24/08/2022
Agência Fiocruz de Notícias (AFN)
A Fiocruz e a Redes da Maré realizaram, no dia 18 de agosto, o seminário Olhares sobre a Covid em favelas: ciência, participação e saúde pública. Durante o evento, que ocorreu no campus Manguinhos (no Rio de Janeiro), com transmissão ao vivo pelo canal da Fiocruz no YouTube, os pesquisadores apresentaram os resultados obtidos nas diversas ações de combate a pandemia empreendidas no território, divididas em três projetos: Conexão Saúde - De Olho na Covid; Vacina Maré e Coortes da Maré. O primeiro tinha o objetivo de desenvolver um modelo integrado e participativo de atenção e vigilância para o enfrentamento da pandemia; o segundo vacinou quase toda a população adulta da Maré com as duas doses da vacina; e o terceiro acompanha dois grupos, um de vacinados e outro de sobreviventes, para avaliar dinâmicas de transmissão e sequelas da doença.
A mesa de abertura contou com a participação de Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz; Juliette Morgan, diretora regional do CDC nos EUA; Vanderson Sampaio, do Instituto Todos Pela Saúde; Márcio Garcia, Superintendente de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde do Rio e Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré.
“Cumprimento a todos da Fiocruz que se empenharam nesse projeto com entusiasmo. Foi um momento desafiador para todos nós e, por isso, esse encontro e toda essa atividade de avaliação terá uma importância muito grande. Queria agradecer muito a todos que se empenharam nestes esforços, em especial aos voluntários que estão aqui. É um momento de esperança, de alegria e de ânimo para todos nós. Todo esse aprendizado será muitíssimo importante para a próxima fase, pois ainda há muito trabalho há ser feito”, disse Nísia.
"Todo esse aprendizado será muitíssimo importante para a próxima fase, pois ainda há muito trabalho há ser feito”, disse Nísia (foto: Douglas Lopes, Redes da Maré)
O papel da Fiocruz, num contexto como o da pandemia, é mobilizar toda a sua capacidade e sua energia para salvar vidas, fortalecer o SUS nesse enfrentamento e projetar uma saúde e uma sociedade com mais igualdade, respeito e dignidade, valorizando a democracia na base. Além de apontar as desigualdades, temos que pensar sempre na potência de movimentos sociais para superar esse quadro e aprender com ele e em como uma comunidade tão exemplar em sua organização, como a Maré, se une para esse enfrentamento. A pandemia nos mostrou que temos que democratizar a democracia, ou seja, ser inclusivos de fato, estar em construções conjuntas, eliminando qualquer ideia de superioridade dos cientistas em relação à sociedade”, defendeu.
Após a solenidade, o coordenador de Relações Interinstitucionais da Fiocruz, Valcler Fernandes, fez uma apresentação sobre estratégias de articulação territorial e o campus Fiocruz Maré. Na sequência, foi exibido o documentário da Campanha Vacina Maré e o pesquisador que liderou os estudos na comunidade, Fernando Bozza, detalhou os resultados obtidos até aqui. Para concluir as atividades da manhã, Luna Arouca e Everton Pereira, da Redes da Maré, trataram das ações de engajamento, comunicação e mobilização do território, e voluntários do Vacina Maré deram depoimentos sobre sua experiência no projeto.
Coordenador de Relações Interinstitucionais da Fiocruz, Valcler Fernandes fez uma apresentação sobre estratégias de articulação territorial e o campus Fiocruz Maré (foto: Douglas Lopes, Redes da Maré)
Fernando Bozza destacou que a pandemia acentuou iniquidades e que essas diferenças se dão não só na resposta à pandemia mas agravam outras desigualdades, como as econômicas e sociais, em todo o mundo. Para ele, a reflexão sobre os impactos de longo prazo e as possíveis intervenções foram o ponto de partida para os estudos conduzidos na comunidade.
“O Conexão Saúde utilizou tecnologia móvel, com a telemedicina representando uma nova porta de acesso à saúde, e uma gestão compartilhada, em que sociedade civil, academia, setor público e setor privado trabalham juntos tendo essa centralidade no território. As ações de testagem, a utilização de tecnologias, a apresentação dos dados são ferramentas fundamentais quando se fala de vigilância. Trinta por cento da Maré não tem cobertura de sinal de celular, mas a gente viu que com ações afirmativas, que se tratam não só de utilizar a tecnologia mas de como você a utiliza no território, é possível dar uma resposta rápida. No auge da pandemia, os moradores da Maré, por meio de um aplicativo que estava integrado ao sistema de diagnóstico da Fiocruz, recebiam o resultado do teste em menos de 24h, o que nenhum laboratório do Rio conseguia entregar. Essa combinação de entusiasmo, vontade, inovação e escuta é fundamental para pensar essas novas soluções”, ressaltou.
Uma dessas iniciativas foi o app Dados do Bem, que entrou no ar em abril de 2020, no início da pandemia, e teve 2,5 milhões de downloads, realizando mais de 450 mil testes gratuitos de Covid, com presença em outros estados e foco em populações negligenciadas. O app utilizava algoritmos de inteligência artificial para gerenciar filas e o programa de testagem, o que, segundo Bozza, só foi possível com a integração entre as estruturas da Fiocruz, como a parceria com a Unidade de Apoio Diagnóstico (Unadig).
“A entrega do diagnóstico rápido e preciso foi o que possibilitou fazer as ações de comunicação, de isolamento e trabalhar diretamente com a população. O isolamento domiciliar seguro é uma inovação do projeto e traz uma visão incrível sobre como atuar numa pandemia. As pessoas eram avaliadas por assistentes sociais logo após receber o resultado positivo, convidadas a participar do programa e, a partir daí, acompanhadas. Avaliavam-se as necessidades dessas famílias, entregavam-se quentinhas, kits de isolamento, de limpeza do domicílio e o conjunto dessas ações se mostrou muito efetivo”, lembrou.
Para Bozza, a reflexão sobre os impactos de longo prazo e as possíveis intervenções foram o ponto de partida para os estudos conduzidos na comunidade (foto: Douglas Lopes, Redes da Maré)
Bozza também destacou o oferecimento de atendimento em várias especialidades por meio de telessaúde, principalmente em saúde mental. Ele afirmou que cerca de um terço dos atendimentos que a SAS Brasil fez neste período foram desse tipo, evidenciando o impacto da pandemia na saúde mental e a necessidade de que ações como essa tenham continuidade.
“Foram mais de 41 mil amostras coletadas (sorológica e molecular) no Centro de Testagem da Maré, cerca de 15 mil atendimentos médicos e psicológicos em telessaúde e mais de 1.200 famílias atendidas pela equipe social para isolamento domiciliar seguro e múltiplas ações de comunicação para esclarecer uma série de questões que a população tinha, esclarecendo suas dúvidas sobre as informações que estavam circulando. Foram produzidos mais de 40 boletins do Conexão Saúde, com dados, entrevistas e informação robusta, além de ações online com influenciadores locais. O número de casos de Covid-19 notificados por semana aumentou 26% na Maré após o início da intervenção. Ela reduziu 48% das taxas de óbitos notificados por semana na Maré em comparação a outras favelas que não tiveram essa intervenção”, disse.
O pesquisador lembrou também a rapidez com que o Vacina Maré foi aplicado na comunidade e os esforços para tirar a ideia do papel. Ao todo, 111.653 pessoas foram vacinadas com a primeira dose, o que supera a totalidade da população adulta do território considerando o Censo Maré de 2013 (139.073 habitantes). Com a 2ª dose ou dose única, foram 91.347 vacinados, o equivalente a 93,4%.
“Em cerca de um mês, elaboramos o projeto, submetemos à Conep, o projeto foi aprovado, a gente não sabia se teria vacina… Bio-Manguinhos foi um parceiro incrível nesse sentido e foi incrível também a mobilização da Redes da Maré, a mobilização que a SMS fez com seus profissionais, a reforma das unidades de saúde da Maré, e depois a busca ativa de quem ainda não tinha se vacinado”, citou.
Por fim, Bozza abordou os estudos de efetividade, do tipo desenho de teste negativo e coorte. O primeiro mostrou a efetividade da vacina da AstraZeneca nesse território. Já as coortes dividem-se em duas: a de vacinados tem quase 6 mil adultos e 503 crianças, totalizando 6.447 participantes, e avalia a transmissão intradomiciliar, as dinâmicas da circulação do vírus nas comunidades e a proteção indireta; já a segunda, de sobreviventes, se dedica a entender a covid longa. As pesquisas utilizam pesquisa de campo inovadora em vários aspectos, com cadastro no app Dados do Bem, teste sorológico e outras inovações criadas durante a pandemia e incorporadas rapidamente para gerar dados, conhecimento e ações.
Novos estudos
À tarde, pesquisadores apresentaram trabalhos dentro do escopo do Vacina Maré, evidenciando os resultados das ações do projeto e as consequências da pandemia na comunidade, como impactos na saúde mental e física. Além disso, cientistas da PUC-Rio apresentaram pesquisas, como a publicada no The Lancet, com um olhar macro para a pandemia no país. Os painéis foram, além de uma devolutiva à população, uma forma de estimular o debate para as próximas etapas do projeto.
O pesquisador Leonardo Bastos, da PUC-Rio, apresentou estudos sobre iniquidades da pandemia, trazendo uma comparação entre a primeira e a segunda onda, dados sobre casos - com início nas grandes capitais e deslocamento para o interior -, características das hospitalizações e mortes pela Covid-19 no Brasil, que seguiram o mesmo fluxo do de casos - com grande impacto na região Norte.
Soraida Aguilar, da PUC-Rio, trouxe dados de um estudo em andamento que avalia a progressão das mortes por Covid-19 antes e durante a vacinação, analisando a estratificação por faixa etária. Informações preliminares indicam que, no país, os óbitos referente aos mais velhos têm alta no início da pandemia em comparação aos mais novos, mas isso diminui conforme a vacinação tem andamento.
“A pandemia tem afetado, principalmente, as populações mais vulneráveis, e isso repercutiu em uma alta mortalidade hospitalar em locais com menor desenvolvimento socioeconômico, que também vacinaram menos, algo que foi compensado pela atenção primária. Olhamos agora para as estratégias de vacinação”, explicou Angular ao final de sua apresentação e do colega.
Voltando-se para as ações na Maré, a pesquisadora da PUC-Rio Amanda Batista trouxe os resultados do Conexão Saúde: De olho na Covid-19, uma análise comparativa entre antes e depois das intervenções na região. Segundo o levantamento apresentado, foram realizados 29.592 testes RT-PCR - com 97% dos casos notificados na Maré sendo diagnosticados pelo Conexão Saúde -, mais de 5 mil teleatendimentos e 747 famílias acompanhadas. As ações integradas do projeto reduziram em 48% a taxa de óbitos notificados semanalmente na Maré.
Participação ativa da comunidade
Em comentário sobre os estudos, o pesquisador do Instituto René Rachou (Fiocruz Minas) Rômulo Paes de Sousa destacou a experiência na Maré como um exemplo de “política pública não estatal”. “Traz uma lição fundamental para pensarmos como vamos enfrentar os grandes problemas de saúde no país. Essa experiência é uma lição de que existem alternativas, que a comunidade tem muita competência em apresentar um projeto de inovação”. A participação ativa e organizada da comunidade no projeto foi ressaltada pelo pesquisador do Observatório Covid-19 da Fiocruz Carlos Machado: “O conjunto de estratégias apresentado pela Amanda (Conexão Saúde) nos faz pensar o futuro. Fica a lição da estratégia de governança, que envolveu uma diversidade de atores, cada um com seus recursos, mas como podemos extrair dessa experiência lições para outros municípios que não dispõe da mesma rede e configuração?”.
Em seguida, o pesquisador da Fiocruz Fernando Bozza apresentou destaques do estudo de coorte na Maré, que acompanha indicadores de saúde dos moradores. O estudo se desdobrou em dois; sendo a primeira sobre vacinados e a segunda com as pessoas que testaram positivo no programa de testagem do Conexão Saúde. No ciclo 1, foram 6.429 inscritos - número comemorado por Bozza: “Pensando no contexto da pandemia e do território, é uma realização. Essa é uma pesquisa rigorosa, que segue princípios éticos fundamentais”, ressaltou ele.
Bozza chamou atenção para o kit diagnóstico desenvolvido pela Unadig/ Fiocruz e utilizado no projeto. “Estávamos fazendo sorologia para Covid-19, mas poderia ser para sífilis ou toxoplasmose”, pontuando como as ações implementadas podem servir como base para o futuro. “Há várias possibilidades que se abrem para entender doenças que circulam no território. O questionário do estudo dá uma visão ampla da saúde na Maré”. No ciclo 2, que está em andamento, há 3.856 inscritos, o que evidencia um desafio: garantir o segmento da pesquisa. Bozza destacou outros desafios, como sobre o nível de representatividade populacional no estudo e a captura de novas infecções.
Voluntária do projeto e na articulação e mobilização do Conexão Saúde, Vania Silva estava na platéia e participou do debate, sugerindo que, nas próximas fases do estudo, haja uma busca ativa por participantes a partir de um cronograma com ações diárias. “Assim vocês podem ter resultados mais positivos e encontrar os moradores que precisam ser encontrados”.
Aprendizados e vigilância genômica
Nesse sentido, o pesquisador do Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz Bahia) e do Cidacs/Fiocruz, Manoel Barral destacou como estudos como o apresentado por Bozza podem melhorar a saúde das populações estudadas e as formas de reproduzir as ações do Vacina Maré em contextos diferentes. Ele lembrou que o que foi implementado na comunidade deveria ser “o normal” e não uma exceção em tempos de pandemia.
O pesquisador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz) Thiago Moreno apresentou o tema Vigilância genômica na Maré e destacou aspectos da comunidade relevantes para pensar na transmissão da Covid-19 e outras infecções respiratórias, como alta densidade populacional, baixa renda per capita, que pode se traduzir em dificuldade de distanciamento domiciliar, entre outros.
Moreno explicou que é importante catalogar a diversidade genética do Sars-CoV-2 na Maré para “aprender como se deu a dinâmica desses agentes infecciosos diante destes aspectos humanitários e sanitários”. “As condições sanitárias nas comunidades precisam melhorar, há um benefício global em reduzir o surgimento de variantes”, afirmou o pesquisador.
Covid longa e futuro
O pesquisador do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino (Idor) Ronald Fischer, por exemplo, trouxe dados sobre os impactos na saúde mental da população da Maré. Entre os destaques, está que metade das pessoas não fez nada para se sentir melhor neste aspecto - o que, segundo o pesquisador, não significa que essas pessoas não tenham tido a necessidade. “Há grande proporção de quem precisa mas não sabe o que fazer; menos da metade fizeram algo para cuidar da saúde mental”, disse Fischer, sinalizando que o estudo está em andamento. “Precisamos acompanhar melhor as necessidades, olhar para os recursos disponíveis e fazer adaptações deles para o contexto da Maré”.
Com foco na saúde física, o pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/ Fiocruz) Pedro Azambuja trouxe resultados preliminares de uma pesquisa sobre os impactos da Covid-19 na população da Maré, com 719 participantes. Deste total, 20% não se sentiu recuperado e 22% teve algum sintoma novo ou persistente. Do último grupo, a metade reportou entre um e três sintomas e cerca de 5% reportaram dez ou mais; sendo os mais frequentes dor de cabeça, tosse, fadiga e dores musculares.
O estudo também identificou impactos negativos na saúde geral e nas funções cognitivas. Os desafios agora, pontuou Azambuja, são como fazer a pesquisa continuar sendo relevante para os participantes, buscar soluções para manter uma coorte bem sucedida ao longo do tempo e trazendo retorno para a população.
Neuroepidemiologista do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), James Sejvar comentou as apresentações, chamando atenção para a importância de se pensar nos efeitos a longo prazo da Covid-19. “Os trabalhos reforçam a importância do monitoramento da comunidade em termos de compreensão dos impactos a longo prazo na saúde mental, física e na qualidade de vida que podem ser vistas muito tempo após a doença”.
Visita à Maré
Na sexta-feira (19/8), pesquisadores, financiadores e parceiros que participaram do seminário fizeram uma visita à Maré, onde conheceram o Centro de Testagem localizado no Galpão Ritma e conversaram com articuladores territoriais (profissionais que fazem o trabalho de mobilização e engajamento de moradores participantes da pesquisa). Estiveram presentes representantes da Fiocruz, da PUC-Rio, da UFRJ, do IS Global de Barcelona, do CDC e do Instituto Todos pela Saúde (ITpS). O grupo foi liderado pelo coordenador do Vacina Maré, Fernando Bozza.
Foi realizada uma reunião para debater temas como o trabalho na Maré e a participação de agentes comunitários de saúde na pesquisa. No encontro, houve uma explanação do coordenador do eixo Direito à Saúde da Redes da Maré, Everton Pereira, sobre a história e o perfil sociodemográfico da Maré. Luna Arouca também fez uma apresentação sobre o trabalho da Redes da Maré no território.
O grupo visitou a sede central da Redes da Maré, onde foram recebidos pela diretora Helena Edir Vicente. Os visitantes foram ainda à clínica da família Adib Jatene, onde conheceram o trabalho dos agentes comunitários de saúde e viram uma demonstração do processo de abordagem e contato com os moradores participantes da pesquisa. Foi feita uma coleta de sangue utilizando o kit desenvolvido pela Unadig/Fiocruz e simulada uma entrevista nos moldes das da pesquisa.
No Portal Fiocruz
Mais Notícias
Mais em outros sítios da Fiocruz