28/01/2016
Por: Raíza Tourinho & Graça Portela (Icict/Fiocruz)
A família da agricultora Marineide Castro está recomeçando. Ela, que foi “nascida e criada na agricultura orgânica”, teve que desistir por cinco anos de plantar alimentos sem agrotóxicos por falta de apoio e assistência, após os pais saírem da fazenda em que trabalhavam.
“Não tinha ninguém que plantava produtos orgânicos na região e não achávamos a quem vender. Quando tentamos vender na rua, a fiscalização não deixou. Daí começamos a praticamente a dar de graça para os atravessadores: vendia o quilo do feijão, do milho e do quiabo orgânicos por R$ 0,50. Não íamos deixar desperdiçar. Não tínhamos apoio de ninguém. Os amigos nos diziam: larguem de ser bobos, vão ficar sofrendo”, relata.
Sua família, que até hoje arrenda a terra para trabalhar [uma espécie de aluguel, situação extremamente comum entre os pequenos produtores], chegou a pagar por um pedaço de roça, que nunca existiu. Sem dinheiro e perspectiva, por fim, eles se renderam ao uso dos insumos químicos. Mas o resultado foi desastroso: seu pai faleceu, após desenvolver um câncer de pele e uma infecção respiratória provocada pela exposição desprotegida ao agrotóxico. Marineide voltou para a prática orgânica, mas um cunhado, que continuou com a prática convencional, quase morreu. Após sofrer uma intoxicação aguda (com alergias, desmaios e vômitos) há um ano, ele luta contra um hematoma no fígado.
“Infelizmente, isso serviu de exemplo: o veneno fazia com que a gente produzisse mais quantidade, também o custo diminuía, porém, a gente gastou muito com meu pai – e não tivemos resultado. E hoje estamos gastando muito com o meu cunhado e ele quase faleceu, mas, graças a Deus, voltou para a casa”, diz. Marineide agora está começando a buscar apoio do Projeto PAIS – Produção Agroecológica Integrada e Sustentável, e não perde a esperança de que os filhos e irmãos agricultores que foram para a cidade, e estão “passando necessidade”, voltem um dia para o campo. “Não tem sido fácil produzir orgânico para a gente. Mas vamos conseguir”.
Sinais do modelo
Situações semelhantes às que a família de Marineide viveu fazem parte da rotina de milhares de trabalhadores rurais no Brasil. “O uso massivo de agrotóxicos está diretamente relacionado com a doença. As pessoas que produzem no campo estão todas contaminadas”, afirma Maria Kazé, da coordenação nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA.
A pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Cesteh/Ensp/Fiocruz) Karen Friedrich afirma que a contaminação por agrotóxicos é generalizada. “[O trabalhador] é exposto através de uma mistura de agrotóxicos e em quantidades muito elevadas. Quando ele aplica numa lavoura, muitas vezes aplica mais de um agrotóxico ou então ocorre a pulverização aérea e quem mora ali perto também recebe essa grande carga de agrotóxicos. Além disso, quem está na cidade ingere o alimento com algumas dezenas de diferentes agrotóxicos, às vezes em um único alimento”, explica.
Casos de óbito por agrotóxicos, como o do pai de Marineide, sinalizam o esgotamento de um modelo de produção agrícola subsidiado pelo estado brasileiro, segundo a pesquisadora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFCE), Raquel Rigotto. Ela diz que esses casos “exprimem de uma forma muito forte a falência na garantia do direito constitucional à saúde e uma análise mais aprofundada vai nos mostrar que isto está relacionado a uma cadeia de violações que se inicia desde o modelo de desenvolvimento agrícola adotado nas políticas públicas brasileira no momento atual", enfatiza.
Rigotto elenca uma série de indicativos de que o Brasil vem optando pela manutenção e ampliação deste sistema, entre eles o financiamento público, através do BNDES, e as isenções fiscais e tributárias, concedidas pelo governo federal e por alguns estados. É o caso da redução de 60% para todos os agrotóxicos, na cobrança da alíquota do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), concedida através do convênio 100/97, e renovado 16 vezes. A última, em outubro, estendeu a validade do convênio até o final de abril de 2017. Em alguns estados, como o Ceará, a isenção fiscal chega a 100%. “Do nosso ponto de vista, é um escândalo na saúde pública produtos como esse não ter taxação”. A pesquisadora analisou ainda a dura realidade dos pequenos agricultores e dos trabalhadores rurais no país (veja um trecho da entrevista).
O estímulo aos agrotóxicos data de 1965, quando foi criado o Sistema Nacional de Crédito Rural, que vinculava à concessão de crédito agrícola à obrigatoriedade da compra de insumos agrícolas químicos pelos agricultores. Já no início dos anos 1970, o Banco do Brasil tornou obrigatório o direcionamento de 15% do valor dos empréstimos de custeio para a aquisição de agrotóxicos. Enquanto, em 1975, foi a vez do Programa Nacional de Defensivos Agrícolas financiar a criação de empresas nacionais e a implementação de subsidiárias de corporações transnacionais de agrotóxicos e fertilizantes. Atualmente, cerca de 130 empresas atuam no setor de agrotóxicos no Brasil, mas o mercado é controlado por dez multinacionais, que responderam juntas por 75% das vendas na safra de 2012/2013, segundo dados da Anvisa.
Nas entranhas do poder
A bancada ruralista é o nome oficioso dado ao grupo de políticos que atuam em defesa dos proprietários rurais, independentemente do partido. A maioria compõe a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), fundada formalmente em 1995, mas possui também outros parlamentares alinhados aos seus interesses. Ao menos 109 deputados e 17 senadores são membros da bancada ruralista, conforme contabilizou a publicação “Radiografia do Novo Congresso”, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). A própria Frente diz reunir mais de 200 parlamentares, de composição pluripartidária.
A FPA é combativa quando se trata das políticas em torno dos agrotóxicos. Um dos últimos lobbies bem-sucedidos do grupo foi a liberação do ingrediente ativo não registrado benzoato de emamectina, substância usada como agrotóxico emergencial contra a lagarta Helicorvepa amigera, considerada praga em diversas lavouras, como as de soja, milho e algodão. O benzoato teve o registro negado em 2007 pela Anvisa, por ser considerado tóxico ao sistema neurológico – em todas as pesquisas feitas, a substância causou efeitos neurológicos nas espécies testadas tais como tremores, redução da capacidade motora, dilatação da pupila (midríase), alteração nos tecidos e degeneração neuronal.
No entanto, desde abril de 2013, o Ministério da Agricultura desconsiderou as negativas dos outros dois órgãos responsáveis pela liberação de agrotóxicos (Anvisa e Ibama) e decretou estado de emergência fitossanitária ou zoosanitária em todo o Brasil, permitindo a liberação do ingrediente ativo (veja as consideração finais do parecer técnico da Anvisa).
Mas o benzoato está longe de ser a maior ameaça à redução do uso de agrotóxicos no Brasil. Está em tramitação na Câmara de Deputados o Projeto de Lei 3200/2015, que revoga a atual Lei de Agrotóxicos, e cria um marco regulatório que facilita o registro, deixando-o nas mãos da Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários – CTNFito, cujos membros serão designados pelo Ministério da Agricultura.
Esta comissão deverá funcionar nos moldes da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, que até hoje não negou nenhum registro de semente transgênica no Brasil. Vale ressaltar que todas estas sementes liberadas no Brasil foram modificadas para serem tolerantes a herbicidas e/ou resistentes a insetos/vírus. Ou seja, na prática, representam mais agrotóxicos nas lavouras. Ao menos é o que diz o Dossiê Abrasco, citando o caso da introdução da Roundup Ready (RR), semente de soja transgênica produzida pela Monsanto, que fez com que “fosse necessário que a Anvisa aumentasse em 50 vezes o nível de resíduo de glifosato permitido no grão colhido”, informa o documento. A semente RR é resistente ao Roundup, agrotóxico à base de glifosato, também produzido pela multinacional americana.
Neste depoimento extraído do documentário Nuvens de Veneno (produção uma parceria da VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz, com a Secretaria de Saúde de Mato Grosso e a produtora Terra Firme, realizado em 2013), o agricultor Celito Trevisan fala sobre a dificuldade de se cultivar produtos orgânicos próximo a uma lavoura de transgênicos.
Até mesmo um programa de uma política federal de estímulo à produção familiar agroecológica já consolidada, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), corre o risco de não sair do papel devido a pressões políticas. Trata-se do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), adiado por tempo indeterminado às vésperas da última previsão de lançamento, em novembro.
O caso do Pronara
O Pronara foi considerado um avanço por ser o primeiro instrumento que obriga legalmente nove ministérios (Desenvolvimento Agrário, Saúde, Agricultura, Desenvolvimento Social, Ambiente, Trabalho e Emprego, Fazenda, Ciência e Tecnologia, Educação, além da Secretária Geral da República) a tomarem ações concretas contra os agrotóxicos. Apesar de ter sido elaborado com o aval do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o programa foi adiado após o pedido da ministra de Agricultura Kátia Abreu de rever o documento, elaborado na gestão do seu antecessor.
O Programa de Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara) foi aprovado em agosto de 2014, como parte da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, após meses de elaboração de um grupo de trabalho formado por diversos especialistas, vinculados a instituições de pesquisa e ensino, órgãos do governo e organizações da sociedade civil. O Programa é constituído por seis eixos: Registro; Controle, Monitoramento e Responsabilização da Cadeia Produtiva; Medidas Econômicas e Financeiras; Desenvolvimento de Alternativas; Informação, Participação e Controle Social e Formação e Capacitação. No total, são previstas 137 ações concretas que visam frear o uso de agrotóxicos no Brasil. Dentre elas, medidas como o fim da isenção fiscal, implantação de zonas livres de agrotóxicos e transgênicos e a reavaliação de produtos banidos em outros países.
O pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH) da Ensp/Fiocruz, Marcelo Firpo Porto, acredita que apesar das limitações do Programa, este é foi um avanço, “com pontos muitos estratégicos”. “A crise do atual governo federal, o aumento da pressão de grupos conversadores e a instabilidade do governo têm gerado retrocessos importantes em vários setores envolvendo a regulação dos agrotóxicos e avanço da agroecologia”, avalia.
No entanto, apesar da “tendência conservadora”, ele acredita que uma saída para acelerar os avanços propostos são as legislações municipais e estaduais. “Eu acho que a gente vai passar por uma onda em que os avanços vão continuar em lutas mais capilarizadas, em que é possível a realização por forças aglutinadas. Neste contexto, talvez seja possível a criação de zonas livres de agrotóxicos em alguns municípios e promovido por estados, principalmente em função da crise hídrica e da proteção de mananciais, que é um tema que ainda vai continuar por décadas no Brasil”.
Moradora do assentamento Zumbi dos Palmares, em Campos do Goytacazes (RJ), Viviane Ramiro, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ressalta a necessidade de que as políticas já consolidadas cheguem a todos os trabalhadores do campo, como Marineide. Segundo ela, há uma dificuldade de se obter políticas públicas favoráveis para os já assentados, inclusive de assistência técnica rural (ATER). “Se a nível federal estas políticas já estão se consolidando, a gente não percebe isso no nível local. São políticas que atendem apenas a uma minoria”, afirmou.
A presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) e professora da Universidade Federal de Viçosa, Irene Maria Cardoso, afirma que a Política Nacional de Agroecologia “está caminhando dentro das possibilidades que a sociedade brasileira construiu”: “A gente vai aprofundando e avançando com o tempo. É um processo. As coisas não acontecem de um dia para o outro. Então têm recuos”, diz.
Contudo, ela enfatiza a necessidade de lançar o Programa. “É uma questão urgente, porque ele nem coloca aquilo que a agroecologia de fato acredita: o banimento do uso dos venenos. Coloca uma proposta de redução, num processo de transição. A quantidade bruta de agrotóxicos no Brasil é a maior do mundo. Então, o Brasil vai continuar neste quadro? É isso que nós queremos: continuar envenenando as pessoas, as águas, os animais?”
Esta é a quinta reportagem da série “Agrotóxicos: a história por trás dos números”, realizada pelo Icict, com matérias sobre uso de agrotóxicos no Brasil. Os depoimentos dos agricultores colhidos nesta série de reportagens foram realizados na Caravana Agroecológica Sudeste - RJ.
Entrevista e pré-edição do áudio de Maria Kazé: André Bezerra/Ascom/Icict/Fiocruz
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