07/11/2014
Por Maíra Menezes/ IOC
Um estudo coordenado pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) aponta para a necessidade de ações de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) voltadas para homens que fazem sexo com homens – grupo conhecido como HSH. Publicada na revista científica Plos One, a pesquisa encontrou altas taxas de infecções em um grupo de cerca de 600 voluntários da cidade de Campinas, em São Paulo. O levantamento revelou que 40% deles já tinham sido expostos a pelo menos um dos dois tipos de HPV (papilomavírus humano) mais associados a alguns tipos de câncer. Além disso, 8% foram diagnosticados com HIV – um percentual quase 20 vezes maior que o encontrado na população brasileira em geral – e 11% já haviam sido infectados com hepatite B – uma prevalência aproximadamente dez vezes acima da média para a região pesquisada. Clique aqui para acessar o artigo.
Para traçar um panorama fiel das doenças sexualmente transmissíveis entre HSH, o estudo envolveu cientistas de seis laboratórios do IOC/Fiocruz, que integram a área de pesquisa em DST. Também colaboraram pesquisadores do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), do Laboratório Municipal de Patologia Clínica de Campinas e da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Além de HPV, HIV e hepatite B, o grupo investigou a ocorrência de hepatite C e infecção pelo vírus HTLV. O esforço conjunto conseguiu detectar que mais da metade dos voluntários tinha pelo menos uma infecção e quase 30% apresentavam uma sobreposição de duas ou mais DSTs. “Nesse grupo de difícil acesso para pesquisas, conseguimos estudar diversas infecções unindo as especialidades dos diferentes laboratórios”, destaca a virologista Selma Gomes, pesquisadora do Laboratório de Virologia Molecular do IOC e coordenadora da pesquisa.
O trabalho contou com uma metodologia especial para recrutar voluntários. Trinta homens, incluindo ativistas de organizações LGBT e frequentadores da Parada Gay de Campinas, foram chamados pelos pesquisadores a participar do estudo e convidar outros três voluntários. Durante um ano, cada novo participante indicou até três indivíduos para a pesquisa, em uma estratégia de amostragem conhecida como recrutamento dirigido pelo participante, similar a uma ‘bola de neve’. “Essa metodologia tem se mostrado eficiente para acessar populações cujos comportamentos são estigmatizados, pois a captação é feita pelos próprios pares, que conseguem localizar melhor estes indivíduos”, explica a epidemiologista Adriana Pinho, pós-doutoranda do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde do IOC.
HIV: 5% de novas infecções ao ano
A alta frequência do HIV entre HSH é um resultado que vem se repetindo em diversas pesquisas realizadas nos últimos anos. No entanto, o estudo coordenado pelo IOC foi além deste resultado, mostrando como o vírus está avançando entre os HSH. As pesquisadoras Mariza Morgado, chefe do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC, e Sylvia Teixeira, do mesmo laboratório, utilizaram técnicas mais sofisticadas de análise laboratorial para identificar os pacientes com infecção recente. As cientistas verificaram que mais de um quarto dos soropositivos tinha contraído o vírus há menos de seis meses, apontando para uma taxa anual de infecção de quase 5%. “Isso significa dizer que cinco em cada cem pessoas deste grupo estão contraindo o vírus por ano. É uma incidência muito alta”, avalia Mariza. “O recrudescimento da Aids nesta população é um fenômeno que está ocorrendo em grandes capitais do mundo. De certa forma, é como se a doença voltasse a ter um perfil semelhante ao começo da epidemia, nos anos 1980, quando homens que fazem sexo com homens foram os mais atingidos nos países desenvolvidos”, acrescenta.
Vacina pode ser estratégia contra HPV
Reconhecidos como um risco para as mulheres pela associação com o câncer do colo do útero, os vírus HPV-16 e HPV-18 também são uma ameaça para os homens. Segundo a pesquisadora Alcina Nicol, do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas Médicas do IOC, o HPV-16 é responsável por cerca de 40% dos casos de câncer de pênis, e os dois vírus (HPV16 e HPV-18) estão associados a 90% dos tumores de ânus e 24% dos casos de câncer de garganta. O estudo recém-publicado é o primeiro a contar com exame de sorologia para HPV em voluntários HSH no Brasil. Este tipo de teste detecta anticorpos contra a doença, indicando que o indivíduo já teve contato com o vírus, independentemente da presença de lesões, que podem ainda não ter aparecido ou já terem sido curadas. A pesquisa apontou que 32% dos participantes já tinham sido expostos ao HPV-16 e 20%, ao HPV-18. “Nosso estudo sugere que os homens também poderiam se beneficiar da vacina contra o HPV no Brasil. Além de reduzir o risco de câncer anal e peniano, a imunização masculina ajudaria a interromper a transmissão do vírus para as mulheres”, pondera a pesquisadora, lembrando que Estados Unidos, Canadá e Austrália estão entre os países que recomendam a vacina para meninos.
Baixa proteção contra hepatite B
No caso da hepatite B, além do alto índice de infecção, a pesquisa apontou um baixo nível de proteção, apesar da disponibilidade da vacina para a doença. A imunização é oferecida gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 1998. Atualmente, ela está disponível para toda a população até 49 anos e sem limite de idade para os grupos com maior vulnerabilidade, o que inclui os HSH. No entanto, a análise de anticorpos realizada indicou que apenas um terço dos voluntários estava protegido contra este vírus. “É um resultado negativo considerando que a vacina contra a hepatite B existe há cerca de 30 anos. Talvez falte divulgar melhor a informação para os homens que fazem sexo com homens”, afirma Selma Gomes. “No site do Ministério da Saúde, os HSH são apresentados como um dos públicos-alvo da imunização, mas poderia haver campanhas de conscientização específicas para este grupo”, reforça Caroline Soares, também pesquisadora do Laboratório de Virologia Molecular do IOC.
Hepatite C e vírus HTLV exigem ações diferenciadas
Aproximadamente 1% dos voluntários foram diagnosticados com hepatite C e 1,5%, com o vírus HTLV. As taxas são semelhantes às observadas na população em geral. Segundo os cientistas, este resultado pode ser explicado pelo fato de que, embora estejam incluídas no grupo das DSTs, estas duas infecções raramente são transmitidas durante relações sexuais.
Dos sete pacientes com hepatite C, seis declararam uso de drogas. A chefe do Laboratório de Hepatites Virais do IOC, Elisabeth Lampe, que realizou a análise das amostras juntamente com a pesquisadora Lia Lewis, do mesmo laboratório, diz que este resultado aponta para uma das principais vias de disseminação da doença atualmente: o uso drogas injetáveis. “A hepatite C é transmitida sobretudo pelo contato sanguíneo. Após a instituição da triagem para a doença nos bancos de sangue, em 1993, as transfusões deixaram de ser um problema. Porém, o uso de drogas injetáveis mantém o vírus em circulação”, afirma ela. A cientista ressalta ainda que todos os pacientes diagnosticados com hepatite C no estudo tinham outras DSTs associadas. “Os usuários de drogas costumam ter menos cuidados com a saúde do que outros grupos. Além disso, o contato sanguíneo pode transmitir outros vírus, como HIV e hepatite B”, explica Elisabeth, acrescentando que campanhas para evitar o compartilhamento de seringas e agulhas são a principal forma de prevenção neste caso, já que não existe vacina para a hepatite C ou o HIV.
Já o vírus HTLV foi diagnosticado em oito participantes do estudo. Apesar de pouco conhecido, estima-se que ele infecta entre 500 mil e 2 milhões de brasileiros, mas apenas cerca de 5% deles desenvolvem doenças por causa da infecção. Neste caso, as mais comuns são a mielopatia associada ao HTLV, as dermatites e o linfoma. A pesquisadora Ana Carolina Vicente, chefe do Laboratório de Genética Molecular de Micro-organismos do IOC, esclarece que o HTLV pode ser transmitido por relações sexuais e compartilhamento de agulhas, mas a forma mais frequente de contágio é pelo aleitamento materno. “Durante a amamentação, células de defesa da mãe são transferidas para o filho e entre estas células estão os linfócitos, que são infectados pelo HTLV”, explica. Segundo a pesquisadora, desde 1992, os bancos de sangue do Brasil realizam a triagem para o HTLV e, por isso, não há risco nas transfusões sanguíneas. Para prevenir a transmissão da infecção para os recém-nascidos, a medida mais importante é o teste para diagnóstico durante a gravidez. “Em alguns estados esse procedimento já é previsto em lei, mas não há legislação obrigando a realização do exame em todo o país. Quando o HTLV é diagnosticado na gestante, ela deve ser aconselhada a não amamentar”, afirma a geneticista.