21/04/2022
Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)
O Observatório Covid-19 Fiocruz promoveu na quarta-feira (20/4) o webinar A pandemia Covid-19 em transição. O evento, que contou com a participação de pesquisadores do Observatório e de fora da Fiocruz, pôs em debate o aprendizado obtido com as análises dos cenários epidemiológicos da Covid-19 ao longo dos últimos dois anos e discutiu cenários possíveis daqui para frente, além de propor recomendações. Segundo o coordenador do Observatório, o pesquisador Carlos Machado, “a pandemia não acabou e seus riscos continuam presentes, de modo que a transição para as próximas fases deve vir acompanhada de planos e planejamento de curto, médio e longo prazos”. Segundo ele, as fases seguintes de transição da pandemia precisam deixar o país melhor preparado para as próximas emergências em saúde pública que vierem a surgir. Confira a íntegra do webinar, com todas as apresentações dos pesquisadores.
A primeira intervenção no debate foi da presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima. Ela destacou a importância do evento e afirmou que o Observatório Covid-19 Fiocruz se tornou uma referência sobre o assunto. “São dois anos de intenso trabalho e dedicação do Observatório, que levou, por meio de boletins regulares, informação de qualidade aos gestores dos três níveis de governo, à imprensa e à população, com as melhores evidências e análises produzidas por pesquisadores da Fundação”.
A presidente disse que é importante prestar atenção a quatro pontos que julga fundamentais. “É imprescindível investir permanentemente em ciência, tecnologia e inovação. A resposta à Covid-19 até foi rápida, mas para que isso ocorra é preciso ter base”. Ela também ressaltou que é necessária a descentralização da produção de vacinas, medicamentos e outros bens do setor da Saúde. De acordo com Nísia, outro ponto que merece relevância é o fortalecimento do sistema de saúde de proteção social. “Não pode existir uma visão isolada da tecnologia, que não tenha vínculo com o sistema de saúde e suas demandas”. Por fim, em tempos de guerra na Europa e em outras regiões do planeta, sublinhou a importância dos aprendizados no âmbito do multilateralismo. “Não sabemos ainda as implicações que o conflito terá no mundo e no sistema de saúde global”. Antes de encerrar, Nísia disse que o trabalho do Observatório Covid-19 Fiocruz mostra, mais uma vez, o valor da análise dos dados para as políticas públicas e reforça o compromisso da Fundação com a agenda da informação de qualidade e da transparência da pesquisa científica.
Em seguida, o coordenador do Observatório Covid-19 Fiocruz, Carlos Machado, fez uma breve introdução, baseada nas reflexões que foram feitas nos últimos meses e adiantou que serão realizados mais dois webinar em maio. Machado lembrou que ao longo da pandemia houve diferentes fases, combinando a singularidade de um vírus que se transforma muito rapidamente, dando como exemplo as variantes Alfa, Gama, Delta e Ômicron, com as características estruturais e conjunturais dos países e suas regiões, envolvendo desde as capacidades já existentes dos sistemas de saúde, como a de produção de vacinas e promoção de vacinação, até as medidas de vigilância e cuidados, incluindo as políticas governamentais e intersetoriais para o enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPIIN).
Ele disse que o cenário atual da pandemia é positivo e que a existência do SUS permitiu não só diminuir o impacto da pandemia como também avançar no processo de vacinação. No entanto, Machado salientou que “a pandemia não acabou e seus riscos continuam presentes, de modo que a transição para as próximas fases deve vir acompanhada de planos e planejamento, possibilitando uma passagem segura e de adequação às novas realidades, considerando, além do conjunto de atos normativos e diretrizes, a necessidade de se incluir os cuidados necessários para os impactos diretos trazidos pela emergência sanitária”. Entre esses cuidados ele incluiu a Covid Longa e os impactos indiretos que envolvem a necessidade de ampliar diagnósticos, tratamentos e hospitalizações que foram adiadas em função da pandemia, o que deixou um passivo imenso para o SUS, que necessitará de mais investimentos ao longo dos próximos meses e anos.
O coordenador do Observatório Covid-19 Fiocruz alertou que uma transição segura, que possibilite chegar ao fim da pandemia de Covid-19 e tornar o país capaz de enfrentar outras epidemias e pandemias não pode deixar de incluir um plano de políticas, estratégias e ações no curto, médio e longo prazos. “Isso requer não só o fortalecimento do SUS e suas instâncias de gestão participativa, como o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, mas também a ampliação de investimentos em ciência, tecnologia e inovação, no Complexo Econômico e Industrial da Saúde (vacinas, insumos, EPIs), a vigilância em saúde, incluindo a vigilância genômica, a ampliação e o fortalecimento da Atenção Primária em Saúde e a equidade na distribuição de recursos hospitalares e de maior complexidade, entre outros”.
A intervenção seguinte foi do coordenador do Programa de Computação Científica (Procc/Fiocruz) e coordenador-adjunto do Programa de Epidemiologia da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Daniel Villela. Ele disse que toda a ação do Observatório da Fiocruz se deu por meio de recomendações baseadas em critérios, como as de casos e óbitos de Covid-19, casos de Síndromes Respiratórias Agudas Graves (SRAG), taxas de ocupação de leitos e cobertura de vacinação, desde 2020. “Desta forma, foi possível, e também às autoridades sanitárias, acompanhar, analisar os efeitos e fazer recomendações amplas”. Ele comentou também sobre os altos índices de incidência e mortalidade no período anterior à vacinação, a expansão do vírus dos grandes centros para municípios menores e a entrada da variante Gama, com alta transmissibilidade e que levou a altas incidências e casos graves, incluindo óbitos.
“Claramente, os números mostram que o avanço da vacinação permitiu evitar mais casos graves e óbitos, como se verificou na entrada da variante Delta, que tinha transmissibilidade alta, porém já com uma cobertura de vacinação mais robusta, e a Ômicron, que também mostrou transmissibilidade alta, mas letalidade mais baixa, pois se dispunha então de uma cobertura vacinal ainda mais robusta”. Para Villela, isso mostra a efetividade das vacinas, combinadas com medidas não-farmacológicas, que contribuíram para suprimir a transmissão do Sars-CoV-2.
Villela disse que será necessário garantir vacinas para toda a população, reformar a atenção com as variantes e uma fundamental ampliação da vigilância genômica. Ele recomendou ainda o fortalecimento da Atenção Primária do SUS e de sua capacidade de resposta e medidas de promoção da equidade em saúde.
A epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), presidente da Rede de Pesquisa em Tuberculose e membro da Rede Mulheres na Ciência, interveio em seguida. Para ela, é gratificante observar que conceitos antes restritos aos especialistas e às aulas de epidemiologia sejam agora do conhecimento de um público muito mais amplo. Ethel disse que, para que haja um necessário preparo para futuras pandemias e também para enfrentar as próximas fases, é importante “relembrar para não esquecer”. Ela lamentou a ausência de uma coordenação nacional melhor estruturada sobre o que e como fazer. “O sistema de saúde precisa estar preparado para essas emergências. O Brasil sempre foi bem em vigilância epidemiológica e atenção primária, temos bons sanitaristas e pesquisadores, mas cada estado teve que fazer a sua parte, sem normas e regras definidas para todos. Um dos grandes erros foi o surgimento da falsa dicotomia entre saúde pública e economia, agravada pelos movimentos negacionistas e anti-vax”.
Segundo Ethel, faltou um melhor direcionamento de políticas públicas para o enfrentamento da pandemia. “Dois anos depois e até hoje o país carece de protocolos. Só temos vacinas porque outros países as desenvolveram. Faltaram investimentos em muitas áreas. Não sabemos se e como a vacina será incorporada ao calendário vacinal. E as pessoas com sequelas? Como vão se tratar se não existem serviços específicos e a emergência foi revogada? Ficarão desassistidas? É fundamental termos essas respostas, para nos prepararmos para futuras epidemias e elaborarmos ações concretas”.
A professora disse que a convivência com o vírus “dependerá da nossa imunidade em relação ao Sars-CoV-2. A maioria das pessoas já foi exposta ao vírus, seja pela vacina ou conjugada com infecção prévia, o que chamamos de imunidade híbrida, e também do impacto de novas variantes e da duração da proteção da imunidade”.
Ethel listou as ações que considera urgentes: a oferta de medicamentos efetivos já autorizados por outras agências internacionais para tratamento de vulneráveis; a elaboração de protocolos de atendimentos implantados em todos os níveis de atenção, fortalecendo a vigilância do Sars-CoV-2 em todos as instâncias de saúde, para rastrear a disseminação e a evolução da Covid-19; detecção e caracterização de novas variantes e que permitam adotar medidas sociais e de saúde pública; promoção de campanhas efetivas sobre a necessidade de doses de reforço semestrais ou anuais; implantação de serviços para atendimento das sequelas da Covid-19; fortalecimento da capacitação das equipes de epidemiologia de campo e de laboratório para aprimoramento da investigação etiológica; introdução de estratégias de vigilância de Síndromes Respiratórias Agudas (SRA), integrando a Covid-19 no portfólio de diagnóstico diferencial da vigilância genômica do vírus; e a criação de um Instituto Nacional de Monitoramento de Emergências em Saúde Pública, com investimento, interdisciplinar e que tenha autonomia.
A terceira apresentação ficou a cargo do sanitarista e epidemiologista Eduardo Hage, da Fiocruz Brasília. Ele lembrou que, segundo a OMS, a Emergência em Saúde Pública Internacional continua sendo uma ameaça. “O Sars-CoV-2 é um patógeno respiratório novo, que ainda não estabeleceu seu nicho ecológico. A evolução dele é imprevisível, devido à circulação generalizada, à transmissão intensa em humanos e à infecção para várias espécies animais que são potenciais reservatórios”. Hage também assinalou a persistência de elevados níveis de morbidade e mortalidade, em especial em populações vulneráveis, e o uso inapropriado de antivirais, que pode fazer emergir variantes resistentes como possíveis complicadores. E fez questão de recordar que o relaxamento das medidas não farmacológicas e a redução da testagem também podem trazer problemas. Até o fim de março, mostrou Hage, entre 194 estados-membros da OMS, 21 haviam vacinado menos do que 10% de suas populações e 75 vacinaram menos do que 40%. Esta desigualdade, afirmou o pesquisador, é ainda mais pronunciada na administração de doses de reforço.
Diante desse cenário, Hage sugeriu a adoção de algumas ações estratégicas para a fase atual. Entre elas, fortalecer a resposta nacional à pandemia, com a atualização dos planos de preparação e reposta alinhados ao Plano Estratégico da OMS; alcançar a meta de vacinação de pelo menos 70% das populações dos países até o início de julho; intensificar as medidas não farmacológicas caso ocorra agravamento na situação epidemiológica, como hospitalizações, internações em UTI e óbitos, com o consequente comprometimento da capacidade dos serviços de saúde; manutenção da medidas básicas, como uso de máscaras, isolamento domicilar de doentes, higienização das mãos e ventilação de ambientes internos; e implantação de medidas para redução de risco em eventos de massa (avaliação, mitigação e comunicação de risco); monitorar hospitalizações, internações em UTI e óbitos; integração com a vigilância da influenza e outros patógenos respiratórios; manter a testagem representativa; detectar precocemente, incluindo vigilância baseada em eventos e ambiental; monitorar a gravidade em grupos vulneráveis; e reforçar a vigilância genômica.
Depois, o pesquisador Raphael Guimarães, do Observatório Covid-19 Fiocruz, fez uma síntese das apresentações. Segundo ele, o trabalho do Observatório nestes dois anos de pandemia foi o de elaborar um panorama nacional da emergência sanitária, revelando indicadores e dados, sempre com análises científicas. “O que fica claro é que equidade permeou toda a pandemia. Mesmo os atuais indicadores mais favoráveis não se traduzem de maneira igual pelas 27 unidades da Federação e mais de 5 mil municípios. É um país profundamente heterogêneo e com imensas dificuldades, o que exige um comando único, a partir do SUS”.
Guimarães afirmou que a politização da pandemia trouxe rupturas para o correto entendimento do que é a saúde pública, gerando uma equivocada dicotomia com a economia. “Essa politização exacerbada aumenta a disparidade, leva novamente o Brasil para o Mapa da Fome e causa uma piora em todos os indicadores sociais e de saúde”. Esse cenário, segundo o pesquisador, acaba por levar muitas pessoas a decidirem por elas mesmas se e quando vão tomar vacinas, se e quando vão usar máscaras. “E tudo isso é ação coletiva, não pode ser de caráter exclusivamente individual”.
No entanto, ele disse que a valorização do SUS, mesmo com o subfinanciamento do sistema, é um dos bons legados que vão ficar. “Apesar do início tardio da vacinação no Brasil, estamos hoje à frente dos Estados Unidos em percentual da população vacinada, mesmo tendo começado dois meses depois deles”.
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