05/12/2013
Por Daniela Lessa/ Portal Fiocruz
“O contraponto à violência é a cidadania”, destaca a pesquisadora Cecília Minayo, do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Carelli (Claves), da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). Cecília e Ednilsa Ramos, também do Claves/Ensp, participaram do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2013, com o artigo Sob Fogo Cruzado I: vitimização de policiais militares e civis brasileiros, no qual analisam os efeitos da violência na saúde dos agentes de segurança pública. Em entrevista ao Portal Fiocruz, Cecília reitera que a violência é uma questão de saúde pública e informa que os policiais são tanto ou mais vítimas da violência quanto os cidadãos de outras profissões.
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Portal Fiocruz - O anuário sugere que nossa sociedade vive ameaçada por crimes e violência. Como essa sensação afeta a saúde coletiva?
Cecília Minayo - O Anuário mostra que a sociedade brasileira, pelos dados de violência que apresenta, não é uma sociedade pacífica como a maioria das pessoas pensa. Por ser a terceira causa de morte na população e, em geral, a primeira da população jovem (de 5 a 49 anos), a violência afeta a saúde de forma cruel, produzindo mortes prematuras, lesões e traumas, muitos dos quais graves e irreversíveis. Além dos agravos físicos, a violência afeta emocionalmente as pessoas, particularmente as vítimas, seus familiares e sua comunidade.
PF - E no caso específico dos policiais, quais são as sequelas de se viver em constante risco?
CM - Os agentes de segurança pública costumam passar por traumas mais severos do que os cidadãos a quem servem. Morrem em proporções muito mais elevadas do que eles (mais de 10 vezes em média) e, quando sofrem lesões físicas, são inevitavelmente vítimas também de sequelas psicológicas que afetam seu ego, pois é muito comum os policiais terem a ilusão de que controlam tudo e de que são invulneráveis. Quando vítimas, entretanto, eles são forçados a reconhecer que alguém conseguiu invadir seu espaço de poder e de autonomia. Sua primeira reação é de que 'isso não poderia ter acontecido comigo', o que lhes provoca perda de autoestima, sentimentos de culpa e, não raro, sintomas depressivos, sensação de ansiedade, medo de novas lesões e da própria morte. Mesmo nos confrontos em que saem ilesos, atitudes defensivas, forte controle emocional e supressão de afetos lhes cobram seu preço e deixam marcas. Mas nem todos os policiais reagem da mesma forma. Reagem pior os muito perfeccionistas, rígidos e que têm escasso apoio da família, dos colegas, dos amigos e das organizações profissionais; e reagem melhor os agentes com personalidade flexível e que sabem lidar com as dificuldades.
PF - Além da sensação, há os casos de exposição concreta à violência seja como vítima, testemunha ou algoz. O que esse tipo de situação pode representar para a saúde individual e coletiva?
CM - Os sentimentos mais comuns das vítimas e da sociedade são de medo, de magnificação dos fatos e de preconceitos contra pessoas mais pobres - muitas vezes concebidas como 'criminógenas' - e contra os jovens - geralmente reconhecidos como o grupo que mais comete violência. Aumenta também a cisão entre ricos e pobres. No caso de policiais, além de lesões físicas ou morte, há diversos efeitos emocionais, que chegam a afetar a percepção e a forma de lidar com a realidade, além de depressão e sequelas psicossomáticas do estresse.
PF - O estresse pós-traumático é um tipo de distúrbio decorrente de exposição a um fato violento. Esse é um agravo comum entre policiais? E entre moradores de lugares especialmente violentos?
CM - A lógica da guerra e dos confrontos armados, que persiste, sobretudo, nas favelas, leva a violações de direitos que abrangem desde o fechamento de escolas, postos de saúde e comércio, a limitação do direito de ir e vir, a invasão de suas residências até, em sua face mais cruel e perversa, um grande número de pessoas feridas e mortas atingidas por armas de fogo, como é mencionado em vários documentos, entre eles os do Observatório das Favelas. Todo esse quadro e a própria vivência dos tiroteios em disputas de território e incursões policiais produzem um clima de terror e sofrimento psicológico, repercutindo na vida das pessoas através do surgimento de diversas formas de adoecimento como consequência do estresse emocional vivenciado e, mesmo que seja difícil para a população compreender isso, os efeitos do estresse pós-traumático derivados dos confrontos violentos são semelhantes para a população e para os policiais.
PF - Recentemente, durante as manifestações, uma das questões levantadas foi desmilitarização da polícia com a suposição de que essa ação reduziria a violência praticada pelos policiais. A desmilitarização poderia dar, também, maior senso de cidadania aos policiais?Esse senso de cidadania poderia ter impacto mais positivo sobre eles próprios em termos de saúde física e mental?
CM - Todos nós que trabalhamos com a segurança pública ou com as condições de vida, trabalho e saúde dos policiais temos dito repetidamente que a polícia precisa ser desmilitarizada, pois essa situação é o um resquício da ditadura militar. No entanto, a existência da polícia militar como um braço auxiliar do exército faz parte da Constituição Brasileira e ela teria que ser modificada. O que nós estudiosos chamamos atenção, é para o fato de que todas as instituições excessivamente hierarquizadas e que eram fruto da forma de ordenar a vida na primazia da Revolução Industrial foram se modificando no mundo, na medida em que uma nova estruturação produtiva baseada em organizações mais horizontais e colaborativas estão surgindo. A excessiva 'militarização' fundamentada na disciplina e na hierarquia (como valores essenciais) gera sofrimento para os policiais de qualquer patente ou nível hierárquico, não valoriza grande parte do potencial humano e não responde às exigências da sociedade contemporânea. É preciso dizer que a desmilitarização, porém, não resolve o problema da violência. Essa é uma questão social muito mais complexa do que o que se pode esperar da atuação de uma instituição de segurança. Não podemos colocar apenas na conta da polícia os desmandos políticos, as causas dos distúrbios, as injustiças sociais e os confrontos criados pelos grupos de delinquentes.
PF - Poderia explicar quais são as sugestões que seus estudos apontam no que tange à relação violência e saúde pública?
CM - Nossos estudos apontam que o contrário da violência é a cidadania. A inclusão na cidadania é um processo social que significa vencer as excessivas desigualdades, os preconceitos e discriminações e, particularmente, investir nos jovens, sobretudo, nas área mais pobres onde muitos deles não trabalham, não estudam e nem procuram emprego. Em relação ao campo da saúde propriamente dito, existe uma Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, desde 2001, que oferece diretrizes e orienta os profissionais de saúde seja para se integrarem em programas intersetoriais de prevenção, seja para reconhecer, notificar, tratar e cuidar das vítimas que chegam nas unidades de Atenção Básica, nas Emergências e nos Hospitais. Como violência é 'uma causa externa de adoecimento', ou seja, não é um problema biológico, mas reúne aspectos biopsicossociais, o setor saúde tende a apenas tratar dos efeitos ou seja, notificar as mortes e cuidar das lesões e feridas. No entanto, o documento do Ministério da Saúde ajuda e destaca que a violência é um problema de saúde pública, sim, e que precisa ser enfrentado por todos os cidadãos brasileiros, inclusive pelos que atuam no setor.
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