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Artigo propõe 'reboot' na pesquisa de produtos biomédicos em favor do interesse público


14/02/2022

Cristina Azevedo (Agência Fiocruz de Notícias)

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Um artigo na revista científica Nature, publicado nesta quinta-feira (10/2), defende a necessidade de “dar um reboot” na pesquisa e desenvolvimento (P&D) de produtos biomédicos em favor do interesse público global. Os autores - entre eles a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima - destacam que a inequidade no acesso aos frutos da pesquisa durante a pandemia de Covid-19 tornou ainda mais evidente a urgência de revisar e reorientar esse sistema. Isso acontece mesmo quando países de baixa e média rendas participam de ensaios clínicos, sem uma garantia de acesso ao produto final.

O artigo Reboot biomedical R&D in the global public interest é assinado por 19 pessoas de destaque no meio científico e de diferentes países, como a indiana Soumya Swaminathan, cientista chefe na Organização Mundial de Saúde (OMS); o francês Bernard Pécoul, diretor-executivo da Drugs for Neglected Diseases; o grego Christos Christou, presidente internacional dos Médicos sem Fronteiras; e Suerie Moon, dos Estados Unidos, codiretora do Global Health Centre.

Apesar dos avanços tecnológicos, os autores abordam quatro grandes preocupações no campo da pesquisa e desenvolvimento de produtos biomédicos. A primeira é a falta de medicamentos em áreas onde não há incentivos adequados para atrair o investimento privado, o que atinge diretamente as doenças negligenciadas relacionadas à pobreza. A segunda é o vagaroso progresso em algumas áreas, como em relação ao mal de Alzheimer. O texto cita ainda o risco de reações adversas. E, por fim, a dificuldade de acesso a tecnologias, causada por preços altos, produção insuficiente ou suprimento inadequado.

Apesar disso, a P&D em biomédicos se torna cada vez mais global, com crescimento de capacidade, investimento e redes em países de baixa e média rendas, pontua o artigo. E, com os mercados de medicamentos globalizados, pessoas em diferentes continentes pagam pela tecnologia em saúde - do próprio bolso ou por meio de seguros públicos e privados.

O artigo lembra que hoje a P&D é dirigida por interesses e investimentos públicos e privados. A pesquisa é conduzida tanto por instituições públicas quanto privadas; financiada por contribuintes, organizações filantrópicas, empresas, investidores e pacientes; e delineadas por agências e políticas públicas. Todos esses agentes deveriam ajudar a reorientar o sistema de P&D para melhor servir o interesse público global, defendem os autores. Para isso, deveriam responder a três perguntas: por que fazer P&D; como e para quem?

Prioridades

A resposta para a primeira pergunta é estabelecer e responder às prioridades nas necessidades da saúde, como novos antibióticos, e avançar no conhecimento. Sem isso, o mercado decidiria com base no maior lucro e no menor risco. Para se ter uma ideia, dos mais de 56 mil candidatos a produtos hoje em desenvolvimento, 57% são destinados a tumores cancerígenos, e apenas 0,5% são relativos a doenças tropicais negligenciadas, que afetam aproximadamente dois bilhões de pessoas. O artigo defende ainda que as prioridades sejam estabelecidas por meio de um processo transparente, inclusivo e adaptável, engajando a comunidade e levando em conta as necessidades dos pacientes. No entanto, essas prioridades são geralmente decididas pelos países doadores ricos.

Em resposta à segunda pergunta, o texto destaca que as pesquisas e desenvolvimento biomédicos devem ser éticos, sólidos, abertos e justos. E, embora existam regras para isso, na prática, nem sempre esse padrão é alcançado. Com a crescente terceirização de pesquisas e a globalização de ensaios clínicos, é necessária uma supervisão mais de perto a fim de gerenciar os riscos. O texto destaca ainda que a ciência aberta melhora a eficiência e acelera o progresso científico, ao compartilhar dados, processos e resultados. Mas a maioria dos ensaios clínicos não é informada a tempo, lembra.

A Covid-19, no entanto, permitiu avanços, como a publicação de protocolos de ensaios de vacinas, colaboração em larga escala e compartilhamento de dados por meio de iniciativas como a WHO Solidarity (da OMS) e UK RECOVERY, ressaltam os autores. Mas mudanças significativas nas regras e incentivos são necessários para assegurar o rápido compartilhamento de estudos, processos e resultados. É também crucial administrar a propriedade intelectual de forma a maximizar os benefícios sociais do conhecimento e não meramente gerar novas invenções.

Países de média e baixa renda que participaram dos estudos clínicos das vacinas contra a Covid-19, por exemplo, receberam menos doses per capita do que os de alta renda. Pesquisadores da África do Sul compartilharam o sequenciamento genômico da variante Ômicron, o que permitiu aos produtores iniciarem pesquisas para uma possível adaptação dos medicamentos e das vacinas já existentes, mas sem garantias de que esses produtos cheguem ao seu país. “Há uma clara inequidade global”, diz o texto, e “é necessária uma adoção mais ampla da ciência aberta e do compartilhamento de benefícios”. A Covid-19 mostrou ainda que o investimento em capacidade científica, regulatória e tecnológica deve ser uma prioridade política para os países independentemente de seu nível de desenvolvimento. 

Segurança e eficácia

Para a terceira questão, os autores destacam que as tecnologias sanitárias devem ser seguras, eficazes e de alta qualidade. As autoridades reguladoras devem colaborar mais para que essas tecnologias possam melhorar a saúde das pessoas em diferentes contextos globais. Isso inclui encontrar formas de compartilhar e receber dados de fora para reduzir atrasos. Uma revisão dos regulamentos para acelerar a aprovação emergencial de produtos encontrou mais de 50 caminhos em 24 países.

As agências reguladoras nem sempre exigem evidências de progresso terapêutico antes de conceder a aprovação, nem estudos suficientes de longo prazo são conduzidos após um produto ser comercializado. Em vez disso, elas deveriam exigir melhorias concretas, como maior eficácia, menor toxicidade e menos reações adversas, pontuam os autores. E deveriam ainda garantir o acesso de subpopulações, como crianças, idosos e possíveis gestantes.

“Reconhecemos que reorientar o sistema em direção ao interesse público é difícil”, diz o artigo. “Primeiro, não é fácil alinhar o nacionalismo com preocupações com a saúde global. Financiadores pagos por contribuintes em geral têm objetivos industriais, políticos e econômicos, assim como em ciência e saúde, bem como competitividade, criação de empregos e aumento das exportações. A competição entre nações, como testemunhado na corrida pelas doses de vacinas contra a Covid-19, pode prejudicar o desejo de cooperar.”

Checklist

Ainda assim, acordos internacionais podem estruturar a cooperação para responder à necessidade de cada país. Interesses públicos e privados nem sempre andam lado a lado. A Covid-19, no entanto, demonstrou que financiamento público e gestão podem reduzir os custos e riscos da P&D arcados pelo setor privado, tornando mais viáveis, por exemplo, o acesso ou a transparência dos dados. Compartilhar conhecimento ou tecnologia é mais realista, embora não garantido, quando coproduzido pelo setor público e o privado.

O texto propõe ainda uma checklist, uma lista com nove pontos em que todos os atores deveriam colaborar. Eles vão de priorizar a saúde pública por meio de processos transparentes e inclusivos a investimentos de longo prazo para fortalecer a capacidade científica, tecnológica e regulatória em todos os países.

No artigo, os autores dizem ter procurado fornecer uma visão mais holística. “A Covid-19 expôs tanto as deficiências do sistema de P&D quanto ofereceu exemplos concretos de como podemos e devemos reorientá-lo para alcançar o interesse público global. A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 reconhece o direito do povo a compartilhar avanços científicos e seus benefícios. Se não agora, quando?”, finaliza o artigo.

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