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Congresso discute desenvolvimento humano, trauma e violência


01/10/2024

Bruna Abinara e Tatiane Vargas (Informe Ensp)

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O desejo de transformar as abordagens sobre trauma e de criar uma linha de cuidado especializada em sobreviventes de violência foi o impulso propulsor dos debates no Congresso de Desenvolvimento Humano, Trauma e Violência: Diálogos entre a Saúde Pública e a Justiça Restaurativa. O evento promovido pelo Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), em parceria com o Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec/TJRJ), a Escola de Mediação (TJRJ), o Instituto de Terapia de Exposição Narrativa (NET) e a Faperj, foi realizado nos dias 26 e 27 de setembro, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.  

"Quando tratamos de pessoas que passaram por múltiplos traumas, estamos lidando diretamente com as consequências psicológicas das violações de direitos". Na palestra O lugar do trauma no sistema de justiça: experiência brasileira, a pesquisadora Fernanda Serpeloni, do Claves/ENSP, explicou que a violência é a principal fonte de estresse traumático e, por isso, é reconhecida como um problema de Saúde Pública pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A doutora em psicologia clínica e neurociências pela Universidade de Konstanz, na Alemanha, ressaltou que, nos centros urbanos brasileiros, a taxa de exposição a potencial evento traumático é de 86% e a prevalência do transtorno de estresse pós-traumático é de 11%, havendo, ainda, a expectativa de índices maiores em regiões de conflito. "Frente a esse cenário, existe um descompasso entre os impactos da violência na saúde e a oferta de cuidado especializado para as pessoas que sofrem as consequências da violência", declarou.  

Segundo a pesquisadora, o Sistema de Saúde é uma porta de entrada importante para que se desenvolva uma linha de cuidado para pessoas que passaram por situações de violência. No entanto, Fernanda alertou para uma dificuldade de identificação desse sofrimento nas unidades de atendimento, o que compromete, também, o tratamento adequado. "As pessoas chegam nas clínicas da família e são medicadas pelas queixas somáticas, mas a origem do problema não é tratada", denunciou. Essa lacuna na prática de cuidado na saúde é preocupante para a pesquisadora, que defende a urgência na busca por possibilidades de intervenção.  

Fernanda citou a Terapia de Exposição Narrativa (NET) como um exemplo bem-sucedido de tratamento para os transtornos de estresse pós-traumático. A prática terapêutica é baseada no tripé pesquisa, formação e cuidado nos sistemas de saúde e de justiça. No Brasil, a primeira tentativa de implementação da NET ocorreu no Rio de Janeiro, em 2018. A pesquisadora contou que, apesar dos desafios estruturais de concretização e sustentabilidade, a terapia foi considerada fundamental pelos profissionais de saúde envolvidos, que declararam se sentir mais seguros para atender e dar suporte para os sobreviventes.  

A NET tem variações adaptadas para crianças, comunidades e perpetradores de violência. Fernanda destacou a relevância da terapia junto a ofensores, uma vez que estudos mostram que a maioria deles também passou por traumas durante a infância, gerando um ciclo de violência. O trabalho junto à comunidade é igualmente tão relevante, já que "o trauma não é sempre individual, ele tem dimensões sociais e políticas", reforçou a pesquisadora.  

Por fim, Fernanda defendeu que é fundamental promover um diálogo profundo e transformador entre Saúde Pública e Justiça Restaurativa. "A Saúde Pública traz uma perspectiva ampla sobre os impactos da violência na saúde e as linhas de cuidado possíveis, enquanto a Justiça Restaurativa busca caminhos para reconstrução do tecido social rompido pela violência. Juntas, essas áreas podem criar um novo entendimento das relações humanas, permitindo o reestabelecimento de laços sociais", concluiu.  

Terapia de Exposição Narrativa: uma nova abordagem na Justiça Restaurativa  

A psicóloga e pós-doutoranda da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), Glaucia Niedermeyer Orth, falou sobre a questão do lugar do trauma no sistema de Justiça Restaurativa e a aplicação da Terapia de Exposição Narrativa (NET) na resolução de conflitos. A Justiça Restaurativa visa promover a reparação das vítimas e a responsabilização dos ofensores por meio de encontros, que podem ocorrer de forma presencial ou mediada.  

Em sua apresentação, Glaucia destacou a complexidade dos papéis de vítima e ofensor, enfatizando que ambos compartilham experiências de trauma. "O trauma é a experiência que conecta vítima e ofensor; é uma experiência comum para ambos. Quando promovemos esse encontro, realizamos entrevistas individuais para compreender o impacto do crime na vida das pessoas e o que elas buscam como reparação”, explicou.  

Glaucia também mencionou seu trabalho com vítimas e ofensores, buscando respostas que pudessem auxiliar na resolução de conflitos. Foi durante essa pesquisa que ela conheceu a Terapia de Exposição Narrativa, por meio de artigos de pesquisadores do Claves/ENSP, e teve um encontro significativo com a pesquisadora Fernanda Serpeloni. Juntas, elas passaram a discutir a aplicação da NET em contextos variados, incluindo um projeto voltado para autores de violência que estavam cumprindo pena.  

A psicóloga acredita que o conhecimento sobre o trauma transforma a abordagem no Sistema de Justiça. “Estamos lidando com pessoas que sofreram dores profundas em situações de violência. É essencial atender às vítimas e trabalhar com os ofensores sob a perspectiva do trauma", afirmou.  

Glaucia amplificou a discussão sobre o conceito de reparação. Tradicionalmente, esse conceito era visto como um pedido de desculpas ou compensação financeira. No entanto, ela percebeu que a recuperação da saúde mental também deve ser considerada uma forma de reparação, uma vez que a violência afeta a subjetividade das pessoas. "Elas desejam voltar a ser quem eram antes", refletiu.  

O uso da NET, segundo Glaucia, fortaleceu a experiência de trabalho com as vítimas. Ela leu depoimentos de várias delas, que avaliaram positivamente a terapia na resolução de conflitos. Para ela, prover cuidado às vítimas é uma responsabilidade do Estado e uma forma de reparação. “Essa é a mensagem que mais contribui para o entendimento do que é justiça”, ponderou.  

Além disso, Glaucia compartilhou uma experiência com um autor de violência em situação de privação de liberdade. Ao ler a carta do autor, ela concluiu que a reparação da saúde mental, considerando experiências traumáticas, é o caminho adequado a seguir. “Com o uso da Terapia de Exposição Narrativa estamos contribuindo para uma reflexão mais profunda sobre a Justiça Restaurativa e seu papel na recuperação de indivíduos afetados pela violência”, finalizou.   

Mesa de abertura 

Na mesa de abertura do evento, a pesquisadora Kathie Njaine, chefe do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/ENSP/Fiocruz), como representante da Escola, agradeceu aos órgãos parceiros que também atuaram na organização do evento e declarou ser uma honra inaugurar esse trabalho conjunto no Congresso. "A Saúde Pública é um campo interdisciplinar por natureza, e essa parceria com o campo da Justiça só reforça a nossa missão", afirmou. Kathie ressaltou que, há 30 anos, o Claves se dedica a pesquisar e investigar os impactos da violência na saúde e nas instituições, incluindo a Justiça.  

Segundo a pesquisadora, as respostas do sistema legal podem ampliar a sensação de segurança ou dificultar a percepção de justiça. "A inclusão da Justiça Restaurativa nesse debate reforça o enfrentamento da violência e dos seus agravos, tanto no nível individual, quanto coletivo, uma vez que entendemos que a Justiça faz parte do processo de superação", declarou.  

Também estiveram presentes na mesa de abertura o desembargador Cesar Cury, que defendeu a urgência em interromper a dinâmica de violência e resgatar o sentido de profundidade da subjetividade humana, individual e coletiva, além do Desembargador Caetano Ernesto da Fonseca Costa, que declarou ser necessário encarar os conflitos com profundidade e humanidade para resolver a questão de vez.  

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