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Pesquisa com povos ciganos analisa interseccionalidade e decolonialidade no SUS


09/09/2024

Fonte: Icict/Fiocruz

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O 1° Seminário Geral da pesquisa Interseccionalidades e (de)colonialidades na Política Nacional de Integração em Saúde dos Povos Ciganos: uma abordagem e um caminho para descolonizar o SUS, que ocorreu na Fiocruz Brasília (15 e 16/8), marcou o encerramento da fase de implementação do estudo, que tem em sua coordenação geral a pesquisadora do Laboratório de Comunicação e Saúde (Laces) do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), Inesita Soares de Araujo, e como coordenador adjunto Aluízio de Azevedo, do Ministério da Saúde. Com o objetivo geral de identificar como se produz a prática colonial de anticiganismo nas instâncias do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como as possíveis formas de descolonização, a investigação está sendo desenvolvida pelo Laboratório e conta com financiamento e apoio do Programa de Políticas Públicas e Modelos de Atenção e Gestão à Saúde (PMA), do Ministério da Saúde, por meio de aprovação na Chamada para submissão de propostas nº 01/2023, que privilegiou projetos que buscassem a descolonização do SUS. 

Cigano em seu acampamento (foto: Acervo da Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso)

 

A pesquisa, que começou em março de 2024 e tem previsão de término até fevereiro de 2026, pauta sua atenção nas formas como a população cigana é percebida, acolhida e cuidada pelas instâncias do SUS. A principal premissa é a de que as políticas afirmativas atuais, mesmo criadas em uma lógica decolonial, reparatória e de justiça social não encontram ressonância junto aos gestores e aos profissionais de saúde, além de serem em parte desconhecidas pelas próprias pessoas ciganas, o que faz com que suas condições de saúde continuem negligenciadas.  

Racismo em saúde

Em sua tese de doutorado defendida em 2018, o coordenador adjunto da pesquisa, Aluízio de Azevedo, cigano da etnia Calon, já havia denunciado práticas de racismo institucional presentes entre profissionais e serviços do SUS em várias dimensões. Há um desconhecimento generalizado de suas especificidades culturais e de gênero, diversidade étnico cultural, modos de vida e tradições. 

“Não se cumpre o princípio da equidade nos cuidados em saúde com os povos ciganos”, denuncia Aluízio, ao lembrar que “as pessoas dos três troncos étnicos ciganos (Calon, Rom e Sinti) não são contabilizadas pelo IBGE no censo populacional e não estão incluídas nos sistemas de informação do SUS, de maneira que na prática da assistência à saúde são discriminadas. A maioria está em exclusão, fora do mercado de trabalho e da educação formal, sem acesso à habitação e outros serviços cidadãos”.

Políticas Afirmativas

O registro da entrada da primeira família cigana Calon no Brasil, deportados de Portugal, justamente por serem ciganos, é de 1574. Tanto lá, quanto cá, foram aplicadas ao longo do tempo inúmeras leis colonialistas, racistas e persecutórias contra os ciganos, como a proibição de falar a língua, praticar ofícios tradicionais, andar em grupo, viver juntos, entre outras. Também se construiu um imaginário estereotipado e preconceituoso, que permeia o senso comum, produtos artísticos e científicos. 

As primeiras políticas afirmativas para povos ciganos ocorreram a partir de 2011, com a portaria 940, que dispensa pessoas ciganas de apresentarem comprovante de endereço para serem atendidas nos serviços do SUS, devido a característica de itinerância de muitos desses grupos étnicos. Em 2006, o Decreto Presidencial de 25 de maio de 2006 criou o Dia Nacional dos Ciganos; em 2007, o Estado reconheceu os ciganos como Povos Tradicionais brasileiros, por meio da publicação do Decreto Presidencial 6.040. Finalmente, a portaria 4348, de 2018, criou a Política Nacional de Atenção Integral aos Povos Ciganos/Romani, estabelecendo objetivos e ações para os governos federal, estaduais e municipais. 

Pesquisa em outra perspectiva

Segundo Inesita Araujo, apesar de parecer simples “pesquisar com e não para e não sobre as pessoas envolvidas, pode parecer difícil por exigir desapego individual, mas também (e muito) institucional, de convicções e práticas arraigadas por tempo demais que centralizam e conferem a poucos o monopólio da prerrogativa do fazer científico e da produção de conhecimentos. Exige coragem para desaprender e reaprender”, afirma.  

Como a perspectiva epistemológica que orienta a investigação é a do compartilhamento da produção de conhecimento entre pesquisadores, movimento social dos povos ciganos, trabalhadores e gestores da saúde, as pessoas ciganas, maiores interessadas nas políticas, participam ativamente da investigação em vários níveis: construção do projeto, escolhas metodológicas, processo analítico e produtos decorrentes, constituindo a grande maioria dos integrantes da equipe. Além de compartilharem a coordenação geral da pesquisa, coordenam a pesquisa de campo nos territórios envolvidos, atuam como interlocutores científicos e no campo das políticas públicas, também na atividade de produção e design gráfico. 


Arte cigana (foto: Acervo da Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso)    

Decolonialidade na pesquisa

Participarão das atividades de campo 100 pessoas ciganas, de quatro estados – Goiás, Bahia, Rio de Janeiro e Paraíba – englobando assim as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Nordeste, além de profissionais e gestores de saúde que atuam junto a essas populações. Também serão incluídos gestores dos ministérios envolvidos na elaboração e aplicação das políticas afirmativas.  

Uma das participantes é Desirèe Matos, filósofa cigana da etnia Calon, que vai coordenar o trabalho de campo na região Sudeste. Para ela, a pesquisa é inovadora desde a sua concepção até o compartilhamento de conhecimentos e resultados. “O caráter decolonial com que se propõe tratar do tema saúde dos povos ciganos compreendendo-o não como um ‘objeto’ ou como uma citação estanque ou meramente ilustrativa, confere além de originalidade ao projeto, uma significativa e eficiente estratégia de resistência. Me encontro motivada para iniciar a pesquisa de campo e perceber que o ‘sujeito’ vai se construindo discursivamente, aprendendo as vozes sociais que constituem a realidade em que está imerso”, explica Desirèe.

O cigano de etnia Calon e professor da Universidade de Feira de Santana, Jucelho Dantas, destaca que a pesquisa é importante para mostrar a realidade dos povos ciganos, diante da total invisibilidade histórica. Para Jucelho, uma das questões muito caras abordadas na pesquisa é a colonialidade no SUS.

“A colonialidade é muito forte dentro do SUS e não é somente com os ciganos. O tratamento que é dado à população que vai ser atendida no SUS é um tratamento universal. Ou seja, é um tratamento para um povo que é visto como homogêneo, que não tem diferenças nenhuma e a gente sabe que todos os seguimentos sociais e etnias têm suas particularidades. Para nós, ciganos, a imposição dessas normas, dessas regras chocam muito e existe uma repelência”, analisa o pesquisador. Ele ainda conclui: “Muitos ciganos não querem ir ao posto médico e ao serviço médico porque não se sentem ali abraçados e acolhidos, muito pelo contrário. Então, uma pesquisa como esta tem uma relevância gigantesca, principalmente porque está sendo aberto este canal da decolonialidade dentro de um sistema importantíssimo para nós brasileiros, o SUS, mas que precisa ser trabalhado e adaptado as condições do seu povo”. 

Segundo a coordenadora do projeto: “toda a equipe está muito animada e esperançosa de poder contribuir, através da pesquisa, não só para compreender quais dispositivos institucionais e comunicacionais do SUS operam no sentido da produção da colonialidade junto aos povos ciganos e como eles poderiam ser descolonizados, mas também para avançar um pouco mais no necessário movimento de descolonização da prática de pesquisa no campo da saúde coletiva". 

O estudo deverá resultar, dentre outros produtos, em dois guias nos formatos impresso e digital: um dedicado a gestores, conselheiros e profissionais do SUS, com informações qualificadas sobre a população cigana, suas características, necessidades e direitos; outro, para o movimento e população cigana em geral, sobre seus direitos cidadãos em saúde, protocolos e recursos disponíveis e outras informações cuja relevância foi tenha sido evidenciada na pesquisa. Também está prevista uma proposta de monitoramento das políticas públicas voltadas para as pessoas ciganas.

Novo Plano Nacional é lançado

O Ministério da Igualdade Racial lançou, em agosto, o Plano Nacional de Políticas para Povos Ciganos, que visa “promover medidas intersetoriais para a garantia dos direitos dos povos ciganos”. Ao todo, o plano está estruturado em dez objetivos, que envolvem combate ao anticiganismo, reconhecimento da territorialidade própria dos povos ciganos, direito à cidade, educação, saúde, documentação civil básica, segurança e soberania alimentar, trabalho, emprego e renda e valorização da cultura. O lançamento contou com a presença de representantes de diversos ministérios.

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