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Cobertura de assassinato em Campinas expõe limites éticos da mídia


06/02/2017

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Por Elisa Batalha/ Revista Radis

O ano mal tinha começado e já havia 12 mortos. Nove eram mulheres. A mídia e a sociedade brasileira se viram nos primeiros momentos de 2017 diante de um crime brutal, que expôs a relação direta entre o discurso misógino na sociedade e o assassinato de mulheres. Em Campinas, São Paulo, Sidnei Ramis de Araújo, de 46 anos, invadiu a casa onde sua ex-mulher celebrava o Ano Novo com a família e abriu fogo. Isamara Filier, de 41 anos, e mais onze pessoas morreram, incluindo outras oito mulheres e o filho do casal, de apenas 8 anos. Em seguida, o atirador se matou. O assassino deixou algumas cartas e áudios sobre a sua atitude. O caso repercutiu amplamente na imprensa, embora poucos veículos tenham relatado o crime como feminicídio, crime de ódio baseado no gênero. O termo, popularizado pela autora feminista Diana E. H. Russel, em 1976, é a mais grave forma de violência contra a mulher e passou a constar na legislação brasileira como crime hediondo, desde a lei 13.104, de 2015 (Radis 152 e 166).  

O conteúdo da carta, divulgado textualmente, em trechos ou na íntegra, não deixava dúvida que se tratava de discurso de ódio. A intenção estava mais do que declarada: “pegar o máximo de vadias da família juntas” (sic). A expressão “vadia” foi usada repetidas vezes se referindo à ex-esposa e suas parentes, às mulheres em geral, e até à Lei Maria da Penha (11.340/2006), que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Ataques às feministas foram feitos. No seu discurso, a violência se “justificaria” pelo fato de a mãe ter conseguido a guarda do filho em um processo que incluiu acusações de abuso sexual do pai contra a criança. Isamara teria registrado seis queixas contra ele ao longo de 10 anos, entre 2005 e 2015, por agressão e ameaça. 

Só depois da enxurrada de notícias e análises — uma pergunta surgiu em um segundo momento do debate midiático. Teria sido ética a divulgação da carta do assassino? Os reflexos foram percebidos. Comentários postados em sites de notícias e posts nas redes sociais relativizaram a atitude, alegando que o crime teria sido cometido por “um pai que perdeu a cabeça”; tentaram justificar o ato bárbaro como se tivesse sido motivado por uma “alienação parental”. Poucos dias depois, surgiram outras ameaças e novos crimes que usavam o assassinato de Campinas como “exemplo”. Esse efeito de imitação, conhecido pelos estudiosos da mídia, é um dos motivos pelos quais alguns temas requerem cautela antes de sua divulgação na imprensa, como o suicídio. O mesmo pode-se dizer de cartas e “motivações” de assassinos.

Ideário fascista

“A boa prática recomendada nesses casos é divulgar de forma limitada e dar o principal enfoque às vítimas e à comunidade envolvida, assim como citar medidas preventivas, sem causar sensacionalismo”, lembraram a professora de Direito penal e criminologia Luciana Boiteaux e o psiquiatra Luis Tóffoli, em artigo no site Nexo (10/01), questionando a divulgação. Por outro lado, apesar da publicação da carta, os profissionais lembraram que alguns veículos acertaram ao reforçar que se tratava de feminicídio.

A filósofa Márcia Tiburi, autora de livros que tratam de questões de gênero, alertou em entrevista publicada no site da BBC (5/1), para a responsabilidade da sociedade na barbárie de Campinas. “Ele não inventou esse assassinato das mulheres sozinho. Ele pode ter atirado sozinho, mas o que ele fez é simbolicamente muito mais grave”, afirmou. “Diante da atitude e da ´justificativa´ do assassino, muitos passaram a tratá-­lo como psicopata e enxergaram o caso como algo ´bizarro´, desconectado da realidade”, alertou Márcia. A filósofa discorda dessa visão. “Podemos analisar esse lugar do encontro entre a atitude particular e um contexto, percebendo a semelhança entre o discurso que ele profere e o discurso que a gente vê no senso comum. Esse indivíduo pensa a partir do senso comum”. 

Essa observação também foi feita por Manoel Olavo, psiquiatra e psicanalista, em artigo de opinião publicado na revista Carta Capital (4/1). “Nada nas cartas poderia sugerir um quadro psicótico agudo ou crônico”. Para ele, ao contrário, chama a atenção a “estranha familiaridade do discurso”. “A carta é um apanhado de quase todos os lugares comuns do pensamento de extrema-direita que tomou conta do Brasil nos últimos anos. A raiva, a misoginia, o horror ao feminismo, o desprezo à democracia, o discurso fanático anticorrupção, o ódio aos direitos humanos, ao Estado, a intolerância social, a glorificação da violência e dos militares. Está tudo lá. Seu ato monstruoso alimentou-se do ideário fascista existente entre nós”, registrou o médico. Para Márcia, todos devemos nos implicar nessa questão: “Eu, como professora de Filosofia, acho que as pessoas não devem nesse momento achar que elas não têm nada a ver com isso. Elas têm algo a ver com isso, nós todos temos, porque todos nós participamos de uma cultura assim. Onde nós, como cidadãos estamos errando? Esse cidadão pode fazer o que fez? Ele achou que estava acima da lei”, escreveu a pesquisadora.

Mais do que um crime

“Acredito que a divulgação deveria ter sido acompanhada de uma editorialização, com teor de condenação, e cobertura especial mostrando o quanto é grave e corriqueiro no país a violência contra a mulher”, declarou à Radis Camila Mont´Alverne, doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná. “Apesar de as notícias sobre o crime terem posto o feminicídio em pauta, é preciso muito cuidado. Eu não acho que a carta deveria ter sido publicada de maneira trivial, por se tratar de discurso de ódio”, reforçou a jornalista, que escreveu artigo sobre o tema no blog Comunicação e Política (2/1). Para ela, o caso abre um leque de discussões mais amplas para os perigos do machismo e necessidade de combate ao feminicídio, violência doméstica e sexual, e a questão exige destaque. “A quantidade de mulheres vítimas de violência doméstica mostra o quanto a temática precisa ser debatida — e a necessidade da existência de um consenso sobre serem atos injustificáveis e inadmissíveis, que o jornalismo, que tem um papel pedagógico, pode colaborar para construir”, aponta. Para ela, uma das funções do jornalismo é indicar caminhos para evitar que o acontecimento se repita. Camila lembrou, como ponto positivo, que, entre a temática de gênero, a lei Maria da Penha é a pauta que vem historicamente sendo abarcada e ganhando espaço na mídia em geral. 

Para a socióloga Wânia Pasinato, em declaração ao jornal El País (2/1), esse tipo de crime mostra que as políticas para inibir a violência não foram efetivadas nos últimos anos. Para ela, que atuou no Núcleo de Violência da Universidade de São Paulo e em várias pesquisas sobre justiça criminal, violência policial e violações de direitos humanos, nesse e em outros crimes existe uma clara indicação de intolerância. É importante, segundo a socióloga, ir além da indignação. “Precisamos passar para a ação que ajudará a conter essa violência e intolerância”. Ela avalia que vivemos uma guinada conservadora no Brasil, que não tolera o diferente, a igualdade entre homens e mulheres, a liberdade sexual. Vive-se em um contexto de conservadorismo que, para a pesquisadora, tenta impedir que falemos em gênero, um conceito que nos permite compreender a desigualdade social entre homens e mulheres. “Se não podemos falar em gênero, como poderemos vencer essa desigualdade e a intolerância?” A carta do assassino de Campinas, reforçou ela, ajudou a desconstruir uma linha de pensamento comum, a que relaciona crise econômica à violência contra a mulher. “No caso da violência contra mulheres existem linhas de análise que a relacionam às crises econômicas, ao desemprego, sobre como esses fatores afetam os homens e os tornam mais inseguros quanto ao papel de provedor e na experiência de uma ´perda de poder´ sobre a mulher. Contudo, veja o caso de Campinas. A carta deixada pelo assassino depois de matar, entre todos, a ex-esposa e o filho, mostra uma violência muito mais arraigada”, disse ela ao jornal. 

Wânia e outros analistas na mídia defendem que, mais do que apenas um crime, o feminicídio é emblemático de um momento e um tipo de pensamento político. A socióloga lembra que as políticas de desconstrução da cultura de intolerância de gênero estão ameaçadas. Concretamente, advertiu que, até maio de 2016, existia no país um Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, com autonomia financeira e administrativa. Com a chegada do novo governo, aponta a socióloga, o ministério foi dissolvido, em um primeiro momento, e posteriormente, suas secretarias foram reativadas no âmbito da pasta da Justiça e Cidadania. “Esse movimento resultou em perda de institucionalidade com a consequente perda de autonomia financeira e capacidade administrativa. Mas, principalmente, resultou em perda de força política, uma vez que as ações que eram coordenadas pelas respectivas secretarias foram paralisadas ou abandonadas”, registrou.

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