07/04/2017
Fonte: Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
A necessidade de efetivar o direito à comunicação como prerrogativa básica e indissociável do direito à saúde deu o tom da Pré-Conferência Livre de Comunicação e Saúde, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) nesta quarta-feira (5/4), no Salão de Leitura da Biblioteca de Manguinhos. Durante a manhã, debatedores reforçaram a importância de o Sistema Único de Saúde (SUS) ser apropriado pela população como uma conquista social e coletiva, a partir do fortalecimento de espaços de fala que garantam e ampliem o acesso à informação em saúde e que deem visibilidade às vozes e vivências dos usuários. No encontro, que serviu como preparação para a 1ª Conferência Nacional Livre de Comunicação em Saúde, a ser realizada de 18 a 20 de abril, em Brasília, também foi lançada a nova Política de Comunicação da Fiocruz, construída de maneira democrática e participativa na instituição. E, na parte da tarde, houve ainda uma roda de conversa para a elaboração coletiva de um documento com propostas sobre o tema, a ser encaminhado para a 1ª Conferência.
A pesquisadora Inesita Soares Araujo, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), destacou que o direito à comunicação é composto de duas partes, do acesso à informação e do direito à voz, e que é preciso procurar entender a realidade dos usuários. “Não podemos achar, por exemplo, que a tecnologia digital resolve o problema do acesso, pois boa parte da população não tem internet nem celular”, ressaltou. “Também precisamos entender que nossas vozes concorrem com diversos discursos. Então, para fortalecer o SUS, não basta sensibilizar o jornalista da grande mídia. Há muitos interesses em jogo, uma disputa de sentidos permanentes. E também não adianta fazer uma comunicação ‘chapa branca’, que esconda os problemas, pois eles estão na vivência do usuário. Tudo que fica interdito, fala mais alto”.
Diego Francisco e Inesita Soares Araujo debatem comunicação e direito à saúde. Foto: Raquel Portugal - Icict/Fiocruz
Sobre a garantia do direito à voz, a pesquisadora lamentou que, no cenário atual, haja uma quase inexistência de canais de expressão da população e um processo que torna ainda mais invisíveis doenças e populações já negligenciadas. “O direito à voz significa o direito à discordância. Temos [os profissionais de comunicação] que aperfeiçoar nossa capacidade de lidar com isso. Não se trata apenas de buscar a pluralidade e a diversidade: é preciso olhar a equidade, que é palavra-chave para a conquista de direitos. Na construção do SUS, foi justamente nela, na equidade, que nos atrapalhamos. Comunicação é visibilidade, e visibilidade é acesso ao cuidado. Andam juntos. Por isso é preciso olhar a desigualdade e ter coragem de ver as linhas abissais que separam o visível do invisível. É fundamental estarmos abertos a outras práticas de comunicação e à divergência, que é parte da democracia. E, ainda, de estarmos, nesta instituição, dispostos a responder às demandas que inevitavelmente são geradas pela escuta”, ponderou. “Esse é o pulo do gato, só assim a população poderá se apropriar e valorizar o SUS. Se nós, enquanto instituição pública que se dedica a pensar a saúde e a comunicação, não caminhamos nessa direção, quem vai fazer isso?”.
Outro integrante da mesa, o jornalista e ativista Diego Francisco, morador do Morro do Borel, na cidade do Rio de Janeiro, reforçou a importância de pensar no direito à comunicação e à saúde para além dos muros da academia, olhando para as vivências do cotidiano da população. "O que é o SUS para as pessoas do meu território, qual é a experiência prática delas? É o engajamento nesse nível que vai levar a população a defender o sistema”, avaliou. “Na prática, há processos de marginalização, de invisibilidade das populações, de racismo, por exemplo, que impactam o contato das pessoas com o SUS. Podemos debater diversidade e pluralidade na academia, mas isso ainda está longe de nossas experiências diárias”.
Ele destacou, ainda, como o direito à comunicação pode impactar positivamente essa realidade. “A nossa experiência mostra que a capacidade de ter voz e o direito de ser visto, a partir do uso de redes sociais, por exemplo, tem permitido denunciar abusos, violações de diretos humanos, e garantido a sobrevivência das pessoas”, afirmou o jornalista. “Contra a invisibilidade que mata na ponta, é preciso ampliar o acesso, repensar o SUS com foco na vivência das pessoas, para mudar suas vidas”.
Cenário de retrocesso
A falta de acesso à internet é outro obstáculo à consolidação da comunicação como direito. É o que apontou Bia Barbosa, jornalista e secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). “Apenas metade da população tem acesso à rede. Se não criarmos estratégias para falar com a outra metade, estaremos ampliando a desigualdade. Mas, em vez de o país estar empenhado na universalização do acesso, está privatizando a infraestrutura de telecomunicações”, afirmou.
A jornalista também denunciou o atual processo de desmonte da comunicação pública no Brasil, descrevendo um cenário de retrocessos na área e a dificuldade de consolidar a ideia de comunicação como um direito fundamental – algo que, segundo ela, a maioria da população desconhece. “As pequenas conquistas acumuladas desde 2008 vêm sendo destruídas nos últimos tempos. A medida provisória que tira o caráter público da EBC (Empresa Brasil de Comunicação) é um exemplo desse retrocesso. Hoje ela se transformou numa empresa de comunicação governamental, com perseguições internas e cerceamento da liberdade de imprensa de seus profissionais”, apontou Bia Barbosa, esclarecendo que a comunicação governamental, apesar de importante, não substitui a comunicação pública, que deve ser “pela diversidade, pela pluralidade e pelas possibilidades do dissenso”.
Por fim, ela também chamou atenção para as ameaças à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão que têm marcado o cenário nacional: “Nos últimos anos, houve um aumento espantoso da repressão a manifestações de rua [que são tidas como formas de liberdade de expressão], por exemplo. Também tem crescido a criminalização de comunicadores populares. Nas redações, há inúmeros relatos de censura a jornalistas. Há algumas semanas, o repórter Caio Barbosa foi demitido do jornal O Dia, a pedido do prefeito Marcelo Crivella, após ter feito uma reportagem que denunciava o mau atendimento nos postos de vacinação para febre amarela”.
Diante desse cenário nebuloso, discutir o direito à comunicação como fundamental para o direito à saúde, proposta da 1ª Conferência Nacional Livre de Comunicação em Saúde, torna-se ainda mais fundamental. É o que afirmou Fernando Pigatto, representante do Conselho Nacional de Saúde. “Nossa proposta com a conferência é de avançar na discussão sobre a democratização do acesso a fontes de informação em saúde e formar redes no intuito de promover a diversificação da cobertura dos temas da área”, explicou. “Comunicação é poder, poder sobre nossa própria vida, e é fundamental para a população se apropriar do SUS, entendê-lo como uma conquista e defendê-lo contra os retrocessos em curso”.
Construção coletiva de documento
Após as apresentações e debates da manhã, que tiveram a mediação de Marcia Correa e Castro, superintendente do Canal Saúde, houve uma discussão em grupo na parte da tarde para a construção de um conjunto de ideias e diretrizes a serem encaminhadas à 1ª Conferência Nacional Livre de Comunicação em Saúde. O objetivo foi condensar em um documento propostas discutidas ao longo do dia, tendo como referência a carta Direito à comunicação e informação para consolidar a democracia e o direito à saúde, assinada pela Fiocruz e outras instituições e apresentada na 15ª Conferência Nacional de Saúde (15ª CNS).
A carta, resultante do 1º Diálogo PenseSUS, realizado pelo Icict/Fiocruz em 2015, virou uma moção de apoio aprovada pela plenária da 15ª CNS, e contou com a colaboração de profissionais de comunicação, conselheiros de saúde e representantes de movimentos sociais. “É mais um esforço que fazemos para defender que a comunicação e a informação sejam efetivamente reconhecidas como fundamentais para o direito à saúde”, defendeu Marina Maria, editora do site PenseSUS e moderadora da sessão, juntamente com Mônica Mourão, jornalista do Canal Saúde.
Após a leitura da carta e propostas de alterações, foi discutida a atualização do documento, de acordo com a conjuntura atual e as reflexões dos debates da Pré-Conferência. “Há um novo cenário que se apresenta diante do Sistema Único de Saúde e da comunicação pública”, afirmou Márcia Correa e Castro. A representante do movimento de mulheres moradoras de rua, Denize Ferreira, manifestou a importância da representação social neste processo. “Nós queremos estar presentes nessa discussão. Sabemos melhor que ninguém quais são os problemas de saúde que afetam a população de rua. Não queremos que ninguém fale por nós”, defendeu a militante.
Um dos organizadores da 1ª Conferência Nacional Livre de Comunicação em Saúde, o jornalista Leandro Fortes saudou a discussão da Pré-Conferência e deu informes sobre o evento em Brasília. “Esperamos que as contribuições possam criar uma rede de comunicação em favor do SUS”, explicou. Para Janine Cardoso, docente do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde, (PPGICS/Icict/Fiocruz), esse exercício de construção coletiva de um documento é um desafio, pois exige um esforço de síntese de um campo profundo e abrangente. “Acima de tudo, é importante considerar os próprios princípios do SUS, com a ênfase de instituir a comunicação também como direito, não só no acesso à informação, mas também o direito à voz”, concluiu.
Política de Comunicação da Fiocruz
Nísia Trindade, presidente da Fiocruz, entre Fernando Pigatto, do Conselho Nacional de Saúde, e Manoel Barral, vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação, apresenta a Política de Informação da Fiocruz
Ainda durante a Pré-Conferência, foi lançada a Política de Comunicação da Fiocruz, documento elaborado coletivamente, num processo que envolveu diferentes áreas e profissionais da instituição. A política define a comunicação como um bem público e uma das determinações sociais da saúde e defende a efetivação do direito social, coletivo e individual à informação, à expressão e ao diálogo.
O lançamento foi mediado por Umberto Trigueiros, diretor do Icict/Fiocruz, e contou com a presença de Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, e também de Manoel Barral Netto, vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da instituição. Nísia comemorou a nova versão da Política de Comunicação como um marco do amadurecimento da área. “A comunicação é elemento estruturante na mediação das relações humanas e nas relações de poder na sociedade, por isso central para qualquer política pública”, avaliou. “Enquanto bem público, precisa ser preservado e fortalecido, e deve ser entendida como uma relação de mão dupla, para que se possa construir espaços mais amplos de diálogo com a sociedade”.
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