09/10/2020
Por: Daniela Muzi (Icict/Fiocruz)
O documentário O índio cor de rosa contra a fera invisível: a peleja de Noel Nutels (2019), de Tiago Carvalho, conquistou três prêmios no renomado Festival Biarritz Amérique Latine: o de melhor documentário escolhido pelo público, uma menção honrosa do júri e o prêmio do Instituto de Altos Estudos Latino-americanos de Paris. Além disso, foi eleito melhor filme da mostra competitiva ibero-americana do Festival Internacional de Documentários de Buenos Aires, o Fidba, realizado em setembro.
Feito com base no único registro de voz do sanitarista judeu brasileiro Noel Nutels — o depoimento dado em 1968 à CPI do Índio, onde discursa sobre o que chamou de “massacre histórico dos povos indígenas” —, o filme foi produzido pela VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz e pela Banda Filmes, após ser selecionado no seu edital de fomento à produção de audiovisuais em saúde, o Selo Fiocruz Vídeo.
Não só o discurso atual e contundente de Nutels chama a atenção no longa de 71 minutos, mas as preciosas imagens de arquivo em filmes de 16mm, cerca de 90% filmadas pelo próprio sanitarista-cineasta entre as décadas de 1940 e 1970, quando percorreu o interior do Brasil atendendo populações indígenas, sertanejas e ribeirinhas. “A grande inspiração que nos guiou o tempo todo veio dos filmes do Noel e das ideias que ele expõe naquele depoimento tão poderoso”, explica o diretor Tiago Carvalho. Os outros 10% são imagens do Major Thomaz Reis, que acompanhava Marechal Rondon em suas expedições, do Heinz Forthman, cineasta de enorme importância para o cinema etnográfico brasileiro, e do Humberto Mauro, um dos pioneiros do cinema no Brasil.
Percorrendo o circuito de festivais internacionais e nacionais, o documentário ainda está inédito no Brasil, onde busca janelas de exibição junto a TVs e plataformas de streaming. Mas uma boa oportunidade de assistir ao filme será no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, a estreia da “peleja de Noel Nutels” em território brasileiro. O filme ficará disponível on-line das 6h da manhã do dia 9 de outubro até às 6h da manhã do dia 10 de outubro e também no dia 13 de outubro, no mesmo horário. Mas para quem quiser ter a relíquia em casa, a versão de 52 minutos do documentário está à venda em DVD na Editora Fiocruz. A reunião do material de arquivo é do próprio Carvalho, que conta com experiência na área do audiovisual em saúde na direção da série Curta Agroecologia (2013), coprodução entre o Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Canal Saúde e VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz, do documentário Saúde Indígena - Atenção diferenciada e políticas públicas para territórios indígena (2020) e da série sobre conflitos socioambientais Sangue da Terra(2016), exibida no canal CineBrasilTV.
Confira abaixo o trailer e a entrevista concedida por Tiago de Carvalho para a VideoSaúde:
VideoSaúde - Qual o impacto de receber esses prêmios para a promoção do debate sobre a questão indígena no Brasil? É um momento oportuno?
Tiago Carvalho - Nós esperamos que o filme possa atrair a atenção da sociedade para o agravamento daquilo que Noel Nutels chamou de ‘massacre histórico’ contra os povos indígenas. Está em curso um ataque brutal contra essas populações. A pandemia do novo coronavírus atinge as comunidades indígenas de maneira muito grave e a grilagem de terras, a mineração, o desmatamento, as queimadas se intensificam. São cada vez mais frequentes os casos de violência contra esses povos e contra a integridade dos seus territórios. Esperamos que o filme possa nos inspirar a coragem do Dr. Noel para enfrentarmos essa conjuntura terrível sem esmorecer.
VS - Noel Nutels dizia que não era um estudioso do problema indígena, mas um profissional, um médico, que, por força da sua profissão e de um problema, atuou na área indígena por cerca de 20 anos. Qual inspiração Nutels nos traz hoje, quando a questão indígena é tão pungente?
TC - O Dr. Noel, por suas ideias e seu trabalho incansável, inspira coragem para defender o direito à saúde e ao território dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Esses direitos são garantidos pela Constituição de 1988 e é preciso fazê-los valer. Há muita gente lutando por isso, lado a lado com esses povos.
VS - Seu envolvimento com a questão da saúde e indígena não se resume a esse filme. Como surgiu a ideia do documentário sobre o médico sanitarista?
TC - Eu conhecia um pouco da história do Noel porque sempre me interessei muito pelo momento histórico em que ele atuou, nesse contexto da ‘marcha para o oeste’. A ideia de fazer o documentário surgiu há alguns anos, quando houve a oportunidade de submeter o projeto ao edital anterior do Selo Fiocruz Vídeo, em 2016. Naquele momento, junto com o jornalista Pedro Schprejer, comecei a pesquisar de maneira mais aprofundada sua biografia, seu cinema, o contexto em que atuou. De lá para cá, muito por causa das conversas e do trabalho junto com a Maria Flor Brazil, produtora executiva do filme, a ideia amadureceu e felizmente foi premiada no edital de 2019.
VS - Conte a história do título do filme e a dedicatória à Bertha no começo.
TC - O título ‘O índio cor de rosa contra a fera invisível’ reúne duas referências: ‘Índio cor de rosa’ é o apelido carinhoso que amigos davam a Noel Nutels e foi o título do romance biográfico que o Orígenes Lessa escreveu. A ‘fera invisível’ vem do título de um folheto de cordel escrito por João José da Silva a pedido de Noel e que era cantado nas ações de combate à tuberculose realizadas pela equipe do Susa (Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas) no Nordeste, ‘A fera invisível ou o caso de uma trapezista que sofria do pulmão’. É como vimos o Noel: lutador inesperado, misturado com os índios, brigando contra a fera da cobiça e do desrespeito à vida – a mesma que anda hoje à solta arreganhando os dentes para nós. E dedicamos o filme à Bertha, filha de Noel Nutels, porque, antes de mais nada, ela é uma mulher extraordinária que nos premiou com sua amizade e generosidade. Sem a Bertha não haveria filme. Ela preservou a obra do pai, permitiu que pesquisássemos seu acervo e foi sempre uma grande incentivadora da produção.
VS - Como foi o processo de pesquisa do material de arquivo?
TC - A pesquisa do material de arquivo aconteceu em dois lugares diferentes. Um deles foi a Casa de Oswaldo Cruz, unidade da Fiocruz dedicada à história, ao patrimônio cultural e à divulgação das ciências e da saúde. Lá estava arquivada, com grande cuidado e organização, a maior parte dos filmes do Noel. E foi também lá que encontramos o depoimento dele à CPI do Índio gravado em 1968 pelo cineasta Hermano Penna, que naquela época preparava um filme sobre essa comissão parlamentar de inquérito e, muito generosamente, permitiu que usássemos essas gravações no documentário. Os filmes do Noel não eram os originais em película, mas foi extremamente importante a parceria com a Casa de Oswaldo Cruz para conhecermos a maior parte da obra cinematográfica dele.
Outro lugar importante de pesquisa de materiais de arquivo foi a casa da Bertha Nutels. Ela abriu conosco todos os baús, todas as pastas de fotografias, de documentos, de slides, nos permitiu ouvir centenas de fitas K7... Em um dos armários da casa da Bertha, encontramos quase toda a obra cinematográfica do Noel em película, inclusive filmes inéditos que fazem parte de ‘O índio cor de rosa contra a fera invisível’. Muita coisa estava perdida, impossível de restaurar. Mas havia muito material em perfeito estado. Digitalizamos tudo o que foi possível em 4K na Cinemateca do MAM, que também foi uma parceira fundamental no processo de produção do filme. Esperamos que esse material todo, em alta qualidade, possa estar em breve disponível para consulta na Casa de Oswaldo Cruz.
Com esse rico material em mãos, ainda precisávamos sonorizar os arquivos. Para isso foi fundamental o trabalho da pesquisadora Julia Franceschini, que é antropóloga. Ela nos ajudou a identificar cada um dos povos que aparecem nas imagens realizadas pelo Noel e contactar cineastas indígenas que pertencem a esses povos para pedir a eles que enviassem cantos e sons das aldeias para reconstruirmos esses ambientes sonoros de uma maneira respeitosa.
VS - Sobre a relação de Nutels com o audiovisual. Outros médicos sanitaristas também mantiveram essa relação como os pioneiros Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. Que tipo de contribuições essa relação entre audiovisual e saúde pode trazer à sociedade?
TC - O Noel produzia essas imagens e as projetava em situações como a CPI do Índio para dar mais concretude aos seus relatos, à sua defesa do direito do povo à saúde. Na CPI do Índio, ele projeta, por exemplo, o filme ‘Pacáas Novos’, que mostra a maneira como a perseguição dos brasileiros a esse grupo produziu uma epidemia de fome que matou muita gente. E projeta também um filme que mostra um kuarup (um ritual de homenagem aos mortos) no território do Xingu, enquanto fala sobre como a vida dos povos indígenas depende do direito ao território. É uma forma de refletir sobre a realidade e de sensibilizar as pessoas e mobilizá-las para atuar e transformar o mundo. Acho que essa é uma característica das produções do Selo Fiocruz Vídeo, do catálogo da VideoSaúde como um todo, e também das produções da Banda Filmes.
VS - E a trilha sonora, tão poética e bela quanto as imagens, como foi o processo de composição?
TC - A seleção das canções que formam a trilha foi umas das muitas contribuições preciosas do montador Cláudio Tammela. O Cláudio buscou temas de compositores que tivessem uma vinculação forte com a questão indígena e também refletissem sobre a identidade brasileira. É o caso da obra do Guilherme Vaz, que faleceu em 2018, um sujeito vinculado à música concreta, aliado e admirador dos povos indígenas e velho amigo do Cláudio. Além do Guilherme Vaz, temos Carlos Gomes, Tom Jobim, Villa Lobos, Valmir Roza, o Quinteto Armorial e os flautistas kuikuro, entre outros. Essas canções ajudaram definir a forma do filme, na montagem tão bonita do Cláudio.
VS - O que as imagens do passado nos dizem hoje sobre a questão indígena?
TC - Acho que o próprio Noel responde a essa pergunta no filme de uma maneira muito assertiva: ‘O índio vem tentando pacificar o civilizado há 500 anos e até hoje não conseguiu’.
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