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Apontamentos da área de Saúde e Ambiente da VPAAPS sobre a COP26


17/11/2021

VPAAPS

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Por Guilherme Franco Netto - Especialista de CT&I em Saúde, Ambiente e Sustentabilidade; Coordenador do Programa de Saúde, Ambiente e Sustentabilidade e Secretário Executivo da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030.

Nelzair Vianna - Pesquisadora em Saúde Publica e Coordenadora do Comitê de Saúde e Ambiente da Fiocruz Bahia.

No dia 13 de novembro de 2021, um dia após o previsto, concluiu-se em Glasgow, na Escócia, a 26ª edição da Conferência das Partes (COP), da Convenção sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (UNFCCC). Após exaustivo e tenso debate, 200 países-membros deliberaram um conjunto de medidas que têm como propósito pôr em prática o Acordo de Paris, firmado em 2015, cujo principal objetivo é assegurar que o aumento da temperatura global fique abaixo de 2°C. O texto final manteve a referência inédita sobre a necessidade de diminuir o uso de combustíveis fosseis e do uso de carvão. Inicialmente o documento falava em eliminar gradualmente o uso do carvão, mas devido a pressão da China e Índia optou pela diminuição gradual. Líderes mundiais aprovaram acordo para manter o objetivo de limitar o aquecimento global em até 1,5°C, na comparação com níveis pré-industriais. 

O objetivo maior de todos os acordos da UNFCCC  é de estabilizar a concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera em níveis que previnam interferência perigosa no sistema climático, considerando um cronograma que permita com que os ecossistemas se adaptem naturalmente e possibilitem o desenvolvimento sustentável. Mais uma vez o financiamento foi extensivamente debatido, havendo consenso sobre a necessidade de seguir aumentando o apoio para os países em desenvolvimento. A tarefa de preencher a demanda de aportar U$100 bilhões anuais até 2025 dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento também foi reafirmada. Uma chamada de pelo menos dobrar o financiamento para adaptação foi bem-vinda pelas partes.

Sobre a mitigação (mecanismos que impliquem na efetiva redução dos gases de efeito estufa), o não cumprimento das metas estabelecidas no Protocolo de Quioto, as partes foram encorajadas a reforçar a redução de emissões para alinhar suas políticas e ações nacionais ao Acordo de Paris. 

A adaptação (mecanismos que implicam que a vida humana e mais-que-humana sejam capazes de adaptar-se aos efeitos da mudança climática, assegurando padrões dignos) foi objeto de ênfase particular durante as deliberações, que estabeleceram um programa de trabalho para definir um objetivo global sobre adaptação, que irá identificar necessidades coletivas e soluções que afetam diversos países. 

Além disso, um resultado importante é a conclusão do chamado livro de regras de Paris. Chegou-se a um acordo sobre as normas fundamentais relacionadas ao artigo 6 sobre mercados de carbono, o que tornará o Acordo de Paris totalmente operacional. Isso dará certeza e previsibilidade às abordagens de mercado e não de mercado em apoio à mitigação, bem como à adaptação. E as negociações sobre o Quadro de Transparência Reforçada também foram concluídas, fornecendo tabelas e formatos acordados para contabilizar e relatar as metas e as emissões.

A negligência quanto a não observância dos diversos alertas feitos pelo Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC), instituído no final da década de 80, resultou no 6º Relatório, lançado em 2021, cujos destaques são: 1) o estabelecimento de que a ação humana tem aquecido ainda mais o sistema climático e que mudanças do clima rápidas e disseminadas pelo mundo já estão ocorrendo, tendo a temperatura média dos continentes aumentado em 1,59°C e a temperatura média dos oceanos aumentado em 0,88°C; 2) o aquecimento global ultrapassará 1,5°C antes do meio do século, mas poderá ser reduzido  abaixo disso com ação ambiciosa imediata; 3) as emissões do passado já tornaram irreversíveis algumas consequências do aquecimento global, como o degelo, o aumento do nível do mar e mudanças nos oceanos; 4) os impactos no médio prazo também serão significativos em todas as regiões do planeta, incluindo elevação de temperatura, estações quentes alongadas, mais ondas de calor e menos extremos de frio. Essas mudanças serão maiores com 2°C do que com 1,5°C de aquecimento. Em 2050, se o limite de 2°C for atingido, limiares críticos para a saúde humana e a agricultura serão ultrapassados com mais frequência, com a possibilidade de ocorrência de vários eventos extremos simultâneos; 5) eventos catastróficos não podem ser descartados. Eventos compostos (ex.: seca-ondas de calor) serão mais frequentes com alta probabilidade de ocorrência de eventos climáticos sem precedentes ainda no presente. A circulação meridional do Oceano Atlântico muito provavelmente declinará no século 21 em todos os cenários de emissão, mas há incertezas quanto à magnitude do declínio. Há média confiança de que ela não sofrerá um colapso abrupto, o que impactaria nos padrões de tempo e no ciclo da água em grande parte do mundo, alterando os padrões de chuvas na África, Ásia e América do Sul; 6) para reduzir o impacto humano no clima o único nível tolerável de emissão é zero. A humanidade já emitiu desde 1850, 2,390 trilhões de toneladas de CO². Para que a chance de estabilizar a temperatura em 1,5°C seja a maior possível, será preciso emitir no máximo mais 300 bilhões de toneladas de CO², o equivalente a seis anos de emissões mundiais de gases de efeito estufa.  

A COP26 foi realizada num contexto único da história da humanidade, na qual uma pletora de crises multi escalares marcam por definitivo a crise ambiental global e civilizatória, tendo como resultado mais significativo no século XXI, a pandemia da COVID-19, ainda em curso, em um contexto de sindemia (múltiplas pandemias concomitantes). Soma-se a isso a intensificação e expansão da urbanização desorganizada, mais de 70% da humanidade viverá em cidades até 2050 e a profunda transição demográfica, onde a maioria da humanidade deixará de ser constituída por crianças e jovens. Tudo isso em um contexto de intensificação da concentração da riqueza financeira e material e a ampliação das desigualdades e vulnerabilidades socioambientais.

Por isso mesmo, possivelmente a marca mais significativa da COP26, para além dos acordos protocolares, foi a multiplicidade de significativas manifestações de representações não oficiais de diversos segmentos da sociedade, tais como as dos povos originários e tradicionais, de jovens, de movimentos feministas, entre outros. 

No dia 1º de novembro de 2021, abertura da COP26, foi anunciado por governos e doadores privados a destinação de US$1,7 bilhão para povos indígenas entre 2021 e 2025, com o objetivo de contribuir para a preservação das florestas onde vivem. Também é importante ressaltar a participação da indígena Txai Suruí, liderança do povo Suruí, em Rondônia, e única brasileira a discursar na abertura do evento, na qual falou sobre a necessidade de maior participação de indígenas nas decisões da cúpula do clima e da violência contra os povos indígenas.   

Quanto às mulheres, o aquecimento global poderá provocar impactos diretos na saúde, direitos sexuais e reprodutivos, desigualdades de gênero e violência. De acordo com o relatório do Women in Finance Climate Action Group, cerca de 80% dos deslocados pelas mudanças climáticas são mulheres. 

A resolução da COP26 reconhece que a “mudança climática é uma preocupação comum da humanidade, as Partes devem, ao tomar medidas para enfrentar a mudança climática, respeitar, promover e considerar suas respectivas obrigações em relação aos direitos humanos, o direito à saúde, os direitos dos povos indígenas, comunidades locais, migrantes, crianças, pessoas com deficiência e pessoas em situação de vulnerabilidade e o direito ao desenvolvimento, bem como a igualdade de gênero, empoderamento das mulheres e equidade intergeracional”.

Em recente publicação a comissão do Lancet Countdown On Health and Climate Change (Lancet ) – A Policy Brief for Brasil, destacou três recomendações centrais: 1) Promover e operacionalizar dietas de Saúde Planetária: estratégias para operacionalizar dietas de saúde planetária incluem aumentar a meta para 60% de compras públicas de agricultores familiares locais, alinhadas com dietas vegetais e de saúde planetária e biodiversidade regional; 2) Melhorar a segurança alimentar e nutricional: os alimentos desempenham um papel importante na saúde. A adoção de práticas que valorizam os alimentos locais de a biodiversidade de cada região e respeitar as culturas tradicionais é fundamental. Na experiência brasileira, o uso de alimentos locais favorece a diversificação da dieta e melhora a alimentação e segurança nutricional, reforçando a resiliência às alterações climáticas e garantindo a soberania alimentar. As estratégias devem fortalecer os saberes tradicionais e o extrativismo, a produção dos agricultores familiares, e comercialização de espécies nativas em alinhamento com a saúde planetária e vegetal; 3) Reduzir a exposição à poluição do ar por incêndios florestais: Os incêndios florestais causam poluição do ar, o que aumenta as doenças e a mortalidade. As estratégias para reduzir a poluição do ar devem promover uma bioeconomia sustentável, equitativa e vibrante. A chave para este objetivo é o monitoramento comunitário da poluição do ar, regulamentação restritiva e proteção de florestas, povos indígenas e terras de comunidades tradicionais. Ações nacionais para recuperação econômica da COVID-19 devem ser elaboradas.  

O setor de cuidado à saúde também deverá ser protagonista das ações para a neutralização de carbono, atuando não só na adaptação para atender os impactos na saúde, mas também em ações de mitigação e redução dos gases de efeito estufa. Um exemplo pode ser trazido pelos dados apresentados em análise e publicado no British Medical Journal (BMJ) e também apresentado durante a COP26, onde foi reportado que países de baixa e média renda contribuem com uma alta pegada de carbono. Planos de ação climática locais deverão desenvolver agendas integradas na perspectiva de que esses acordos locais tem alta relevância para o cumprimento de metas globais.

No geral, o texto final da COP26 não traduz a urgência em relação às mudanças climáticas como reveladas no relatório do IPCC. Foi vencida uma etapa importante, mas não é o suficiente para o combate ao aquecimento global. A próxima cúpula do clima (COP27) será realizada em 2022, no Egito, e haverá mais uma oportunidade de debater ações que ajudarão a preservar a vida no planeta.

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