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Radis de março destaca a trajetória de mulheres na ciência


11/03/2019

Por: Elisa Batalha (Revista Radis)

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Como amamentar e desenvolver pesquisa com o prazo batendo a sua porta, fazer valer sua voz onde seu corpo e biotipo são vistos como raros, circular no universo tradicionalmente masculino, provar excelência enquanto se esquiva de assédio e discriminação. Relatos como os das pesquisadoras Thais, Edenia, Nísia e Denise, ajudam a mostrar o que é ser mulher no ambiente acadêmico e em quais condições elas desenvolvem seu trabalho, essencial para o avanço do conhecimento.

As cientistas vêm ganhando espaço na pesquisa, e no Brasil, já assinam 49% dos artigos publicados em toda a academia. No topo da carreira e em áreas tecnológicas e exatas, no entanto, elas ainda estão em desvantagem numérica. Única mulher a ganhar dois prêmios Nobel em áreas distintas — Química e Física —, Marie Curie é até hoje referência em todo o mundo. De um total de 904 pessoas agraciadas com a premiação desde 1901, apenas 51 são mulheres. Para aumentar as referências femininas e incentivar as gerações mais jovens, é preciso reduzir as inequidades da sociedade que atrasam a carreira ou mesmo impedem o ingresso de novos talentos. Por meio de suas próprias trajetórias, os perfis mostrados a seguir contam porque é importante que mais mulheres estejam presentes em todos os espaços de produção de ciência.

Acima do teto de vidro

Primeira presidenta da Fiocruz, Nísia Trindade Lima é uma pessoa considerada “afável”. E isso, ela reconhece, chegou a ser apontado como um aspecto negativo de sua personalidade, que não contribuiria para exercer o posto que ocupa, por não corresponder ao estereótipo de um perfil de liderança agressiva, atributo considerado “masculino”. “Eu vejo que a minha posição, o lugar de autoridade, de mando, muitas vezes é associado com um lugar masculino, em uma visão que confunde autoridade com autoritarismo. Trata-se do imaginário sobre esses lugares de autoridade e de poder”, avaliou, quando abriu espaço na agenda para conversar com a Radis.

Estar no mais alto cargo de uma instituição tradicional de pesquisa com quase 120 anos de história é visto por ela como expressão “do reconhecimento de toda uma comunidade”. Para a socióloga e pesquisadora da história da ciência, é importante que o sistema de eleição da instituição em que atua há mais de 30 anos — com participação de todos os servidores e posterior confirmação da presidência da República — seja valorizado, por ser democrático e garantir maior diversidade. “O sentimento maior para mim é de gratidão pela confiança depositada, mas também o de responsabilidade”, conta ela, que assumiu o cargo em 2017.

Quanto à experiência na presidência, ela diz que o principal desafio tem sido atravessar a situação de crise no país. “Por outro lado, estou lidando com a imagem positiva que a instituição tem junto a sociedade, o seu capital simbólico, o seu reconhecimento pelas ações realizadas em prol do Sistema Único de Saúde ao longo dos últimos trinta anos”.

Nísia é uma exceção no país, por ser mulher e estar ocupando um cargo de liderança em uma instituição de pesquisa científica. As mulheres são maioria na população brasileira, e no ensino superior no país, há 27 anos, de acordo com o IBGE. Representam 49% das bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a principal agência de fomento à pesquisa no Brasil. Mas, a ascensão na carreira esbarra no chamado “teto de vidro” — a barreira invisível que impede mais mulheres de crescer na profissão e alcançar cargos mais altos.

As diferenças ficam bem claras quando observamos os números. Nas bolsas de iniciação científica, 59% são mulheres, já nas de produtividade, as mais prestigiadas, com financiamento maior, a parcela feminina cai para 35,5%. Dentro deste grupo, ainda há as bolsas 1A, as mais altas. Só 24,6% dos que recebem esse tipo de financiamento são mulheres, de acordo com os dados da própria agência. Existem ainda carreiras inteiras em que a predominância numérica masculina é muito maior, como nas áreas exatas e tecnológicas.

Nas universidades federais brasileiras, há apenas 28,3% de mulheres como reitoras. São 19 entre os 63 reitores, de acordo com o levantamento de 2017 feito pela pesquisadora Anelise Bueno Ambrosini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Na Academia Brasileira de Medicina, apesar de as mulheres serem maioria entre os formandos (em torno de 55%), há apenas cinco mulheres entre os 115 membros, o que representa 4,3%.

A desigualdade de gênero na ciência não é exclusiva do Brasil. Dados do relatório Women in Science publicado em 2018 pela Unesco mostram que 28,8% dos pesquisadores do mundo são mulheres. As mulheres publicam menos artigos, têm menos colaborações internacionais, menor mobilidade acadêmica, atuam mais em pesquisas interdisciplinares e apenas 14% são inventoras listadas em patentes.

No mercado de trabalho como um todo, conforme lembra Nísia, há uma tendência a uma conquista de igualdade salarial entre homens e mulheres, mas ainda entre executivos persiste uma desigualdade. “O ingresso de mulheres em determinadas profissões infelizmente é acompanhado de uma desvalorização, como na enfermagem. Muitas profissões foram feminilizadas, e historicamente isso aponta para tensões. Isso aconteceu historicamente também com a profissão de professor, que inicialmente era composta na maior parte por homens”, comenta.

Gênero e ciência

Nísia lembra que ela vem de uma área profissional, as ciências sociais, onde a presença das mulheres é grande. “Faço parte de Associação Brasileira de Saúde Coletiva, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, organizações que já tiveram muitas mulheres na presidência, e também nas coordenações de grupos de trabalhos”, enumera, lembrando que o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea teve como primeira diretora de pesquisa Celina Vargas, em 1973, mulher cuja atuação recebeu muito destaque no Arquivo Nacional, e que também esteve à frente da Fundação Getúlio Vargas, na década de 1990. 

Mesmo tendo mulheres de destaque em sua área como referência, Nísia não escapou de sofrer discriminação. “Minha escolha pelas ciências sociais na família foi vista como não muito adequada, porque eu era boa aluna, então deveria fazer o que se achava que seria uma carreira mais valorizada, com maior apelo e remuneração. Ouvi de familiares que eu ‘podia fazer essa escolha porque eu ia me casar´”, relembra.

Casamento e casais de pesquisadores, aliás, hoje são um tema para estudo na área da sociologia histórica, dentro da história da própria Fiocruz como instituição, e na história do país, conforme lembra Nísia. “Há uma questão muito interessante e até é preciso incentivar mais pesquisas sobre casais de cientistas, que não necessariamente eram relações de dominação”. Isso pode ajudar a desmistificar a figura da “mulher por trás do grande homem” no imaginário social. Segundo ela, essa é a imagem pública de alguns casais, “até porque se atribui mais visibilidade aos homens, e muitos deles ocupavam cargos públicos além de serem cientistas”.

Ela cita Darcy Ribeiro e Berta Ribeiro. “Berta também foi uma grande antropóloga”, destaca. “Casos como esse merecem ser investigados. Muitas mulheres cientistas estavam ali, lado a lado com pesquisadores homens. Algumas conseguiram ser reconhecidas individualmente, como a parasitologista Maria Deane [esposa de Leônidas Deane]. Ela teve uma luz própria, era uma mulher muito forte inclusive e é sintomático que tenhamos um instituto chamado Leônidas e Maria Deane”, aponta Nísia, se referindo a unidade Fiocruz Amazônia, em Manaus.

Hoje, gênero e ciência conformam um campo de estudos que vai além de se compreender o que está por trás das inequidades nas estatísticas. “Na ciência, vemos na linguagem a expressão de signos do universo masculino como o combate, a conquista, a caça”, aponta Nísia, discordando da ideia de que haja “uma ciência feminina” ou “um modo feminino de se fazer ciência”. “É uma questão em aberto, não pode ser vista de uma maneira simplificada. Há uma interferência da experiência, no modo de fazer ciência, o lugar de fala demarca que não existe um pensamento desvinculado da experiência, da existência. Isso não significa que eu só posso falar da minha experiência imediata. É claro que a experiência marca a sua visão, a sua linguagem”, discorre, lembrando que “a ciência não é uma atividade neutra”.

Para Nísia, a ampliação do acesso e a democratização dos espaços na ciência e nas instituições científicas passam por questões culturais, “que dependem de uma pedagogia, de um trabalho muito intenso, daí a importância de comitês de equidade que ajudam a trazer uma maior conscientização”.

Equidade e diálogo

A iniciativa que ela faz questão de reforçar, na sua gestão como presidenta, é a maior centralidade conferida ao Comitê para Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz, que já existia desde a gestão anterior. Para ela, é preciso olhar para o que hoje se chama agenda identitária, considerando as desigualdades sociais, mas também de gênero e raça, presentes no país. “Nos editais de pesquisa, há artigos que preveem contagem de tempo diferenciada para mulheres que tiveram filhos. Nem todas as mulheres querem ter filhos, e não se deve confundir a mulher com a mãe, mas para que possamos exercer todos esses papéis é muito importante que haja uma política pública adequada”, afirma, apontando ainda que a agenda feminista foi quem trouxe para o país a demanda das creches, do apoio no cuidado com os filhos e a defesa do tempo de amamentação recomendado para as trabalhadoras.

“Não causava estranhamento até há poucos anos haver apenas três mulheres no Conselho Deliberativo [maior instância de decisão] da Fiocruz; hoje já causa. Isso é um avanço. Na composição de mesas, de seminários, a gente também já passa a estar atento a isso”, comenta.  Ela reconhece também o que a sua figura representa para mulheres e meninas mais jovens. A mensagem que procura deixar é de respeito e dignidade. “A mulher não pode admitir não ser valorizada, ser desrespeitada, nós não podemos nos calar diante de qualquer discriminação que aconteça ao nosso lado. É preciso ter respeito à diversidade. Você não tem que padronizar, escolher se encaixar no estereótipo da intelectual, que seria de uma absoluta seriedade, contenção no comportamento. Não é preciso criar uma imensa distância social das pessoas para exercer um cargo”, reflete.

Nísia conclui que a equidade de gênero é uma das questões centrais para construção de uma sociedade mais justa. E isso, segundo ela, é possível alcançar mediante diálogo, articulando a racionalidade com a afetividade. “Precisamos pensar em um mundo que preze valores do diálogo, da construção democrática. Isso deve ser uma luta de homens e de mulheres”.

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