24/01/2019
Por: Graça Portela (Icict/Fiocruz)
Em agosto de 2018, um aluno de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/Icict/Fiocruz) defendia uma tese considerada por alguns como “diferente”. Orientado por Inesita Soares de Araújo (PPGICS) e co-orientado por Maria Natália Pereira Ramos, da Universidade Aberta – Uab Lisboa, de Portugal, Aluízio de Azevedo Silva Júnior – ele mesmo um cigano da etnia Kalon – mapeou e analisou os processos interculturais de comunicação (produção, circulação e apropriação) das políticas públicas de saúde para ciganos no Brasil e em Portugal.
Intitulada A Produção Social dos Sentidos nos Processos Interculturais de Comunicação e Saúde: a apropriação das Políticas Públicas de Saúde para ciganos no Brasil e em Portugal, a tese de Azevedo faz um extenso levantamento histórico da vida cigana e também – sob a ótica da saúde – tenta mostrar qual o impacto das políticas públicas para esses povos.
“Mil nações”*
A origem dos povos ciganos é imprecisa. Alguns atribuem a sua origem à Índia, outros ao Egito. A maior dificuldade é devido não se ter “a história escrita, apenas a oral”, como explica Azevedo, que ainda chama a atenção para a quantidade de lendas, mitos, fantasias e construções do senso comum que cercam os povos ciganos no imaginário popular. “Isto mantém e reforça preconceitos e estigmas, discriminação, desigualdades e exclusões”, afirma Azevedo. Mesmo assim, é possível identificar grupos de ciganos antes do século 10, na Turquia, nos países balcânicos (Albânia, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Grécia, República da Macedônica, Montenegro, Sérvia, Kosovo, além da porção turca no continente europeu), e na Croácia, Romênia, Eslovênia e a Áustria. Na Europa Ocidental, a presença inicial dos povos ciganos é reconhecida na Alemanha, em 1417. Ainda no século 15, eles são encontrados na França, Grécia, Espanha e Portugal, dentre outros países.
O aluno do PPGICS chama a atenção em sua tese que, durante séculos, por todos os países por onde passaram, os povos ciganos deveriam seguir leis e regulamentos específicos, que no fundo buscavam erradicá-los ou obrigá-los a se integrarem na sociedade através da sedentarização, além de criminalizá-los.
“Terra exsilium”
Ainda no século 15, Portugal passa a ser o primeiro país do mundo a lançar uma política agressiva contra os ‘romani’, como eram chamados os povos ciganos à época, com o banimento ou degredo para as terras do Novo Mundo – países africanos e o Brasil. Azevedo cita em sua tese que – pela legislação portuguesa vigente, a colônia americana foi legitimada como destino para os ciganos degredados já no ano de 1549, por meio de um decreto de Dom João III.
Segundo dados levantados por Azevedo, por quase 300 anos – graças a ligação histórica entre Portugal e o Brasil – povos da etnia cigana Kalon foram os que desembarcaram e viveram no país. Aluízio de Azevedo explica que desta forma, entre as normativas e punições aplicadas aos ciganos no Brasil ao longo do período colonial, durante o época imperial e até durante a República (até os anos 1940), constavam: a proibição de ser cigano, que incluía falar a língua própria, usar seus trajes, viajar em bandos, praticar a leitura de sorte ou ‘feitiçarias’, praticar a ‘vagabundagem’ ou a mendicância; a sedentarização com a ocupação de trabalhos fixos, a separação de famílias, com a entrega de filhos para que soldados os ‘educassem’.
Embora em menor escala, também ocorreram assassinatos de ciganos no Brasil com o apoio da população, através de caçadas aos grupos e acampamentos. Além disso, afirma Azevedo, qualquer cidadão tinha direito a prender ciganos e entregá-los na cadeia mais próxima, podendo a pessoa tomar-lhes todos os bens, ouro, roupas ou cavalos.
Números no Brasil
Segundo estimativas do IBGE e, conforme explica Aluízio de Azevedo Silva Júnior em sua tese, e de estudiosos ligados ao tema, existem no Brasil (dados de 2013) cerca de 500 mil pessoas ciganas, divididas por três grandes etnias. Temos os Kalon (a maioria no país), os Rom e os Sinti, que ainda se subdividem em diversos grupos e subgrupos. “Ser cigano é pertencer a uma etnia cigana e não a uma religião. Aliás, os grupos ciganos não têm uma religião de origem e, normalmente, adotam a religião dos lugares onde estão. No Brasil a maioria é católica, mas hoje há um forte movimento de conversão às igrejas evangélicas”, esclarece Azevedo.
Em 2014, o IBGE divulgou o ‘Perfil dos Estados e dos Municípios Brasileiros 2014’, que reunia os resultados da Pesquisa de Informações Básicas Estaduais – ESTADIC e da Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MUNIC realizadas nos 27 estados e nas 5.570 municipalidades brasileiras, respectivamente.
A grande dificuldade de se ter uma ideia real da quantidade de ciganos vivendo no país é que nem todos são nômades. Assim, o governo federal reconhecia – por intermédio da então Secretaria de Igualdade Racial (Seppir) – que “os dados oficiais sobre os povos ciganos ainda são muito incipientes", conforme está descrito no documento “Brasil Cigano – Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos” (2013). O próprio IBGE em 2011, quando realizou a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), identificou 291 municípios, distribuídos em 21 estados, que abrigavam acampamentos ciganos; sendo Minas Gerais a que mais possuía esses acampamentos (58), seguida da Bahia (53) e Goiás (38).
Pegando apenas os dois maiores estados do país – São Paulo e Rio de Janeiro, pode se ter uma ideia de como estão espalhados os povos ciganos no Brasil. Dos 92 municípios do Rio de Janeiro, 16 possuem acampamentos de ciganos. Desses, apenas Carapebus tem local específico para este fim. Já o estado de São Paulo, somente 33 cidades, das 645 existentes no estado, possuem acampamentos, sendo que oito destinam uma área específica para o acampamento de ciganos.
Para Azevedo, mesmo esses dados governamentais seriam falhos porque os acampamentos, normalmente, correspondem aos ciganos que ainda são nômades e por isso mesmo migram. Por exemplo, em dezembro de 2017, haviam dois acampamentos ciganos na cidade de Rondonópolis (Mato Grosso) que não estavam contabilizados. Além do que, hoje, aproximadamente 80% dos ciganos fixaram residência e as informações da MUNIC não dizem nada a respeito dos ciganos que não são mais nômades, explica.
Saúde cigana
Uma das principais demandas apresentadas pelos povos ciganos é a saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) garante o atendimento a todos os cidadãos e os povos ciganos contam com um “Cartão para Cidadão em Situação Especial”, que contempla além de ciganos, estrangeiros, índigenas, apenados (presos cumprindo pena em regime fechado ou semi-aberto) e a população fronteiriça do país, conforme a Portaria 940, de 4/9/2012, do Ministério da Saúde. Contudo, com características sócio-culturais próprias, este atendimento acaba sendo prejudicado, como afirma Azevedo: “muitos grupos, devido as suas especificidades culturais, não aceitam que as pessoas sejam atendidas por outras de sexo diferente. Por exemplo, se uma mulher cigana vai procurar os serviços de saúde, dificilmente continuará o tratamento se for atendida por um médico. O mesmo vale para os homens ciganos, que não gostam de ser atendidos por mulheres médicas”.
O aluno do PPGICS também chama a atenção sobre como os grupos ciganos têm um outro olhar para a saúde. “Eles vêem a saúde de forma diferente dos profissionais da área e da população em geral. Quando um cigano fica doente, muitas vezes, o grupo todo acaba indo para o hospital e aí se encontram muitos conflitos, principalmente, pelos horários e limites de visitas aos pacientes”.
Em entrevista ao site do Icict, Aluízio de Azevedo Silva Júnior fala um pouco mais sobre a sua tese, o racismo que envolve os povos ciganos e o impacto disto na saúde destes povos.
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