06/07/2018
Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)
O Fórum Basta de Violência promoveu, nesta quinta-feira (5/7), no Centro de Artes da Maré, o evento Perturbando o Juízo – Outra Maré é Possível, que teve como objetivo pressionar o governo do Estado do Rio de Janeiro para o cumprimento de Ação Civil Pública que foi conquistada na Justiça pelos moradores da comunidade, junto à Defensoria Pública, em caráter liminar, em julho de 2017. A ação tem como meta ordenar a atuação policial na Maré, de forma que as operações preservem a vida, o funcionamento de escolas, postos de saúde, estabelecimentos comerciais e demais instituições. O evento contou com a presença de mães de vítimas da violência, do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), da Defensoria Pública do Estado, de pesquisadores que estudam o tema e da presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima. Para decepção dos organizadores, a Secretaria de Segurança Pública e as polícias Civil e Militar, convidadas, não enviaram representantes.
Evento teve como objetivo pressionar o governo do Estado do Rio de Janeiro para o cumprimento de Ação Civil Pública que foi conquistada na Justiça pelos moradores da comunidade (foto: Pedro Linger)
“As duas últimas operações policiais na Maré são uma síntese do que a gente não quer para a garantia do direito à segurança pública, inclusive dos moradores de favela. Não se faz segurança pública com violações de direitos. Ter um helicóptero blindado num espaço denso como a Maré, atirando de cima, só aumenta a quantidade de vítimas fatais, casas alvejadas e crianças em pânico nas escolas. Acreditamos que o estado pode agir com inteligência, que é inclusive o que está previsto na Ação Civil Pública que ganhamos”, afirmou a pesquisadora Shyrlei Rosendo, moradora da Maré, mobilizadora da Redes da Maré e integrante do Fórum Basta de Violência.
Na decisão favorável à Ação Civil Pública, a Secretaria de Segurança ficou responsável por entregar, num prazo de 180 dias, um Plano de Redução de Danos das operações, o que não foi cumprido. Em resposta, o Fórum Basta de Violência, por meio de consulta pública com os moradores, elaborou seu próprio documento e o entregou à pasta em janeiro deste ano. Na ocasião, obteve como resposta, do então secretário Roberto Sá, que o órgão faria contato, o que não ocorreu. Desde então, o Rio de Janeiro sofreu uma intervenção federal na segurança pública que, na avaliação do Fórum, não surtiu efeito na redução de crimes e no fortalecimento da garantia de direitos.
Além da implementação do Plano de Redução de Danos, estão previstas na Ação Civil Pública ações como a presença obrigatória de ambulâncias em todas as operações policiais que contem com efetivo superior a cinco profissionais; a instalação de câmeras de vídeo, aparelho de áudio e sistema de GPS em viaturas, e a designação de superior hierárquico para monitorar, por meio dos aparelhos, o andamento das operações; e a coibição de invasões domiciliares com base em denúncias anônimas. No Plano de Redução de Danos apresentado à Secretaria de Segurança estão previstas medidas de transparência, como a elaboração de um protocolo de ação que siga as normas dos direitos humanos e constitucionais; a limitação da realização de operações policiais apenas no horário de 6h às 18h; e a inclusão, no programa de metas da Secretaria de Segurança, da redução do número de homicídios decorrentes de intervenção policial.
“Este debate é muito importante para a Maré. O que estamos pedindo é que a política de segurança pública seja construída com base no valor da vida, e que seja feita com inteligência e transparência. Também convidamos moradores de outras favelas, pois se nós conseguimos uma vitória com a Ação Civil Pública para garantir nossos direitos, todos podem conseguir”, disse Shyrlei.
"Somos aliados da Maré na luta pela cidadania e a paz e repudiamos essa violência que vitima pobres e negros", afirmou a presidente da Fiocruz no evento (foto: Pedro Linger)
A presidente da Fiocruz iniciou sua participação no evento ressaltando que a Fundação “é contra a ideia de que haja uma guerra em curso, porque guerra é vale tudo. Estamos aqui para reafirmar o primado da defesa da vida e dos direitos humanos, incluindo o direito à saúde, à moradia e à educação. Estamos neste território e somos solidários às famílias que têm perdido parentes e queremos ecoar as vozes dessas pessoas. Somos aliados da Maré na luta pela cidadania e a paz e repudiamos essa violência que vitima pobres e negros. Todos somos vítimas, porque o medo é inimigo da democracia. A Fiocruz está à disposição da comunidade, que queremos ouvir”.
Wânia Moraes, mãe do adolescente Jeremias Moraes, morto na Maré aos 13 anos, em fevereiro, após ser baleado durante uma operação da Polícia Militar na Maré, participou do evento e se pronunciou. Muito emocionada e com dificuldade para falar, ela lembrou que o filho evangélico queria ser pastor ou jogador de futebol. "Quantas mães estão passando por isso? A gente vê a televisão e acha que nunca vai acontecer com a gente. Mas aconteceu comigo e, infelizmente, não vai demorar para outra mãe sofrer essa dor. Meu filho de 9 anos não pode ouvir um barulho que se joga debaixo da cama. Que Deus dê forças a todas as famílias que passam por isso”. Em memória do adolescente, a Prefeitura do Rio inaugurou a Clínica da Família Jeremias Moraes da Silva, na comunidade Nova Holanda, na Maré.
Bruna Silva, cujo filho, Marcos Vinicius, de 14 anos, foi atingido por um disparo quando estava a caminho da escola durante uma operação policial na Maré, em junho, disse que é preciso fazer “do luto, uma luta”. Ela disse que gostaria de perguntar às autoridades que não compareceram ao evento o motivo de tanta violência contra os moradores. “Eles não prendem, matam. Eu vou a Brasília, falar na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Vou levar a blusa e a mochila do meu filho, que guardo ensanguentadas”.
O evento contou com a presença de mães de vítimas da violência (foto: Pedro Linger)
Daniel Lozoya, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o único que compôs a mesa das autoridades – que em sua maioria não apareceram – disse que a defesa dos direitos dos moradores da Maré exige a transparência das ações policiais. “A mobilização da comunidade é o único caminho para combatermos as múltiplas violações de direitos humanos e o extermínio da população. Na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 25% das mortes são provocadas pela PM, o que já é um número absurdo. Nas comunidades esse percentual sobe para 50%. Esta mesa vazia de autoridades explica muita coisa, principalmente que não existe diálogo”.
A antropóloga Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense, observou que a política de segurança tem que ser aquela que a comunidade quer. “Do contrário caímos numa lógica predatória. A cidade é, precisa ser, de todos. Seja a Maré, o Leblon ou Botafogo”. A pesquisadora também recusa o conceito militar: “Em uma guerra existe socorro e proteção aos civis, o que não vemos no Rio. Aqui a política de segurança é feita pelos senhores e mercadores da guerra, que não sentem dor ou compaixão. A polícia foi inventada para reduzir riscos e inseguranças. No entanto, não é o que vemos no Rio”.
O deputado Marcelo Freixo fez uma curta intervenção, na qual afirmou que não se pode aceitar a naturalização da violência nas comunidades. “Em Botafogo são 4 homicídios por 100 mil habitantes, em média. Em Queimados são 140 por 100 mil habitantes. Essa situação não pode continuar”.
Ao fim do evento, os organizadores decidiram fazer uma carta de protesto pelo não comparecimento das autoridades da área de segurança. A carta será enviada aos órgãos que não enviaram representantes e encaminhada à imprensa.
A íntegra do Plano de Redução de Danos pode ser acessada aqui.