturação dessa política pode ser prolongada, mas dado o baixo potencial de danos da maconha, podemos arriscar seguir nessa linha por uns 50 anos. Basicamente, o mesmo tempo em que testamos a política radical de proibição sem sucesso. Está na hora de mudar de estratégia.
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