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Roda de conversa discute raça, gênero e classe na literatura em Manguinhos

Mulher sendo entrevistada

10/12/2018

Por: Luiza Gomes (Cooperação Social da Fiocruz)

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Quais seriam os cânones da literatura contemporânea quando o assunto é raça, gênero e classe? Motivados por movimentar esse campo e forjar algumas respostas, o Bando Editorial Favelofágico – área editorial do Ecomuseu de Manguinhos/Redeccap – realizou no último dia 29 o 4º Seminário Literatura no Dente, no Espaço Casa Viva, na favela de Vila Turismo, na Zona Norte do Rio de Janeiro. A iniciativa contou com apoio da Cooperação Social da Fiocruz e participação de Renato Farias, apresentador do programa Unidiversidade do Canal Saúde, que gravou uma edição durante o evento. O programa irá ao ar no dia 31 de dezembro, às 10h30. 

Em formato de roda de leitura com escritores, universitários, lideranças sociais e contadores de histórias de regiões periféricas, o grupo discutiu a formação da identidade negra, feminina e de populações marginalizadas nas obras O Sol na Cabeça, de Geovanni Martins; Insubmissas Lágrimas de Mulheres, de Conceição Evaristo; e Entre o Mundo e Eu, do autor negro norte-americano Ta Nehisi Coates.

Desde a sua primeira edição, como parte da Agenda Cultural Mandela Vive em 2015, o seminário Literatura no Dente instiga a reflexão sobre a literatura ser um direito humano, e sobre as características excludentes da produção editorial no Brasil.

Insubmissas lágrimas de mulheres
“É preciso narrarmos a nós mesmos constantemente”, disse Grace Ellen, atriz e contadora de histórias na RedeCCAP – organização comunitária há 30 anos atuante em Manguinhos. Com o livro Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo, nas mãos, destacou um trecho do livro.  

“A moça, que me ensinou a ler, me ensinou outras coisas, mas nunca me perguntou nada sobre o tempo antes de eu chegar ali. Eu tinha um desejo enorme de falar de minha terra, de minha casa primeira, de meus pais, de minha família, de minha vida e nunca pude. Para eles, era como se eu tivesse nascido a partir dali. Todas as noites, antes do sono me pegar, eu mesma me contava as minhas histórias, as histórias de minha gente. Mas, com o passar do tempo, com desespero, eu via a minha gente como um desenho distante, em que eu não alcançava os detalhes.” (Conto Maria Imaculada do Rosário, Insubmissas lágrimas de mulheres da autora Conceição Evaristo, editora Malê, 2017)

Em sua fala, Grace reforçou a importância de que sejam preservadas as memórias individuais e coletivas, especialmente quando os sujeitos vivem sob condição de alguma vulnerabilidade social. “Quando esses autores, como a Conceição e Geovani, escrevem a partir de sua vivência, outras pessoas podem ler e se identificar. É importante que essas histórias não se percam no tempo, que não sejam apagadas ou esquecidas”, afirmou. 

Mariana Araújo, da editora Mórula, vê na discussão sobre a falta de pluralidade das vozes representadas nos livros mais vendidos no circuito literário comercial um problema estrutural de acesso da população brasileira ao que o país produz artisticamente. “Isso se reflete no cinema, fotografia, literatura, artes plásticas. Sobre o livro da Conceição, dizem que fala muito com as mulheres. Eu discordo, acho que fala muito com os homens também. Temos que fugir do olhar mecânico para essa discussão. Se nós mulheres não estamos representadas, a sociedade brasileira não está representada”, argumentou.  

O Sol na Cabeça
Em sua estreia como escritor, Geovani Martins publicou neste ano O Sol na Cabeça pela Companhia das Letras. Nela, relata a adolescência e juventude de moradores de favelas cariocas. O livro foi comentado por Flora Tarumim, editora no Bando Editorial Favelofágico e produtora cultural. 

“Nessa obra, você traz personagens que são normalmente tratados como bidimensionais e secundários na tradição literária hegemônica para, enfim – e essa é a mudança positiva do livro - assumir as vozes narrativas das histórias. São personagens que usualmente são representados transitando pelo cenário, como o menor pedindo dinheiro, mas que nunca aparecem como atores da sua própria vida”, criticou. 

A formação da identidade da juventude que mora em favelas e periferias foi o objeto da fala de Renata Melo, moradora da Baixada Fluminense e doutoranda em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Nos contos do Geovani, o cenário constantemente se impõe sobre as divagações do indivíduo, que vive em estado de suspeição. Lemos ali a construção de um existencialismo, uma constante sensação de quase-morte e um conhecimento de si como alguém que está sempre na mira”, descreveu, tratando do personagem principal do conto Rolézin.

Entre o mundo e Eu
A discussão sobre racismo e a construção da masculinidade no homem negro contemporâneo foi o destaque do músico Thiago Kobe, a respeito do livro “Entre o mundo e eu”, de Ta-Nehisi Coates. Escrito todo na primeira pessoa, o livro é uma longa carta do autor-personagem endereçada a seu filho, um adolescente de 15 anos. Jornalista e ativista contra o racismo nos Estados-Unidos, com matérias de enorme repercussão durante o governo Obama, o protagonista do livro analisa a vulnerabilidade do corpo negro em uma sociedade em que a discriminação de raça assume expressão institucional. A obra trata tanto de questões educacionais, da sua circulação e de seus pares pela cidade de Baltimore – em convulsão pela violência urbana -, e outras implicações culturais e subjetivas de ser negro naquele país e tempo histórico. 

“Naquela época eu saia de casa, dobrava na avenida Flatbush e meu rosto ficava tão endurecido quanto a máscara facial de um lutador mexicano (...) Essa necessidade de estar sempre em guarda era um imensurável dispêndio de energia, uma lenta drenagem da essência. Contribuía para o rápido colapso dos nossos corpos. Assim, eu temia não só a violência deste mundo, mas as regras para protege-lo dela, as regras que o fariam contorcer o corpo (...) novamente para ser levado a sério pelos amigos, e contorcer novamente para não dar à polícia um pretexto” (Entre o mundo e eu, Ta-Nehisi Coates, Cia das Letras, 2015)

A atividade é apoiada pelo  Programa de Promoção de Territórios Urbanos Saudáveis da Cooperação Social da Fiocruz (PTUS), em que o eixo Território, Arte e Saúde discute a produção cultural como determinante social da saúde. O programa PTUS realiza assessoramento de organizações comunitárias e coletivos de territórios vulnerabilizados como estratégia para fortalecer o tecido social dessas localidades e contribuir para promoção da saúde. Está alinhado ao Programa Institucional de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Fiocruz.

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